Quinta-feira, 30 de janeiro de 1969. Quatro horas da manhã. Dave Harris e Keith Slaughter, técnicos de som, entram num veículo da gigante EMI carregado de amplificadores e material diverso e seguem rumo a Savile Row, rua localizada no centro de Londres e sobretudo conhecida pelos seus muitos alfaiates, que deram origem a um termo próprio no mundo da moda e do bem-vestir: Savile Row tailoring.

Mas Harris e Slaughter não estão a caminho de comprar um fato vistoso e atraente, e sim a caminho dos escritórios da Apple Corps, empresa fundada pelos Beatles nos anos 60 com o objetivo de financiar artistas, designers, estilistas, e o que mais fosse. A história da Apple daria – e deu, por diversas vezes – toda uma outra história, passe a redundância, que pode ser resumida pelas palavras de John Lennon em 1968: «O nosso contabilista veio falar connosco e disse: 'Temos este dinheiro. Querem dá-lo ao governo ou fazer algo com ele?'».

A viagem madrugadora dos dois técnicos insere-se nesse conto que foi a Apple Corps, e acabou por permitir a realização de algo maior do que a empresa veio a ser: o último espetáculo ao vivo de sempre dos Beatles. Ainda que “espetáculo” seja uma expressão demasiado forte, para não dizer falsa. Mas, como dizia Tony Wilson, empresário e figura de proa do punk e pós-punk de Manchester, «na dúvida entre a verdade e a lenda, escrevam a lenda» - frase que alimenta os detratores das fake news, mas que dá alento os sonhos de muitas outras pessoas.

Este evento, que há meio século é conhecido como “o concerto dos Beatles no telhado”, não constituiu tanto um espetáculo quanto um ensaio. Não foram vendidos bilhetes; não foi aberto ao público (ou a uma quantidade específica de público); não conteve, no alinhamento, quaisquer êxitos anteriores; e não foi anunciado aos sete ventos, ou seja, ninguém que naquela manhã estivesse a caminho do seu emprego chato das 9 às 5 saberia com o que contar. E, apesar de tudo isso (ou devido ao facto de terem sido os Beatles a fazê-lo e não uns ilustres desconhecidos), quem gosta realmente de música continua a lembrá-lo como um dos melhores concertos de sempre, ou como um dos mais improváveis.

Um estatuto icónico que, ao contrário daquilo que se pensa, foi fruto de muito e apressado trabalho, e não de uma decisão feita em cima do joelho. Ou não muito em cima do joelho. E que foi assolada por diversos problemas, um dos quais envolveu os próprios Dave Harris e Keith Slaughter: a polícia mandou parar a viatura em que seguiam, imaginando estar perante dois ladrões matutinos, obrigando o primeiro a desculpar-se. «Dissemos-lhes que não podíamos dizer onde íamos, que [o material que transportavam] era para as gravações de um filme, e que estávamos a trabalhar para a EMI», contou Harris a Tony Barrell, para o livro deste, “The Beatles on the Roof” (Omnibus Press, 2017).

De facto, ainda se pensa que os Beatles decidiram, por obra e graça do Senhor (expressão estranha de se colar a uma banda que disse ser mais popular que Jesus Cristo), subir ao telhado do edifício da Apple Corps naquela manhã de inverno e presentear quem quer que estivesse a ouvir com um concerto improvisado, durante o qual interpretaram alguns temas nos quais tinham vindo a trabalhar e cuja grande maioria viria a fazer parte de “Let It Be”, o seu último álbum de estúdio, em 1970. Mas isso não se deve tanto à ignorância daquilo que se passou nos bastidores, como ao facto de o evento em questão ter corrido excecionalmente bem – tirando aquela coisa de terem sido mandados parar pela polícia.

Porque este concerto, este ensaio, esta brincadeira, teve lugar num período em que os Beatles se estavam a desmoronar e em que a perspetiva de desligarem as luzes e abandonarem definitivamente o palco estava mais próxima do que nunca. O filtro nostálgico ou a nossa condição de fãs poderá, por vezes, levar-nos a esquecer que a década de 60 não foi sempre uma década de píncaros no que aos Fab Four diz respeito; mesmo uma das bandas mais importantes da história do pop/rock, ou no caso A banda mais importante da história do pop/rock, teve os seus momentos de fraqueza.

Um deles foi a sua viagem à Índia, para conhecer o Maharishi Mahesh Yogi; Ringo Starr abandonou o local rapidamente, Paul McCartney seguiu-o pouco depois e George Harrison e John Lennon deixaram o “guru” após este ter sido acusado de assediar a atriz Mia Farrow e uma outra mulher. Seguiu-se o chamado “Álbum Branco”, que foi gravado em ambiente de alta tensão e que foi mal recebido pela crítica de então. E, finalmente, as gravações de “Let It Be”, que só viria a ser lançado em 1970 (as de “Abbey Road” tiveram lugar pouco depois, mas este álbum acabou por ser editado em primeiro lugar).

Junte-se a isto a morte do seu manager de sempre, Brian Epstein, em 1967 (há quem garanta que os Beatles nunca mais foram os mesmos desde então), a entrada em cena de Yoko Ono e a sua relação amorosa com Lennon e a experiência falhada em que se tornou a Apple, que essencialmente só serviu para torrar dinheiro. A tensão existente atingiu o seu ponto máximo a 10 de janeiro de 1969, quando George Harrison, após uma discussão com Lennon, deixou – para todos os efeitos – a banda, cansado de ser subestimado e de trabalhar num projeto no qual (já) não acreditava.

Esse projeto tinha o título “Get Back”, que também é o de uma das canções que os Beatles tocaram no telhado, e que estava a ser planeado como o grande regresso da banda a um contexto de música ao vivo, três anos após terem abandonado os palcos para se dedicarem ao trabalho de estúdio. Pensado como um especial para televisão, “Get Back” acabou por se transformar em “Let It Be”, documentário que mostra os últimos tempos dos Beatles enquanto grupo e do qual fazem parte as gravações do concerto-ensaio, que quase esteve para acontecer num anfiteatro na... Tunísia.

Apenas cinco dias depois, Harrison voltou à banda, e tudo parecia sanado – ainda que o guitarrista insistisse que não queria dar concerto algum. Havia nele, também, algum receio com essa proposta. Afinal de contas, os últimos concertos que os Beatles tinham dado não tinham sido dos melhores, com vários bilhetes por vender e fãs que preferiam passar os espetáculos a berrar do que a ouvir a música. As memórias dos seus discos a serem queimados por evangélicos extremistas nos Estados Unidos (após o comentário de Lennon sobre Cristo) e do incidente diplomático que o grupo causou nas Filipinas (quando os Beatles recusaram marcar presença num pequeno-almoço organizado por Imelda Marcos, mulher do ditador Ferdinand Marcos) também estavam ainda bem presentes.

Houve então um nome que ajudou os Beatles a recuperar a amizade entre si, e as boas-maneiras: o teclista Billy Preston, que atuou com a banda no telhado e em “Let It Be”. Foi Harrison quem o levou para estúdio com o grupo após vê-lo atuar com Ray Charles, em Londres, a meio da sua “saída” da banda, uma decisão que se provou acertada e que foi tão bem recebida que Lennon pensou, até, fazer dele o “quinto Beatle”.

Com Preston, os Beatles recuperaram a sua motivação. As demais sessões de gravação decorreram de forma tranquila, mas havia ainda que pensar em “Get Back”. Havia que dar uma conclusão ao especial que se tornou filme. Até que surgiu a ideia: «Porque não fazê-lo no telhado?». As aspas estão aqui para assinalar uma citação, mas a verdade é que, até hoje, ninguém sabe muito bem quem a pronunciou; os relatos disponíveis falam em Michael Lindsay-Hogg, realizador de “Let It Be”, John Lennon e/ou Ringo Starr, e até um cozinheiro contratado pela Apple.

Após pensarem e discutirem um pouco essa sugestão, os Fab Four – com Billy Preston – deitaram mãos à obra. Faltavam três, quatro dias para o espetáculo cujo público seria, se as condições meteorológicas e técnicas assim o deixassem, toda a cidade de Londres. Uma ideia megalómana, mas que também fazia algum sentido. E que não era assim tão original quanto isso – os Jefferson Airplane já o tinham feito antes, por exemplo. Mas foram os Beatles que a elevaram a um outro patamar, e são os Beatles quem muitas outras bandas copiariam nas décadas subsequentes, como os U2, que em 1987 gravaram o vídeo para 'Where the Streets Have No Name' num telhado de um edifício em Los Angeles.

A aposta acabou por colher frutos. Ainda que o tempo fosse frio, não havia sinais de chuva. O equipamento estava montado e pronto a ser usado. Em Savile Row e ruas adjacentes, ninguém poderia suspeitar que “a maior banda do mundo” estivesse prestes a dar-lhes música, gratuita e inesperadamente. Quer dizer: “inesperadamente”, mas só para a grande maioria das pessoas. Havia quem soubesse antecipadamente do plano dos Beatles; fora os familiares da banda e seus associados, também algumas figuras da indústria musical estavam presentes no telhado, como convidados.

Quinta-feira, 30 de janeiro de 1969. Meio-dia e vinte minutos. Os Beatles preparam-se para subir a escadaria que dá acesso ao telhado da Apple Corps, e “velhas” desavenças parecem ter voltado à tona: George Harrison questiona o sentido de tudo aquilo, Ringo Starr queixa-se do frio, Paul McCartney – desde sempre o mais bonacheirão – assegura aos colegas que irá ser “divertido” e John Lennon, que foi visto por quase todos e durante muito tempo como o “líder”, estava estranhamente calado. Até que quebra o silêncio com as mesmas palavras que um tal de Cristiano Ronaldo repetiria quase 50 anos depois, antes da angústia dos penalties: «Que se foda».

Era o grito de guerra que faltava. O quarteto sobe ao telhado, olha para o horizonte, afina as suas guitarras naquele que foi o primeiro som escutado do alto do edifício. E de imediato arrisca com a estreia mundial de 'Get Back', na primeira de três versões que tocaria nesse dia, perante o olhar incrédulo de quem não sabia muito bem aquilo que se estava a passar durante a sua pausa para almoço. Muitos não reconheceriam, sequer, serem aquelas as guitarras e as vozes dos Beatles até o evento ser noticiado mais tarde.

O concerto-ensaio não durou muito: 42 minutos, tal qual a resposta para a vida, o universo e tudo o resto, como o poderão atestar os leitores de Douglas Adams. Para além de 'Get Back', quem passou e parou naquela rua, quem subiu aos telhados em redor e quem esticou a sua cabeça para fora da janela do seu escritório pôde ainda ouvir duas versões de 'Don't Let Me Down' (a única que ficou de fora de “Let It Be”, o álbum), duas de 'I've Got a Feeling', e uma de 'One After 909' e 'Dig a Pony' cada. Ouviram como podiam; o som estava alto e com qualidade q.b., mas não chegou a toda a cidade, como se sonharia. E provavelmente não chegaram a ouvir todas as piadas de Lennon, que chegou a dedicar canções a um tal de Martinho Lutero, ou a um Martinho e a um Lutero, ou a Martin Luther King – não se sabe muito bem.

42 minutos e não mais, devido à chegada das autoridades após as queixas dos vizinhos dos Beatles – os alfaiates de Savile Row. Até então a polícia, que não havia sido alertada para o evento (já que os Beatles ali estavam sem licença), tinha-se mantido calma, deixando os Beatles entreter e entreterem-se. Só com essas queixas, e também com as dos taxistas que tentavam passar por entre o muito público que entretanto se aglomerou na rua, decidiu intervir. O espetáculo terminaria como começou, com 'Get Back', e sem quaisquer detenções, facto posteriormente lamentado, com humor, por Ringo Starr, que afirmou que “Let It Be” teria terminado de forma mais impactante caso tivesse sido filmado a ser removido à força, algemado, do seu lugar na bateria. Pouco importa: os Beatles estavam, aparentemente, de volta à ação – e cheios de adrenalina. Falou-se de forma entusiasta do futuro, pensou-se repetir a experiência, desta feita com helicópteros sobrevoando Londres a tocar a música da banda, com várias bandas rock a tocar em vários telhados de Londres, com todo o tipo de espetáculos exóticos e impraticáveis.

Infelizmente, foi sol de pouca dura: a chegada do empresário Allen Klein à Apple provocou uma cisão entre Paul McCartney e os restantes membros, as sessões de gravação de “Abbey Road” acentuaram as divergências entre o baixista e John Lennon, e os Fab Four chegaram definitivamente ao fim em agosto de 1969, com a saída do próprio Lennon – que só seria noticiada mais tarde. “Let It Be”, documentário e álbum, foram o derradeiro ponto final na sua carreira. Apesar de tudo, os Beatles despediram-se dos seus fãs da única forma que sabiam: criando história, num “mero” telhado. Outra coisa não seria de esperar de uma banda que ajudou a transformar o mundo.