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O rei estava parado sob um foco de luz azul, desamparado. Era o quarto ato de O Rei Lear, numa noite de inverno no Elgin and Winter Garden Theatre Centre, em Toronto. No início daquela noite, três rapariguinhas tinham feito um jogo de bater palmas no palco enquanto o público entrava — versões infantis das filhas de Lear —, e agora tinham regressado como alucinações no cenário absurdo. O rei tropeçou e estendeu a mão para elas, que saltitavam de um lado para o outro no meio das sombras. Chamava-se Arthur Leander. Era um homem de cinquenta e um anos e tinha flores no cabelo.

— Reconheceis-me? — perguntou o ator que representava o papel de Gloucester.

— Lembro-me muito bem dos teus olhos — respondeu Arthur, distraído pela versão infantil de Cordélia, e foi então que aconteceu. Houve uma mudança no seu rosto, ele tropeçou, estendeu a mão para uma coluna, mas avaliou mal a distância e embateu fortemente nela com a mão.

— Da cintura para baixo são centauros — disse ele, e esta não só era a fala errada como foi pronunciada com uma voz arquejante e quase inaudível. Encostou ao peito a mão em concha, como se esta fosse um pássaro ferido. O ator que representava Edgar observava-o atentamente. Naquele momento, ainda era possível que Arthur estivesse a representar, mas um homem já se levantava do seu lugar, na primeira fila junto à orquestra. Tinha formação de paramédico. A namorada do homem puxou-o pela manga e sussurrou:

— Jeevan! O que estás a fazer? — E o próprio Jeevan não soube, a princípio, e as pessoas das filas atrás puseram-se a dizer-lhe em voz baixa que se sentasse. Um arrumador avançou na direção dele. A neve começou a cair no palco.

— A carriça comete-o — sussurrou Arthur, e Jeevan, que conhecia muito bem a peça, percebeu que o ator tinha recuado doze falas. — A carriça…

— Senhor — disse o arrumador —, se não se importa…

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Mas não restava muito mais tempo a Arthur Leander. Ele balançou, os seus olhos desfocaram-se e tornou-se óbvio para Jeevan que ele já não era Lear. Jeevan empurrou o arrumador para o lado e correu em direção aos degraus que acediam ao palco, mas um segundo arrumador já corria pela coxia, o que obrigou Jeevan a saltar para o palco sem ir pelas escadas. A altura era maior do que ele esperava e teve de dar um pontapé no primeiro arrumador, que o agarrou pela manga. A neve era de plástico, observou Jeevan com visão periférica, pequenos pedaços de plástico translúcido agarravam-se-lhe ao casaco e arranhavam-lhe a pele. Edgar e Gloucester estavam perturbados com a agitação e nenhum dos dois olhava para Arthur, que estava encostado a uma coluna de contraplacado, com o olhar vazio. Ouviam-se gritos dos bastidores, duas sombras aproximaram-se rapidamente, mas por esta altura Jeevan já tinha chegado junto de Arthur e agarrou o ator no momento em que ele desfalecia, baixando-o lentamente para o chão. A neve caía agora com intensidade à volta deles, brilhando sob a luz azul-esbranquiçada. Arthur não estava a respirar. Duas sombras — dois seguranças — tinham parado a alguns passos de distância, presumivelmente a darem-se conta de que Jeevan não era apenas um admirador tresloucado. Entre o público ouvia-se um clamor de vozes, flashes de telemóveis, exclamações indistintas no meio da escuridão.

— Meu Deus — disse Edgar. — Oh, meu Deus. — Esquecera o sotaque britânico que estivera a usar até àquele momento e soava agora como se fosse do Alabama, o que era verdade. Gloucester arrancara a gaze que lhe cobria metade do rosto — nesta parte da peça, os olhos da personagem já tinham sido arrancados — e parecia paralisado, a abrir e a fechar a boca como um peixe.

O coração de Arthur não batia. Jeevan começou a fazer-lhe reanimação cardiorrespiratória. Alguém gritou uma ordem e a cortina desceu, ouviu-se um som de tecido e sombras que impediu o público de assistir àquela confusão e reduziu o brilho do palco para metade. A neve de plástico continuava a cair. Os seguranças tinham recuado. As luzes mudaram, os azuis e brancos da tempestade de neve foram substituídos por um brilho fluorescente que agora parecia amarelo. Jeevan agiu silenciosamente sob aquela luz cor de margarina, lançando olhadelas ao rosto de Arthur. Por favor, pensou, por favor. Os olhos de Arthur estavam fechados. Houve um movimento na cortina, alguém a bater no tecido e a procurar uma abertura do outro lado, e depois um homem mais velho com um fato cinzento ajoelhou-se do outro lado de Arthur.

— Sou cardiologista — disse. — Walter Jacobi. — Os seus olhos pareciam maiores por causa dos óculos, e o cabelo era fino no alto da cabeça.

— Jeevan Chaudhary — disse Jeevan. Não sabia ao certo há quanto tempo estava ali. As pessoas moviam-se à sua volta, mas todas pareciam distantes e indistintas, à exceção de Arthur e agora daquele outro homem que se juntara a eles. Era como estar no olho de uma tempestade, pensou Jeevan, e como se ele, Walter e Arthur estivessem ali juntos num ponto de calmaria. Walter tocou uma vez na testa do ator, suavemente, como um pai que acaricia o seu filho febril.

— Chamaram uma ambulância — disse Walter.

A cortina caída dava um inesperado ar de intimidade ao palco. Jeevan estava a pensar na ocasião em que entrevistara Arthur em Los Angeles, anos antes, durante a sua breve carreira como jornalista de artes e espetáculos. Estava a pensar na namorada, Laura, e a perguntar-se se ela ainda estaria sentada no seu lugar na primeira fila ou se teria saído para o átrio. Estava a pensar, Por favor comece a respirar outra vez, por favor. Estava a pensar na forma como a cortina descida fechava a quarta parede e transformava o palco num quarto, ainda que fosse um quarto com um espaço cavernoso no lugar do teto, extensões de corredores e luzes entre as quais uma pessoa conseguiria passar sem ser detetada. Que ideia ridícula, disse Jeevan para si próprio. Não sejas estúpido. Mas agora sentia um formigueiro na parte de trás do pescoço, uma sensação de que estava a ser observado de cima.

— Quer que eu faça isso agora? — perguntou Walter. Jeevan percebeu que o cardiologista estava a sentir-se inútil, portanto assentiu e retirou as mãos do peito de Arthur enquanto Walter retomava o ritmo.

Não é bem um quarto, pensava agora Jeevan, olhando em volta para o palco. Era demasiado transitório, com todas aquelas portas e espaços escuros entre as alas, e sem teto. Era mais como um terminal, pensou, uma estação de comboios ou um aeroporto, com toda a gente a passar apressada. A ambulância tinha chegado, dois médicos aproximavam-se sob a neve que, absurdamente, ainda caía e, como corvos, debruçaram-se sobre o ator que jazia no chão. Eram um homem e uma mulher de uniforme escuro que afastaram Jeevan para o lado; a mulher era tão jovem que poderia ter passado por uma adolescente. Jeevan levantou-se e deu um passo atrás. A coluna contra a qual Arthur chocara parecia lisa e polida ao toque, e a madeira estava pintada para parecer pedra.

Havia ajudantes por toda a parte, atores, funcionários anónimos munidos de pranchetas.

— Por amor de Deus — Jeevan ouviu um deles dizer —, ninguém é capaz de desligar a maldita neve?

Regan e Cordélia estavam a chorar de mãos dadas junto da cortina e Edgar estava sentado de pernas cruzadas no chão ali perto, com a mão por cima da boca. Goneril falava baixinho ao telemóvel. As pestanas postiças projetavam-lhe sombras sobre os olhos.

Ninguém olhou para Jeevan e ele deu-se conta de que o seu papel naquela peça tinha chegado ao fim. Os médicos não pareciam estar a ter êxito. Queria encontrar Laura. Provavelmente estava à sua espera no átrio, transtornada. Talvez… — e esta era uma consideração distante, mas ainda assim uma consideração —, talvez achasse as suas ações admiráveis.

Alguém conseguiu finalmente desligar a máquina da neve e as últimas transparências caíam lentamente. Jeevan estava à procura da forma mais fácil de abandonar o local quando ouviu um gemido e se deparou com uma criança em quem já tinha reparado, uma atriz pequena, ajoelhada no palco ao lado do pilar de contraplacado à esquerda dele. Jeevan assistira à peça quatro vezes, mas nunca com a participação de crianças, e considerava aquilo uma opção de encenação inovadora. A menina devia ter sete ou oito anos. Esfregava continuamente os olhos, num gesto que a deixava com manchas de maquilhagem no rosto e nas costas da mão.

— Afastem-se — disse um dos médicos, e o outro recuou enquanto ele dava um choque ao corpo.

— Olá — disse Jeevan à menina. Ajoelhou-se diante dela. Porque é que não viera ninguém buscá-la para a afastar de tudo aquilo? Ela estava a observar os médicos. Jeevan não tinha experiência com crianças, embora sempre tivesse desejado ter um ou dois filhos, e não sabia ao certo como falar com elas.

— Afastem-se — repetiu o médico.

— É melhor não olhares para ali — disse Jeevan.

— Ele vai morrer, não vai? — A pequena estava a soluçar.

— Não sei. — Jeevan queria dizer algo reconfortante, mas tinha de admitir que o cenário não parecia promissor. Arthur estava imóvel no palco, depois de dois choques, e Walter pegava-lhe no pulso e fitava solenemente a distância enquanto aguardava por um sinal de pulsação. — Como te chamas?

— Kirsten — disse a menina. — Chamo-me Kirsten Raymonde. — A maquilhagem teatral era desconcertante.

— Kirsten — disse Jeevan —, onde está a tua mãe?

— Ela só me vem buscar às onze.

— Hora de óbito — disse um médico.

— Então quem é que cuida de ti quando estás aqui?

— A Tanya, a vaqueira. — A miúda estava a olhar fixamente para Arthur. Jeevan moveu-se para o lado para lhe bloquear a visão.

— Nove e catorze da noite — disse Walter Jacobi.

— A vaqueira? — perguntou Jeevan.

— É o que lhe chamam — respondeu a pequena. — Ela cuida de mim enquanto estou aqui. — Um homem de fato emergiu do lado direito do palco e estava a falar ansiosamente com os médicos que prendiam Arthur a uma maca. Um deles encolheu os ombros e puxou a manta para baixo para conseguir fixar uma máscara de oxigénio ao rosto de Arthur. Jeevan percebeu que a encenação devia ser para benefício da família de Arthur, para não ser notificada da morte dele pelo noticiário da noite. Sentiu-se comovido com a decência do esforço.

Jeevan levantou-se e estendeu a mão à criança chorosa.

— Anda — disse-lhe —, vamos procurar a Tanya. Provavelmente está à tua procura.

Parecia pouco provável. Se a Tanya estivesse à procura da criança por quem estava responsável, certamente já a teria encontrado. Guiou a rapariguinha até aos bastidores, mas o homem de fato tinha desaparecido. A área dos bastidores estava caótica, repleta de som e movimento, gritos para abrirem alas enquanto a procissão de Arthur passava, com Walter à cabeça da maca. O desfile desapareceu pelo corredor em direção às portas do palco e a agitação intensificou-se após a passagem deste, com toda a gente a chorar ou a falar ao telemóvel, ou reunidos em pequenos grupos enquanto contavam e voltavam a contar a história uns aos outros («E então eu olho para lá e ele está a cair…»), ou a berrarem ordens, ou a ignorarem ordens berradas por terceiros.

— Tanta gente — disse Jeevan. Não gostava muito de multidões. — Estás a ver a Tanya?

— Não. Não a vejo em parte nenhuma.

— Bem — disse Jeevan —, talvez seja melhor ficarmos no mesmo sítio e deixar que seja ela a encontrar-nos. — Lembrou-se de ter lido em tempos um conselho daquele tipo numa brochura sobre o que fazer se nos perdermos no bosque. Havia algumas cadeiras ao longo da parede do fundo e Jeevan sentou-se numa delas. Dali conseguia ver o contraplacado sem pintura da parte de trás do cenário. Um ajudante estava a varrer a neve.

— O Arthur vai ficar bem? — Kirsten tinha subido para a cadeira ao lado dele e estava a agarrar o tecido do vestido com as duas mãos.

— Ainda há pouco — disse Jeevan — ele estava a fazer o que mais gostava. — Jeevan baseou aquele comentário numa entrevista que lera um mês antes, em que Arthur falava ao The Globe and Mail («Esperei toda a vida para ter idade para representar Lear e não há nada que me agrade mais do que estar em palco, a proximidade imediata de tudo isso…»), mas, em retrospetiva, as palavras pareceram-lhe ocas. Arthur era, acima de tudo, um ator de cinema, e quem deseja envelhecer em Hollywood?

Kirsten estava em silêncio.

— O que quero dizer é, se representar tiver sido a última coisa que ele fez — disse Jeevan —, então, a última coisa que ele fez foi algo que lhe dava felicidade.

— Isto foi a última coisa que ele fez?

— Penso que sim. Lamento.

A neve era agora um amontoado brilhante atrás do cenário, uma pequena montanha.

— Também é o que mais gosto de fazer — disse Kirsten ao fim de algum tempo.

— O quê?

— Representar — explicou ela, e foi então que uma jovem com o rosto coberto de lágrimas emergiu do meio da multidão, de braços estendidos. A mulher mal olhou para Jeevan e pegou na mão de Kirsten. Kirsten olhou uma vez para trás, por cima do ombro, e desapareceu.

Jeevan levantou-se e dirigiu-se para o palco. Ninguém o impediu. Em parte, esperava ver Laura à sua espera onde a deixara, no centro da primeira fila (quanto tempo teria passado?), mas quando encontrou o caminho para o outro lado das cortinas de veludo, o público tinha desaparecido, os arrumadores estavam a varrer e a apanhar programas caídos entre as filas, um cachecol ficara esquecido nas costas de uma das cadeiras. Dirigiu-se para a extravagância da passadeira vermelha do átrio, com cuidado para não olhar os arrumadores nos olhos, e, lá chegado, verificou que ainda ali estavam alguns membros do público, mas Laura não estava entre eles. Telefonou-lhe, mas ela desligara o telemóvel durante a peça e aparentemente não voltara a ligá-lo.

— Laura — disse para o voice mail —, estou no átrio. Não sei onde estás.

Parou à entrada da casa de banho das senhoras e chamou a assistente, mas esta disse-lhe que a casa de banho estava vazia. Deu uma volta pelo átrio e depois dirigiu-se ao bengaleiro, onde o seu sobretudo estava entre as poucas coisas que ainda restavam nos cabides. O casaco azul de Laura tinha desaparecido.

A neve caía na Yonge Street. Aquilo sobressaltou Jeevan quando saiu do teatro, um eco das transparências de plástico do palco que ainda estavam agarradas ao seu casaco. Meia dúzia de paparazzi tinha passado a noite do lado de fora da porta do palco. Arthur já não era tão famoso como fora em tempos, mas as suas fotografias ainda se vendiam bem, especialmente agora que estava envolvido num divórcio gladiatório com uma modelo/atriz que o traíra com um realizador.

Até há muito pouco tempo, Jeevan também fora paparazzo. Esperava passar despercebido pelos ex-colegas, mas estes eram homens cujas competências profissionais incluíam a capacidade de reparar em pessoas que tentavam passar por eles sem serem vistas, e detetaram-no num instante.

— Estás com bom aspeto — disse um deles. — Que belo casaco trazes vestido. — Jeevan usava o seu casaco de marinheiro, que não era suficientemente quente, mas que produzia o efeito desejado de o fazer parecer-se menos com os ex-colegas, que tinham tendência para usar calças de ganga e blusões volumosos. — Por onde tens andado, pá?

— A trabalhar num bar — respondeu Jeevan. — E a treinar para ser paramédico.

— Paramédico? A sério? Queres ganhar a vida a apanhar bêbedos caídos no chão da rua?

— Quero fazer algo importante, se é a isso que te referes.

— Sim, está bem. Estavas lá dentro, não estavas? O que aconteceu? — Alguns deles estavam a falar ao telefone. — A sério, o homem está morto — dizia um deles, perto de Jeevan. — Sim, claro, a neve interfere com a qualidade das fotografias, mas se olhares para o que acabo de te enviar, para o rosto dele naquela em que estavam a metê-lo na ambulância…

— Não sei o que aconteceu — disse Jeevan. — Simplesmente baixaram a cortina a meio do quarto ato. — Em parte disse-o porque não queria falar com ninguém naquele momento, exceto, talvez, com Laura, e em parte porque não queria falar com eles especificamente. — Viram-no a ser levado para a ambulância?

— Trouxeram-no cá para fora pela porta do palco — disse um dos fotógrafos. Estava a fumar um cigarro com gestos rápidos e nervosos. — Médicos, ambulâncias, o circo todo montado.

— Que tal te pareceu ele?

— Honestamente? Pareceu-me um cadáver.

— Há botox e depois há botox — disse um eles.

— Fizeram alguma declaração? — perguntou Jeevan.

Estação Onze
créditos: Editorial Presença

Livro: Estação Onze

Autor: Emily St. John Mandel

Editora: Editorial Presença

Preço: 16,11€

— Um tipo de fato veio cá fora e falou connosco. Exaustão e, imagina só, desidratação. — Vários deles soltaram gargalhadas. — Esta gente sofre sempre de exaustão e desidratação, não é?

— Seria de esperar que alguém lhes dissesse — interveio o homem do comentário do botox. — Se ao menos alguém tivesse a coragem de chamar de parte um ou dois destes atores e de lhes dizer: «Ouve amigo, espalha a palavra: vocês têm de ingerir líquidos e de dormir de vez em quando, OK?»

— Infelizmente ainda vi menos que vocês — disse Jeevan, e fingiu ter recebido uma chamada importante. Subiu a Yonge Street com o telemóvel firmemente encostado ao ouvido, abrigou-se numa entrada a meio quarteirão de distância e marcou novamente o número de Laura. Ela ainda tinha o telefone desligado.

Se chamasse um táxi, chegaria a casa em meia hora, mas gostava de estar na rua ao ar livre, longe das outras pessoas. A neve caía agora mais depressa. Sentia-se extravagante e culposamente livre. A injustiça de tudo aquilo, o seu coração a bater infalivelmente enquanto Arthur estava gelado e imóvel algures. Subiu a Yonge Street em direção a norte com as mãos afundadas nos bolsos do casaco e a neve a fustigar-lhe o rosto.

Jeevan vivia em Cabbagetown, a norte e a leste do teatro. Era o tipo de caminhada que teria feito sem pensar quando tinha vinte e poucos anos, alguns quilómetros de cidade com elétricos vermelhos a passar, mas há algum tempo que não a fazia. Não tinha decidido se ia fazê-la agora, mas quando virou à direita na Carlton Street sentiu um certo impulso que o levou até depois da primeira paragem de elétrico.

Chegou ao Allan Gardens Park, mais ou menos a meio do percurso, e foi ali que se sentiu acometido de uma alegria inesperada. O Arthur morreu, disse para si próprio, não conseguiste salvá-lo, não é motivo para sentir alegria. Mas ali estava ele, a sentir-se extasiado, porque se perguntara durante toda a vida que profissão devia escolher, e agora tinha a certeza, a certeza absoluta, de que queria ser paramédico. Nos momentos em que as outras pessoas só conseguem ficar paradas a olhar, ele queria ser a pessoa que dá um passo em frente.

Sentiu um desejo absurdo de correr para o parque. A tempestade tornara-o um espaço estranho, repleto de neve e sombras, silhuetas negras de árvores, o brilho subaquático da cúpula de uma estufa de vidro. Quando era pequeno, gostava de se deitar de costas no jardim da sua casa a ver a neve cair. Cabbagetown era visível a alguns quarteirões de distância, avistavam-se as luzes da Parliament Street abafadas pela neve. O telefone vibrou no seu bolso. Parou para ler uma mensagem de texto de Laura. Estava com dor de cabeça, por isso vim para casa. Podes comprar leite?

E nesse momento todo o entusiasmo o abandonou. Não podia ir mais longe. Os bilhetes de teatro tinham sido comprados como um gesto romântico, como que a dizer «vamos fazer algo romântico, pois não fazemos mais nada para além de discutir», e ela tinha-o abandonado lá, tinha-o deixado no palco a fazer RCP a um ator morto e tinha ido para casa. E agora queria que ele fosse comprar leite. Agora que parara de caminhar, Jeevan sentia frio. Tinha os dedos dos pés dormentes. Toda a magia da tempestade o tinha abandonado e a felicidade que sentira um momento antes estava agora a desvanecer-se. A noite estava escura e cheia de movimento, a neve caía rápida e silenciosamente, os carros estacionados na rua transformavam-se em silhuetas difusas deles próprios. Tinha medo do que diria se fosse para casa ter com Laura. Pensou em ir a um bar, mas não lhe apetecia falar com ninguém e, agora que pensava nisso, também não lhe apetecia embebedar-se especialmente. Só queria ficar sozinho por um momento, enquanto decidia para onde iria a seguir. Entrou no ambiente silencioso do parque.