FLORENÇA, 5 DE OUTUBRO DE 1502

Enquanto dorme, sente movimentos lá em baixo na rua. Abre os olhos, ouve passos pesados aproximando‐se da porta.

São os jagunços do maldito Magaldi, tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde, pensa ele enquanto se lhe contrai o estômago.

Afasta a velha manta, levanta‐se, põe‐se à escuta.

Não chega o canto das cotovias dos jardins vizinhos, ainda não amanheceu.

Vai em pontas dos pés até à janela. Entrevê através das gretas o brilho de uma lanterna lá em baixo. Gostava de espreitar melhor, mas devem estar a olhar para cima, não podem perceber que está em casa.

Recorda: Foi a esta hora que foram buscar Rinaldo Cresci e lhe partiram as pernas e ele devia ao Magaldi muito menos dinheiro do que eu. Não tocarão nas minhas mulheres, mas vão ficar loucos comigo.

A respiração acelerou‐se‐lhe. Veste‐se velozmente.

A sua mulher acorda, olha‐o, perdida, ele faz‐lhe sinal para que se cale, sussurra‐lhe ao ouvido que chegaram, é melhor que abra, antes que deitem abaixo a porta, mas deve dizer‐lhes que ele dormiu fora.

Ela anui, pálida.

Beija‐a a correr na face, inclina‐se sobre a filha recém‐nascida, que está a acordar no seu berço de madeira, faz‐lhe uma festa.

Batem à porta com força.

A pequenina larga a chorar, ele pega‐lhe, passa‐a a Marietta, que desce, apertando contra si a criança, enquanto as pancadas aumentam.

– Já vai, que pressa! – ouve‐a dizer e, enquanto lá de baixo vem uma vozearia indistinta, enfia‐se por uma porta interior, entra num armário, abre de par em par uma janelinha. É magro, ágil, introduz‐ ‐se facilmente no vazio. Vivem no primeiro piso, encontra‐se sus‐ penso a seis braças do solo, sobre a viela para que dão as traseiras da casa. Assaltam‐no o vento e o frio da noite.

Olha para baixo: escuridão, silêncio. Passa por cima do peitoril. Com movimentos hábeis, enfia os pés nas fendas da parede, depois deixa‐se cair, esfola as mãos no pavimento, levanta‐se e começa a correr, escorrega nos restos de comida deitados fora na noite anterior por algum vizinho, por pouco não perde o equilíbrio, mantém‐no, sem nunca parar.

Mal dobra a esquina, duas sombras agarram‐no. Tenta soltar‐se, encolhe‐se, espera os golpes. Não lhe batem, mas mantêm‐no quieto.

– Ei‐lo – anuncia um dos dois, que tem um hálito rançoso e tresanda a suor.

Do outro lado da esquina aproxima‐se de repente a luz da lanterna. Alumia só em parte os rostos e os corpos do grupo que avança. O resto perde‐se no negrume da noite.

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São um trio, de espadas à cintura, gibões de cabedal estampados com a flor de lis vermelha de Florença. Repara que os dois que o apanharam estão vestidos da mesma maneira.

– São da guarda do gonfaloneiro! – exclama, aliviado.

– Esperavas outra pessoa? – responde‐lhe o oficial que os chefia, na casa dos quarenta anos, rosto ao mesmo tempo melancólico e duro, olhos escuros que perscrutam, que brilham na escuridão.

Reconhece‐o: é Dino Gherardi, tem incumbências especiais, nunca se desloca por coisas de pouca monta. Volta a ficar preocupado, mais que antes.

– Que se passa? Porque vêm a esta hora? – pergunta, e sente que a voz lhe falha.

Nenhum lhe responde. Uma rajada de vento causa‐lhe um arrepio.

A um aceno de Gherardi, levam‐no embora. Desembocam na rua principal, dirigem‐se para a Ponte Vecchio. O som dos seus passos mal se ouve. Um dos guardas mantém alta a lanterna na mão direita. Prestam atenção a não se sujarem na lama, nas poças de urina dos cavalos, nos detritos espalhados por todo o lado. Envolve‐os o vento norte que desce dos montes e sopra com força, correndo entre as casas.

– Aonde me levam? – torna a perguntar, forçando‐se a manter um tom calmo.

Gherardi volta‐se, com o seu ar triste:

– Em breve verás, Maquiavel.

Conhece aquelas ruas desde que era pequeno, aqui andou à pedrada, deu e levou pancada, seguiu raparigas que se tornaram mulheres, sabe todos os atalhos, sabe aonde levam. Passam o rio, e os guardas – que já não o têm agarrado, mas se dispuseram à sua volta – fazem‐no enveredar por uma rua que só tem duas desembocaduras possíveis: o Palazzo della Signoria e o cárcere, o lugar do poder e o do castigo, um se se virar à esquerda, o outro se se for a direito.

Não tem nada a reprovar‐se, mas a calúnia pode cavar a sepultura até do mais honesto dos homens. É preciso pouco para cair em desgraça, sobretudo se, como ele, se faz parte do Secretariado da República e nos imiscuímos em assuntos de Estado. Teve sempre cuidado em não fazer inimigos. Tê‐los‐á feito sem querer? Quem o terá acusado? E de quê?

Desde que se tornou secretário, tem trabalhado com afinco, com grande correção, mas até isso pode ser um defeito. Quem sabe fazer as coisas bem pode irritar os outros. Inveja, rancor, antipatias: ele conhece os homens. É fácil lançar a cruz sobre as costas de quem quer que seja. Basta ir a um notário, de cara tapada, apresentar uma acusação e põe‐se em marcha um processo, uma máquina trituradora como a dos moinhos, capaz de reduzir a pó até os grãos mais duros. Lutará, é certo, mas contra quem?

*

Estão quase no fim da rua, em breve o empurrarão numa das duas direções. Imagina o pior. Já visitou a prisão para assistir a interrogatórios, só umas horas lá bastaram para o afligir. Nunca viu a tortura. Mas ouviu os gritos de quem a estava a sofrer. Sempre se interrogou sobre o que faria, às mãos do carrasco. Talvez confes‐ sasse culpas que não tem. Saberá resistir?

A rua acaba, levam‐no para a esquerda.

Volta a respirar.

Uma cotovia canta.

Desembocam na praça frente ao Palazzo della Signoria. Um jovem criado de padaria, que leva uma cesta cheia de pães, cruza‐se com eles e desvia o olhar.

De detrás da janela de uma casa, alguém espreita e torna logo a fechar as portadas.

Passam diante da fachada do palácio, imponente e escura na claridade que começa a espalhar‐se. A porta principal está fechada.

Dobram uma esquina. Aquele lado do enorme edifício, conhece‐o bem: lá ao fundo fica a entrada de serviço que atravessa todos os dias, para subir a escadinha que conduz ao salão frio do Secretariado. Já tem saudades daquele trabalho quotidiano. Quererão perguntar‐lhe por algum papel? Revistar na sua presença a mesa onde trabalha?

Livro: "O Trono – A História de Maquiavel"

Autor: Franco Bernini

Editora: ASA

Data de Lançamento: 27 de fevereiro de 2024

Preço: € 21,90

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Não chegam lá, param antes, diante de uma porta vigiada por outros guardas. Sabe que conduz a uma zona do palácio à qual não lhe é permitido aceder.

Faz menos frio no interior. É uma sala quadrada e ampla, de abóbada alta, que dá para uma escadaria de mármore. Um guarda sentado a uma mesa tem diante dele um registo, onde vai apontar a entrada da patrulha e de Nicolau, mas Dino Gherardi, o oficial, sussurra‐lhe qualquer coisa ao ouvido e ele repousa a pena de pato sem escrever nada.

A escada conduz a outra escada, desta vez de lajes de pedra. Continuam a subir sem parar, passam de quando em quando diante de algumas janelas. Vê as casas em torno fazerem‐se cada vez mais baixas, enquanto a alvorada as vai tingindo de cor‐de‐rosa.

Uns poucos degraus estreitos e estacam diante de uma saída fechada, com dois guardas perfilados. Gherardi bate à porta discretamente.

– Entre – responde uma voz profunda que Maquiavel reconhece: é o gonfaloneiro.

Pier Soderini trabalha atrás de uma secretária carregada de papelada, inclinado diante de uma carta que está a acabar. Tem cin‐ quenta anos, um gibão novinho em folha, verde‐escuro, na cabeça um barrete negro do qual escapam alguns cabelos grisalhos. Com rugas, um tanto curvado, nariz grosso, não levanta os olhos.

Nicolau considera‐o fraco, incapaz de desempenhar o cargo mais alto da República. Sabe, além disso, que é preciso adaptar‐se ao que há, goste‐se ou não se goste. Nunca esteve naquele gabinete, com tantas estantes cheias de papéis. Está meio submerso na escu‐ ridão, só estão acesas algumas velas. Duas janelas abrem‐se sobre a cidade. Cheira a fechado.

– Ei‐lo, como haveis ordenado – diz Gherardi ao gonfaloneiro. E refere a tentativa de fuga.

Soderini, sem deixar de escrever, anui, divertido, como se escutasse uma coisa sem importância. Acaba a carta, levanta os olhos meio cinzentos meio castanhos para Nicolau, que esboça uma vénia, e ordena aos guardas, com um gesto, que se afastem.

Espera que fechem a porta para falar.

– Julgou que lhe iam dar uma coça? – Dá uma olhadela a um papel. – Deve uma bela soma de florins ao Jacopo Magaldi, não é assim? Tem razão em ter medo, ele não brinca com essas coisas.

É inútil perguntar‐lhe como terá sabido. A República tem mil olhos. Responde com uma dignidade incongruente:

– É um momento um tanto difícil, mas voltarei a ficar bem. O gonfaloneiro olha‐o, nada convencido.

– Se me dá licença – acrescenta Nicolau, escondendo a sua irritação –, uma parte das dívidas serviu para adiantar as despesas das minhas missões além‐fronteiras, em nome da República.

– E em grande parte para andar atrás de mulheres – precisa o outro, levantando‐se.

– Os reembolsos dessas viagens ainda não chegaram e, como sabe, eu não tenho património pessoal a que recorrer – insiste.

Soderini não replica, dirige‐se para uma portinhola e abre‐a. Aparece uma varanda estreita. Faz sinal para que Nicolau o siga.

Sobem uma escada de madeira muito curta e vão dar ao caminho de ronda.

Por baixo deles, silenciosa, está Florença, altas torres, grandes palácios, uma miríade de casas de telhados avermelhados sobre os quais se instalava o primeiro sol. O vento tornou o ar excecionalmente límpido, varrendo todas as nuvens. Ressalta ao fundo a coroa dos montes circundantes, vê‐se ou intui‐se o Arno a serpear entre as casas e depois na planície.

– Apraz‐me trabalhar a esta hora, quando a cidade ainda dorme e parece tranquila... – diz o gonfaloneiro em voz baixa, como falando para si mesmo, e acrescenta sem se virar: – Está no Secretariado há quatro anos. Um homem de confiança, se excluirmos – encrespa‐lhe a voz um traço de desprezo – o seu sonho de ser poeta, que lhe subtrai tempo e energia.

– Todos temos os nossos vícios – responde com ironia, mas a ferver por dentro.

– Os seus são um pouco a mais.

– É só fora das horas de serviço que escrevo para mim.

– Nem sempre, também o sei. – Nicolau quer retificar, o outro antecipa‐se, levanta uma mão para atalhar qualquer reação. – Um pecado venial. No entanto, no dizer de todos, não vale muito em matéria da arte.

– Com todo o respeito, gostaria de perguntar quem são esses todos. Há gente que julga saber tudo e é tudo o que sabe – ironiza.

Soderini continua como se não tivesse ouvido nada, vira‐se para o fitar.

– Mas tem argúcia quando se trata de julgar as coisas, consegue ver o que outros não veem, assegurou‐mo o meu irmão Francesco.

– Se refere a honra que tive de o acompanhar, em fins de junho, a Urbino, até César Bórgia...

– É isso mesmo, sim. Sei bem que escreveu os relatórios dessa legação em lugar do Francesco. Apreciei‐os.

Enregelado, o gonfaloneiro regressa ao gabinete. Nicolau segue‐o. Tê‐lo‐ei irritado demasiado? Que quer ele de mim, interroga‐se. Ocupando um dos postos inferiores da hierarquia, é sempre para cima que Nicolau olha, aprendeu o peso das palavras dos poderosos, sabe que nada se pode deixar ao acaso, é preciso decifrar‐lhes as expressões. Mas, até ao momento, Soderini não se desmanchou e Nicolau nada consegue ler no seu rosto impassível.

– Aquele demónio é insaciável – recomeça o gonfaloneiro, avizinhando‐se de uma parede pintada com um fresco do mapa de Itália.

Nicolau compreende sem precisar de perguntar que ele se refere ao Valentino.

– Não lhe basta ter conquistado a Romanha. – Soderini indica a terra e aponta o indicador a Ímola. – Agora faz aqui base, a meros dois dias a cavalo de nós. Com o dinheiro do pai, o pontífice, está a reunir um exército nunca visto.

– É o que ouvi dizer.

– Muitos na cidade têm a ilusão de que ele quer apoderar‐se de Bolonha, e ele tem a capacidade de fazer as pessoas acreditarem nisso, mas não é verdade. – De Ímola o gonfaloneiro leva o dedo sobre os Apeninos, até à planície de Florença. – Somos nós, de novo, que ele quer. As nossas terras são as mais adaptadas para fazer um reino com os Estados que ele já tem.

*

Nicolau lembra‐se muito bem, como todos os florentinos, do medo e do frenesim do ano anterior, quando no mês de maio, o duque, príncipe, capitão‐geral da Igreja, filho do papa e primo do rei de França, atravessou as fronteiras do domínio da República à cabeça de um grande exército, com os seus melhores condottieri: Paolo e Francesco Orsini e Vittellozzo Vitelli, um dos comandantes mais capazes de Itália.

Era justamente nesse mês que se devia ter casado com Marietta. Adiaram porque Nicolau estava assoberbado pelo seu trabalho de secretário dos Dez da Liberdade e da Paz, que deviam fazer frente à ameaça juntamente com o inepto gonfaloneiro de então, Lorenzo di Lotto Salviati. Rapidamente se deu conta de que os seus superio‐ res tinham ideias confusas, contraditórias, e que eram incapazes. O exército do Valentino desceu do Norte, sem ser perturbado, pelo Val di Marina, um lugar estreito onde teria sido fácil detê‐lo enviando contra ele o maior número de soldados possível.

Discutiram, ele e Marietta, se não seria caso de, pelo menos ela, se refugiar noutro lugar. Nicolau pensara na sua quinta do Albergaccio, em campo aberto, a pouco mais de sete milhas da cidade. Mas perceberam logo que estaria exposta a ataques do inimigo e seria menos segura do que a sua casa florentina, protegida, pelo menos, pelas muralhas. Nisto viram bem, porque a infantaria de Vitelli passou mesmo ao lado de Albergaccio e não longe, no burgo de Malmantile, saqueou e violou raparigas e mulheres que depois foram obrigadas a prostituir‐se em Roma. O Bórgia chegou num ápice a Campi, a meras oito milhas do Palazzo della Signoria.

Florença ficou aterrorizada. Nicolau viu‐se a passar azeite por uma velha espada que pertencera a um antepassado e que tinha permanecido muitos anos no sótão. Se tivesse havido combates na cidade, teria defendido a sua família e a sua noiva, mas sabia muitíssimo bem que teria sido inútil contra soldados como aqueles. E enquanto manejava com cautela a arma recém‐afiada, ele, que nunca se treinara a sério para combater e cujo pulso lhe doía com o esforço, tentava antecipar os movimentos do Valentino. Era seu hábito tentar entrar na cabeça alheia, porque nunca ninguém lhe tinha oferecido nada e prever o que faria o interlocutor ou adversário tinha sido sempre a maneira de se defender e abrir o seu caminho.

Por isso, não ficou admirado quando soube que o Bórgia fingia habilmente, aos olhos do mundo, praticar um ato de justiça, não uma prepotência: aquele príncipe, muitas vezes, dizia uma coisa e fazia outra. Na invasão do Domínio trouxera consigo Pedro de Médici, o mais velho daquela casa, que o povo tinha expulsado da cidade tempos antes para instaurar a República. E tinha também à sua disposição Juliano, o irmão mais novo. Fez saber que lhes devolveria Florença, como se fosse movido não pelo interesse próprio, mas pela reparação de uma injustiça.

Foram dias de angústia e de raiva. Muitos na cidade convenceram‐se de que a República fora traída pelos seus próprios dirigentes. Nicolau não concordava – que vantagem teriam eles nisso? – e imaginou que os Dez e o gonfaloneiro, como comerciantes que eram, quase todos, não conseguindo salvar a cidade pelas armas recorreriam ao dinheiro, dado que comprar um inimigo custa menos que fazer‐lhe guerra. E assim foi: para ganharem tempo, propuseram ao Valentino que se tornasse capitão‐geral de Florença, com um estipêndio de trinta mil ducados por ano, por um triénio. Bem sabiam que não possuíam aquela cifra e que o Bórgia diria que não, mas mantiveram‐no quieto pelo punhado de dias que serviram para oferecerem todo o dinheiro disponível ao primo dele, Luís XII, soberano de França, recém‐senhor de Milão, muito interessado nos assuntos de Itália, e lhe pedirem proteção.

Uma jogada astuta, que Nicolau apreciou. Nas negociações destacou‐se Pier Soderini, que iniciou naquela oportunidade a sua ascensão e ganhou a alcunha que se lhe manteve colada: Tenho‐Confiança. A confiança em Luís XII foi bem depositada. O «Rei Cristianíssimo» não queria que o primo alargasse demasiado os seus domínios, convinha‐lhe um equilíbrio de poderes e, adoçado pelo ouro florentino, ordenou ao Valentino que retirasse o seu exército.

Nicolau percebeu logo que o assunto não estava encerrado: o Bórgia estava decidido a possuir a Toscana e, embora não pudesse desafiar abertamente o rei Luís, não se deteria. Mas Nicolau estava entre os poucos que o temiam, porque Florença, essa, tinha voltado aos seus assuntos e aos tráficos de sempre, como se nada tivesse acontecido. Ele e Marietta aproveitaram a trégua para se casarem, em setembro.

No início do verão seguinte, nos dias mais quentes de junho – Marietta estava grávida de seis meses –, o Valentino tornou a atacar, dessa vez atirando a pedra e escondendo a mão: incitou Arezzo e outras terras do Domínio à rebelião, fê‐las ocupar por Vitelli e por Piero e Francesco Orsini, com os habituais Pedro e Juliano de Médici no seu séquito. Ele, César, fingiu‐se totalmente alheio e até contrário a essa nova tentativa de invasão. Ninguém acreditou, ninguém o contradisse.

Foi tal a violência do golpe que, a princípio, muitos em Florença pensaram que a notícia não fosse verdadeira. Depois, a cidade mergulhou no pânico. Nicolau passou dias e noites no Secretariado a escrever cartas aos comissários do exército florentino na guerra contra Pisa, para que desviassem tropas daquela frente e as levas‐ sem para Arezzo, depressa, depressa, depressa. Mas o Bórgia parecia imparável, tanto que ainda em junho, já às claras, invadiu as terras e a cidade de Urbino e expulsou o duque Guidobaldo de Montefeltro.

Foi então que partiu a toda a pressa uma legação florentina chefiada pelo irmão de Soderini, Francesco, bispo de Volterra, para tentar estabelecer um contacto diplomático. Francesco tinha a presunção e a astúcia de todos os Soderini, porém intimidava‐o a delicadeza da missão. Nicolau acompanhou‐o como simples escrivão. Ia preocupado, porque Marietta tinha tido hemorragias, tinha tido de ficar acamada e corriam o risco de perder a criança. Pesava‐lhe não poder estar junto dela, mas ao pensar na possibilidade de conhecer o Bórgia, experimentava aquela curiosidade com que nos aproximamos de um abismo.

Viajaram sem parar, passaram pelas tropas protegidos por um salvo‐conduto. Chegaram a Urbino bem entrada a noite. O palácio ducal estava circundado por soldados, todas as portas aferrolhadas e bem guardadas. Fizeram‐nos entrar em plena noite por uma porta de serviço e conduziram‐nos a uma grande sala que as velas iluminavam como se fosse dia.

Nicolau ficou impressionado pela prestança de César, longos cabelos castanhos, barba farta, alto, musculoso. Era mais novo do que o imaginara e dotado de uma energia que parecia irrefreável. Estava à espera de que ele tivesse sotaque estrangeiro, porque a sua família vinha de Valência e também na corte do papa se falava a língua daquela terra, mas o seu italiano era desprovido de qualquer inflexão.

O Valentino não lhe dirigiu a palavra, antes falando só ao bispo embaixador. Mas perscrutou‐o mal o viu, com frieza, a fundo.

Aquele homem desfiava as suas mentiras como se acreditasse nelas. Acusou a República de pôr em perigo a sua segurança, dado que tinham em comum uma longa fronteira. Sustentou que, não obstante isso, queria ser amigo, jurou que Vitellozo Vitelli tinha agido por sua conta, para se vingar de Florença, culpada de ter executado três anos antes um irmão seu, então ao serviço dos Dez, sob a acusação de traição na guerra contra Pisa.

Mas também foi ameaçador: se os florentinos não aceitassem a sua amizade, então tê‐lo‐iam como inimigo, apoderar‐se‐ia do seu Estado de qualquer maneira. E, ao dizer estas palavras, brilharam‐ ‐lhe os olhos.

Revelou‐se, pensou Nicolau.

César pareceu lê‐lo no seu olhar, porque se irritou e levantou a voz. Bem sabia, disse, que em Florença o consideravam um assassino que não respeitava a palavra dada. Mas era ele quem não podia fiar‐se deles e o governo republicano não lhe agradava. Que o mudassem. Caso contrário, depressa se arrependeriam.

O bispo comportou‐se como é próprio dos embaixadores, replicou com cortesia, fez cautelosas precisões, promessas, blandícias, ganhou tempo.

Não foi isto que salvou a República.

Foi de novo o rei de França, que desta vez enviou cavaleiros e soldados de infantaria para impedir que o primo, de cuja malícia desconfiava e sabendo‐o secundado pelo papa, se tornasse poderoso demais. À chegada dos franceses, Vitelli, os condottieri e os Médicis, que não queriam antagonizar Sua Majestade Cristianíssima, desapareceram sem dar luta.

– Desta vez, Luís XII não nos salvará. Luís XII quer arrebatar a Espanha o reino de Nápoles e precisa do Valentino, fizeram um pacto, temos notícias seguras – revela o Tenho‐Confiança e, se ele o diz, significa que a situação é verdadeiramente séria.

Nicolau fica perturbado, mas esforça‐se por refletir.

– Não somos os únicos a temer o duque, ele tem muitos inimigos em Itália que estão a unir‐se contra ele. Bolonha, Perugia, o próprio Vitelli se revoltou contra ele e até Paolo e Francesco Orsini. – Ainda não são suficientemente fortes. E não o afastarão de nós. Será preciso combater. Temos de perceber como e quando ele nos atacará.

Nicolau olha‐o. Se o gonfaloneiro lhe revelou tudo isto é porque lhe quer confiar uma missão, mas qual?

O outro aproxima‐se, até ficar cara a cara com ele.

– Terá imediatamente os reembolsos que espera, garanto‐lhe, e far‐se‐á de maneira que o usurário seja muito paciente consigo... Poderá pagar‐lhe com o estipêndio que lhe ofereço e que chegará regularmente. Vou enviá‐lo em legação ao Bórgia. Partirá amanhã de manhã para Ímola. Será mandatário.

Nem emissário, nem embaixador, simples mandatário. Com paga menor. Com poderes para representar a República, mas não de assinar pactos. Sente amargura e raiva. Como de costume, não o consideram digno de missões mais importantes, que, em vez dele, vão para outros, bem‐nascidos e menos competentes do que ele. De que lhe serviu endividar‐se para servir o Estado?

Mas sente‐se também lisonjeado e cheio de curiosidade. Poder frequentar o Valentino será estar perto do verdadeiro poder.

– Com as raposas é preciso ser raposa – retoma Soderini. – Mesmo que o duque se prepare para nos invadir, o Nicolau vai propor‐ ‐lhe que firme um pacto de aliança connosco em detrimento dos seus inimigos confederados, Vitelli, Orsini e os outros.

– Para ganhar tempo?

– Sim, precisamos dele. Estamos a reunir todas as forças possíveis, mesmo poucos dias podem representar a nossa salvação. Tenho confiança em que terá êxito.

– O Bórgia poderá fingir que quer aceitar a aliança.

– Fá‐lo‐á certamente, dir‐se‐á interessado e nós aproveitaremos as delongas.

Nicolau não resiste a uma réplica:

– Além disso, um mandatário não pode assinar pactos e, até que chegue de Florença um emissário para o fazer, aguarda e espera...

Soderini não aceita bem a observação.

– A sua língua acerada é famosa, mas aconselho‐o a usá‐la com os inimigos. Esse cálculo também existe, é certo. Por isso o mandamos.

Porque não ficou calado?

– Farei o possível.

– Assim espero. Dar‐lhe‐emos instruções todos os dias. Discutirá com o Valentino até ao mais ínfimo pormenor esta aliança que nunca se fará. E, quando estivermos prestes a formalizá‐la, diremos que não podemos agir sem ter antes o acordo do Rei Cristianíssimo, que nos protege...

– Cartas que vão e vêm, mais uns dias ganhos.

– Exatamente e não só: se aprovar a aliança, Luís XII arriscar‐ ‐se‐á a perder a face quando estalar a guerra e não intervier para nos defender; se não o fizer, será evidente para toda a gente que está de conluio com o agressor.

Nicolau aprecia a astúcia da jogada e pergunta‐se se não deverá reavaliar o gonfaloneiro.

– Esperamos sobretudo, Maquiavel, que, uma vez lá, descortine por todos os meios os pontos fracos do duque, a consistência das suas forças, os seus planos.

Espiar. Faz parte das tarefas de um mandatário, escusado é dizê‐lo. Nicolau hesita uns instantes antes de responder e, entretanto, pensa que se Soderini fez questão de o especificar significa que a missão é perigosa: enviam‐no a ele porque mais ninguém quis correr o risco. O Valentino é capaz de reações imprevisíveis. Veneno ou punhal, é preciso pouco para ele se livrar de quem não goste.

Quando há uma chatice, calha‐lhe sempre a ele, Nicolau, como quando dois anos antes o enviaram a correr para a França assolada pela peste. Não pôde sequer despedir‐se pela última vez do pai moribundo. Mandatário, também nessa altura.

Basta esta hesitação para irritar o gonfaloneiro, que esperava uma resposta imediata.

– Não viu recentemente, por acaso, Duccio Del Briga? – pergunta, aborrecido.

Nicolau passa a mão pelos seus cabelos pretos e curtos, num gesto nervoso.

Viu‐o, sim senhor, aquele homem perigoso, corpulento, inquietante. Ainda ontem, na rua, e perguntara‐se porquê. Achou que ele o seguia e a coisa tinha‐o perturbado.

Como na cidade muitos suspeitam, Duccio Del Briga exerce a profissão de sicário, embora até hoje o chefe da polícia não tenha conseguido demonstrá‐lo e ele nunca tenha sido punido por isso. Calcula‐se que tenha assassinado cinco pessoas, pelo menos.