A história tem uma data precisa: 4 de junho de 1976. Nessa noite de quase-verão, os Sex Pistols – ainda antes de se tornarem tão infames quanto a lenda em seu redor – atuaram no Lesser Free Trade Hall, na cidade de Manchester, perante uma audiência de cerca de 40 pessoas. Essa mesma audiência iria aumentar com o passar dos anos, tamanha é a quantidade de gente que garante, a pés juntos e sem entrelaçar os dedos, que esteve lá. E porquê? Porque esse concerto mudou, e pedimos desculpa pela repetição, o curso da história. Sem ele, a música que ouvimos e que apreciamos hoje em dia, do rock ao hip-hop à música eletrónica, provavelmente não soaria ao mesmo.

Não é que o espetáculo tenha sido histórico por si só, já que a grande maioria dos relatos aponta para um som caótico, uma enorme falta de habilidade de cada um dos músicos, um evento que nem sequer se sabe muito bem se foi “musical” na aceção mais... académica que damos à palavra. O que alimentou quem lá estava foi sobretudo a atitude que cada um dos Sex Pistols emanava em palco, em particular o vocalista Johnny Rotten. De súbito, mais de três dúzias de jovens aborrecidos com o rumo da sua vida olharam para o degredo à sua frente e pensaram: “eu consigo fazer isto”, ou “eu consigo fazer melhor”.

Entre esse grupo de jovens estavam, por exemplo, nomes como Howard Devoto e o recentemente falecido Pete Shelley, que organizaram o concerto e que, à altura, já respondiam pelo nome Buzzcocks (e sem os Buzzcocks não haveria Green Day, Offspring ou Blink-182). Ou ainda um já carrancudo Steven Patrick Morrissey, que mais tarde formaria os Smiths (e sem os Smiths não haveria Oasis, Blur ou Libertines). E também um mero escriturário, Peter Hook, que acabaria nos Joy Division e New Order (e sem estes não haveria U2, Interpol ou boa parte da música techno... e o leitor já deverá ter percebido a ideia).

Após o concerto, o escriturário sentiu o chamamento e decidiu, por obra e graça dos deuses do rock, dirigir-se à loja de música mais próxima e comprar um baixo. Com o baixo, veio a banda: Stiff Kittens (primeiro), Warsaw (depois) e Joy Division (finalmente). Com a banda, vieram as canções: 'Digital', 'Transmission', 'She's Lost Control', Atmosphere', 'Love Will Tears Us Apart' e depois 'Temptation', 'Blue Monday', 'Bizarre Love Triangle'. Muitas reviravoltas, bebedeiras, mulheres, drogas e discotecas falidas depois, o escriturário - Peter Hook - voltou à sua posição inicial e desse novo chamamento criou os The Light, que o têm acompanhado há quase uma década.

E foi com eles, e com as canções dos Joy Division e dos New Order, que Hook regressou a Portugal para reviver, uma vez mais, o período mais fértil da sua vida, o período em que o seu baixo e a música que fez com os seus ex-colegas mudou para sempre Manchester e o mundo. Na Aula Magna não estavam (apenas) 40 pessoas para o ver, e sim várias dezenas, das mais variadas gerações: adolescentes com t-shirts dos Joy Division adquiridas num mundo pós-“Control”, adultos que foram adolescentes quando “Blue Monday” rebentou com as tabelas de vendas em 1983, adeptos da subcultura gótica que nunca deixaram de ouvir Joy Division, curiosos que provavelmente nunca os ouviram.

Naturalmente, a maior parte da festa – e foi uma festa – foi feita por quem já sabia ao que ia. Mas mesmo esses não imaginariam, talvez, que Peter Hook e os The Light fossem pregar uma partida ao seu público, começando não com os temas da coletânea “Substance”, editada em 1987 pelos New Order (conforme anunciado), e sim com 'Regret', de 1993, que já foi descrita por diversas vezes pelo baixista como sendo “a última canção boa que os New Order fizeram”. À primeira e surpreendente salva, a ordem foi uma apenas: dançar. Ao longo da noite, o público acatou-a. Como poderiam, aliás, ficar sentados nas suas cadeiras perante um tema tão escandalosa e alegremente gingão como 'Temptation'?

Foi este quem mereceu o primeiro grande aplauso e a primeira explosão de euforia da noite, já depois de 'Ceremony' e 'Everything's Gone Green' terem colocado bastante gente em modo revivalista. Porque, e não nos equivoquemos, ver Peter Hook em 2019 não pode ser senão revivalista; se o não fosse, não estaríamos a escutar as velhas canções que o tornaram famoso, e sim temas novos, com maior ou menor grau de qualidade, comparativamente falando. E se 'Temptation' quase fez com que a Aula Magna viesse abaixo, 'Blue Monday' seguiu-lhe os passos, embora boa parte da dança alheia tenha sido trocada, neste caso, pelos telemóveis na mão, filmando cada segundo da performance.

Peter Hook: "Teres 60 anos e estares em guerra com duas pessoas com as quais trabalhaste ao longo de 40 anos é uma tragédia"
Peter Hook: "Teres 60 anos e estares em guerra com duas pessoas com as quais trabalhaste ao longo de 40 anos é uma tragédia"
Ver artigo

Se no livro sobre os New Order (“Substance: Inside New Order”, 2016) Peter Hook se queixa de os seus ex-colegas não quererem saber do seu baixo para nada (já se sabe que, nestas coisas do rock n' roll, o baixista é sempre quem se lixa), cada um dos seus espetáculos com os The Light parece soar a vingança; é o seu instrumento aquele que guia as canções, com a guitarra e os sintetizadores a serem relegados para segundo plano. Há apenas o groove e o ritmo, há apenas Hook correndo de um lado a outro, no palco, aproximando-se das filas da frente e posando para as câmaras. E há (sem o “apenas”) enormes canções: 'Confusion', 'A Perfect Kiss', 'Subculture', 'Bizarre Love Triangle' e, a fechar a primeira parte, 'True Faith'.

Após uma pausa mais que prolongada, e que levou algumas pessoas a julgar que o espetáculo tinha terminado, Peter Hook e os The Light regressam ao palco para voltar à estaca zero – neste caso, os Joy Division. Tal qual o baixista o canta, seguindo fielmente as palavras e a dicção de Ian Curtis: This is the room, the start of it all... 'Day of the Lords' dá o mote, e 'Shadowplay', numa versão talvez mais punk, mantém a toada obscura e (porque não dizê-lo) violenta que caracterizava e caracteriza a banda britânica.

Até final, foi ainda possível escutar 'Warsaw', 'Digital', 'Transmission' (com Hook a gritar, a plenos pulmões, o último verso – um daqueles gritos capazes de nos congelar as veias), 'She's Lost Control', 'Dead Souls' e, para final, as duas obras-primas dos Joy Division: 'Atmosphere', canção que muitos britânicos, segundo diversas sondagens, querem que toque no seu próprio funeral – e que foi dedicada ao malogrado Ian Curtis –, e 'Love Will Tear Us Apart', a última chama extática que passou pela Aula Magna, com toda a sala aos saltos e em cantoria. O último momento de Hook em Lisboa não podia ser mais rock: despe a t-shirt e atira-a para o público, com um largo sorriso no rosto. Antes do concerto, o músico disse ao SAPO24 que agora estava feliz; nesta noite de sexta, provou isso mesmo. E contagiou-nos a todos com essa mesma felicidade.