1 — O mais velho

Um dia, nasceu numa família uma criança inadaptada. Apesar da sua fealdade um pouco degradante, esta palavra espelhava, porém, a realidade de um corpo frouxo, de um olhar móvel e vago. «Desarranjada» seria deslocado, «imperfeita» igualmente, uma vez que estas categorias evocam um objeto avariado, sem préstimo. «Inadaptada» supõe precisamente que a criança existiria fora do quadro funcional (uma mão serve para segurar, as pernas, para andar) e que, ainda assim, se conservaria no limiar de outras vidas, não completamente integrada, mas apesar de tudo fazendo parte delas, como a sombra no canto de uma pintura, ao mesmo tempo intrusa e, não obstante, expressão da vontade do pintor.

No início, a família não se apercebeu do problema. O bebé era até muito bonito. A mãe recebia convidados vindos da aldeia ou das vilas limítrofes. As portas dos automóveis batiam, os corpos desdobravam-se, arriscavam uns passos gingados. Para chegar ao lugarejo, era preciso percorrer estradas estreitas e sinuosas. Os estômagos vinham revolvidos. Alguns amigos provinham de uma montanha próxima, mas ali «próxima» não queria dizer nada. Para ir de um lugar a outro era preciso subir e depois descer. A montanha impunha o seu balanço. No pátio da habitação, sentiam-se por vezes cercados por vagas enormes, imóveis, cobertas de uma espuma verde. Quando o vento se levantava e sacudia as árvores, era como um rugido de oceano. Nessas alturas, o pátio lembrava uma ilha ao abrigo da borrasca.

Acedia-se a ele por uma grossa porta de madeira, retangular, juncada de tachões pretos. Uma porta medieval, diziam os entendidos, provavelmente feita pelos antepassados que se tinham instalado nas Cevenas havia séculos. Construíram aquelas duas casas, depois o alpendre, o forno do pão, o abrigo da lenha e a azenha, de um lado e do outro do riacho, e conseguia ouvir-se os suspiros de alívio dos automóveis quando a estrada estreita se transformava numa pequena ponte e aparecia a varanda da primeira casa, sobranceira à água. Atrás desta, de enfiada, erguia-se a outra casa, onde tinha nascido a criança, provida da porta-medieval cujos dois batentes a mãe abrira a fim de acolher amigos e familiares. Oferecia vinho de castanha que a pequena assembleia bebia, extasiada, na sombra do pátio. Falava-se baixo para não perturbar a criança, tão bem-comportada na sua espreguiçadeira. Cheirava bem, a flor-de-laranjeira. Parecia atenta e tranquila. Tinha bochechas redondas e pálidas, cabelos castanhos, grandes olhos pretos. Um bebé da região, que lhe pertencia. As montanhas assemelhavam-se a matronas a velar a espreguiçadeira, com os pés nos riachos e o corpo envolto em vento. A criança foi aceite, era semelhante às outras. Aqui os bebés tinham olhos pretos, os velhos eram franzinos e secos. Tudo estava em ordem.

Ao fim de três meses, aperceberam-se de que a criança não palrava. Ficava em silêncio a maior parte do tempo, exceto quando chorava. Por vezes esboçava um sorriso, um franzir de sobrolho, um suspiro depois do biberão, um sobressalto quando batia uma porta. Era tudo. Choro, sorriso, franzido, suspiro, sobressalto. Nada mais. Não esperneava. Mantinha-se calma — «inerte», pensavam os pais, sem o dizerem. Não manifestava nenhum interesse pelos rostos, pelos móbiles suspensos, pelas rocas. Acima de tudo, os seus olhos sombrios não pousavam em nada. Pareciam tremular e depois escapavam-se para um canto. Dali, as pupilas volteavam, seguindo a dança de um inseto invisível, antes de se fixarem novamente no vago. A criança não via a ponte, as duas casas altas nem o pátio, separado da estrada por um muro muito antigo de pedra avermelhada, ali erguido desde sempre, mil vezes derrubado por tempestades ou por veículos e mil vezes reconstruído. Não olhava para a montanha com pele coçada, as costas cobertas por um número infindo de árvores, fendida por um curso de água. Os olhos da criança acariciavam as paisagens e as pessoas. Não se demoravam.

Um dia, enquanto descansava na sua espreguiçadeira, a mãe ajoelhou-se. Trazia uma laranja. Devagar, passou o fruto diante dela. Os grandes olhos pretos não se prendiam a nada. Viam outra coisa. Ninguém saberia dizer o quê. Passou de novo a laranja, várias vezes. Tinha a prova de que a criança via mal ou não via sequer.

Nunca se conhecerão as correntes que, nesse instante, atravessam o coração de uma mãe. Nós, as pedras avermelhadas do pátio, que contamos a história, afeiçoamo-nos às crianças. É delas que queremos falar. Engastadas no muro, assistimos do alto às suas vidas. Há milénios que as testemunhamos. As crianças são sempre os esquecidos de uma história. Recolhem-se a casa como pequenas ovelhas, são mais afastadas do que protegidas. Ora, as crianças são as únicas a fazer das pedras brinquedos. Dão-nos nomes, pintalgam-nos, cobrem-nos de desenhos e escritos, penteiam-nos, colam-nos olhos, uma boca, cabelo de erva, empilham-nos em casa, lançam-nos para fazer ricochete, alinham-nos como baliza ou carris de comboio. Os adultos usam-nos, as crianças reviram-nos. É por isso que sentimos profunda afeição por elas. É uma questão de gratidão. Devemos-lhes esta história — todo o adulto devia lembrar-se de que tem uma dívida para com a criança que foi. São por isso elas que observamos, quando o pai as chama ao pátio.

As cadeiras de plástico arranham o chão. Eram dois. Um irmão mais velho, uma irmã mais nova. Morenos de olhos pretos, claro está. O mais velho, do alto dos seus nove anos, manteve-se rígido, com o tronco ligeiramente arqueado. Tinha as pernas magras e rijas das crianças da região, cobertas de crostas e nódoas negras, pernas que tinham por hábito trepar, que conheciam os declives e os arranhões das giestas. Instintivamente, pousou a mão no ombro da irmã, num reflexo protetor. Era arrogante, mas a sua arrogância advinha diretamente de um ideal elevado, romântico, que punha a resistência acima de tudo, e isso diferenciava-o dos pretensiosos. Intransigente, velava pela irmã mais nova, impunha regras equitativas aos seus numerosos primos, exigia aos seus amigos coragem e lealdade. Aqueles que não corriam nenhum risco, ou ostentavam um recorde no seu barómetro íntimo de cobardia, colhiam o seu desdém, e de modo irreversível. De onde lhe vinha aquela segurança, ninguém saberia dizer, salvo conjeturar que a montanha lhe infundira uma certa forma de dureza. Tivemos bastas vezes ocasião de o confirmar: as pessoas nascem em primeira instância de um local, e com frequência esse local assume o valor de parentela.

"É Desta Que Leio Isto"

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Naquela tarde, face ao pai, o mais velho manteve-se direito, o queixo trémulo, invocando no foro íntimo os seus valores cavaleirescos. Mas não precisou de fechar os punhos. Num tom de voz grave, o pai explicou-lhes que o irmãozinho seria sem dúvida cego. Tinham ido a consultas médicas e teriam a certeza dentro de dois meses. Era preciso encarar aquela cegueira como uma sorte, pois eles, o mais velho e a mais nova, seriam os únicos da escola a saber jogar às cartas em braille.

As crianças sentiram uma sombra de inquietação, depressa dissipada ante aquela perspetiva de celebridade. Apresentada daquele modo, a adversidade possuía um certo encanto. Cego, que importância tinha? Seriam os reis do recreio. O mais velho via naquilo uma lógica natural. Era já senhor da escola, seguro de si, da sua beleza, do seu desembaraço, e a natureza reservada adensava-lhe a aura. Passou portanto o jantar a negociar com a irmã o privilégio de ser o primeiro a mostrar as cartas à turma. O pai arbitrou, entrou no jogo. Ninguém compreendeu verdadeiramente que, naquele instante, se desenhava uma fratura. Em breve os pais falariam dos seus últimos instantes de despreocupação, pois a despreocupação, noção perversa, só se saboreia uma vez extinta, quando se transformou já em lembrança.

Depressa os pais se aperceberam de que o bebé era desprovido de tónus. A cabeça tombava como a de um recém-nascido. Era necessário pôr-lhe sempre uma mão na nuca. Os braços e as pernas permaneciam estendidos, sem qualquer força. Estimulado, não esticava as mãos, não reagia, não tentava comunicar. O irmão e a irmã bem podiam agitar guizos e brinquedos de cores vivas que o menino, de olhar perdido, não agarrava nada.

— Um ser desmaiado com os olhos abertos — resumiu o mais velho à mais nova.

— A isso chama-se um morto — retorquiu ela, apesar dos seus sete anos.

O pediatra achou que aquilo não augurava nada de bom. Aconselhou uma tomografia do cérebro, sob a alçada de um especialista eminente. Era preciso conseguir a consulta, deixar o vale para ir até ao hospital. A partir desse ponto, perdemos-lhes o rasto, pois na cidade ninguém precisa de pedras. Mas imaginamo-los a estacionar o carro, a limpar com zelo os sapatos no tapete comprido diante das portas automáticas. Aguardaram de pé numa sala, balouçando sobre os quadrados de borracha cinzenta, à espera de um professor. Ele veio, chamou-os. Trazia umas radiografias na mão. Convidou-os a sentarem-se. A sua voz foi suave, o veredicto, sem apelo. O filho crescerá, é certo. Mas permanecerá cego, não andará, será privado de fala, e os membros não obedecerão a nada, uma vez que o cérebro não transmite o que é preciso. Poderá chorar ou exprimir bem-estar, mas não mais do que isso. Será um eterno recém-nascido. Enfim, não era bem assim. O professor explicou aos pais num tom ainda mais maternal que a esperança de vida, naqueles casos, não ia além dos três anos.

Os pais lançaram um derradeiro olhar ao que fora a sua existência. Doravante, tudo o que se preparavam para viver os faria sofrer e tudo o que tinham vivido antes também, de tal modo a nostalgia da despreocupação pode levar à loucura. Encontravam-se, pois, sobre a falha, entre um tempo findo e um futuro terrível que, um e outro, carregavam o seu peso de dor.

Cada um fez apelo à sua reserva de coragem. Os pais morreram um pouco. Algures, no âmago do seu coração de adultos, extinguiu-se uma centelha. Sentaram-se na ponte, sobre o riacho, as mãos enlaçadas, ao mesmo tempo sós e juntos. As pernas pendiam no vazio. Envolveram-se nos sons da noite como quem se cobre com uma capa, para aquecer ou desaparecer. Tinham medo. Perguntavam-se: «Porquê a nós?» E também: «Como faremos?» A montanha manifestava a sua presença, murmúrio das cascatas, do vento, voo das libélulas. As suas paredes eram de xisto, uma pedra tão friável que era impossível aparelhar. Dava origem a derrocadas. Invejava-se a fidelidade adamantina do granito ou do basalto, mais a norte na região, ou ainda a porosidade absorvente do tufo, para os lados do Loire. Ao mesmo tempo, qual poderia oferecer tantos matizes de ocre? Que pedra senão o xisto ostentava este aspeto foliado, prestes a fundir-se? Era amá-lo ou deixá-lo. Habitar ali implicava tolerar o caos. E agora, sentados num parapeito, os pais sentiam que era necessário aplicar aquela lógica à sua vida.

Os outros dois filhos não compreenderam senão que uma força devastadora, a que ainda não davam o nome de desgosto, os tinha impelido para um mundo isolado do mundo. Um local onde a sua jovem sensibilidade se esfolaria sem que ninguém os ajudasse. A bela inocência tinha findado. Ficariam sós, face aos destroços do seu casulo. Mas naquele momento as crianças tinham ainda esse pragmatismo que salva vidas. Com drama ou sem drama, continuava a ser preciso saber a que horas se lanchava. Onde pescar lagostins. Estava-se em junho, o bebé tinha seis meses, mas eles viam-no de outro modo. Empenhavam-se em pensar, como se de ponto de honra se tratasse: junho está aí, e com ele os primos. Alhures, nasciam outros bebés que conseguiam ver, esticar as mãos, segurar as cabeças, mas este fluxo indiferente à sorte deles não era encarado como uma injustiça.

Este estado de espírito perdurou até ao inverno. O mais velho e a mais nova passaram um verão feliz, ainda que tivessem evitado o assunto do bebé com os primos e arrumado num canto da memória os rostos cansados dos pais, assim como os seus esforços delicados para levar o menino da espreguiçadeira para o sofá e do sofá para os almofadões no pátio. Regressaram às aulas, deram-se com os colegas, delimitaram o emprego do tempo em idas e vindas da escola, teceram as suas vidas em paralelo.

Deste modo, o Natal não foi maculado. Para as famílias da montanha, era um momento importante. De novo as portas dos automóveis bateram e o lugar se tornou o ponto de encontro do vale. Entrava-se no pátio com os braços carregados de vitualhas, devagar, pois o chão de ardósia tinha uma película de gelo. As exclamações de surpresa deixavam nuvenzinhas no ar. O céu era de um negrume metálico. Para guiar os convidados, as crianças tinham estendido grinaldas de luzes coloridas contra nós, posto archotes aos nossos pés. Depois cobriram-se com abafos, pegaram numa lanterna e partiram para a montanha, para aí deporem velinhas a fim de que o Pai Natal, lá do céu, discernisse a pista de aterragem. Nas lareiras crepitavam lumes tão vigorosos que os mais jovens não acreditavam que um dia pudessem apagar-se. Na cozinha acotovelavam-se quinze pessoas, a confecionar ensopados de javali, pratos frios, quiches de cebola. A avó materna, baixinha, vestida de cetim, distribuía ordens. Diante do pinheiro sobrecarregado, os primos sacavam das flautas transversais e de um violoncelo. Pigarreava-se, lançava-se uma nota. Muitos pertenciam a coros. Já não havia muitos crentes, mas conheciam todos os cânticos protestantes. Aos mais jovens era explicado que, ao contrário do que afirmavam os católicos (a quem os tios velhos chamavam ainda «os papistas»), o inferno não existia, não era preciso um cura para se falar com Deus, e cada um devia questionar sempre a sua fé. Primas enrugadas acrescentavam que um bom protestante mantém a sua palavra, cerra os dentes e confia-se pouco. «Lealdade, resistência e pudor», resumiam elas olhando para as crianças, que, elas, não olhavam para as tias. A música e os aromas elevavam-se até às enormes vigas, atravessavam as paredes e transbordavam para o pátio. Não era muito diferente dos serões de outrora, quando as pessoas se comprimiam à volta do lume, as mãos metidas debaixo da barriga dos cordeiros que se iam buscar quando o frio era intenso.

O menino estava instalado na sua espreguiçadeira, perto do lume. Era o único ponto fixo, naquela grande agitação. Aspirava os odores vindos da cozinha com o fervor de um pequeno animal, e um ligeiro sorriso alastrava por vezes no seu rosto. Um ruído particular (acorde dos violoncelos, choque minúsculo de uma terrina pousada sobre a mesa de carvalho, tessitura grave de uma voz, latido de um cão) provocava-lhe uma ligeira crispação dos dedos. Tinha a cabeça virada de lado, a bochecha encostada ao tecido da espreguiçadeira, uma vez que o pescoço não segurava nada. Os olhos, orlados de longas pestanas castanhas, erravam com lentidão e gravidade. Parecia muito atento e, todavia, ausente. Tinha crescido. Continuava sem vigor, mas o cabelo formara uma grenha densa. Os pais também tinham mudado.

No decurso daquele serão de Natal, desenharam-se ínfimas variações. O mais velho voltou-se para o menino. Porquê naquele momento preciso, não sabemos. Talvez a deficiência do irmão, agora visível, lhe interditasse a indiferença. Talvez ele próprio, também mais crescido, dececionado com uma realidade que correspondia tão-pouco às suas altas aspirações, visse naquela criança as vantagens de um companheiro tranquilo, tão constante e fiel a si próprio que não o dececionaria. Ou talvez, simplesmente, tivesse tomado consciência da situação, e o seu ideal cavaleiresco o impelisse, de modo inelutável, a cuidar e a proteger o mais fraco. Era sempre o mais velho que limpava a boca do menino, lhe apoiava as costas, lhe afagava a cabeça. Afastava os cães, pedia calma. Já não brincava com os primos nem com a irmã. Estes últimos não estavam em si. Conheciam-no como um belo rapaz reservado que, até agora, fervia em pouca água, era um pouco zombeteiro, ciente da sua superioridade. Quem tinha seguido a pista dos javalis, ensinado o tiro com arco, ido à chinchada dos marmelos? Quem conseguia avançar pela água alta do ribeiro, que as tempestades tornavam barrenta? Caminhar na noite de breu, absolutamente opaca, estridente e perigosa? Baixar o capuz com um gesto decidido, para evitar que os morcegos — o terror da irmã e dos primos — se agarrassem aos seus densos cabelos castanhos? O mais velho. Solitário e majestoso, de uma segurança fria. A autoridade tranquila dos senhores, pensavam os familiares.

Desta vez, não sugeriu nada. A irmã e os primos sapateavam à volta dele, não ousando perturbá-lo, mas em efervescência. O mais velho mostrava-se mais silencioso que o habitual. Não se afastava do lume, que sabia espevitar, velando para que o irmão se mantivesse quente. Tinha posto uma almofada na espreguiçadeira, para lhe erguer um pouco a cabeça. Lia, o dedo no punho cerrado do menino — que mantinha as mãos fechadas, como bebé eterno que seria. Era um espetáculo um pouco estranho ver aquele rapaz de uma dezena de anos, de boa saúde, tão recolhido como o outro, já estranho sem ser ainda bizarro: com o tamanho de um menino de quase um ano, mas a boca entreaberta, sem esforço de contacto, muito calmo, os olhos pretos errantes. A semelhança física de ambos saltava à vista, e ninguém saberia dizer porque é que aquela parecença partia o coração. Quando o mais velho erguia a cabeça do livro, o olhar fixo e sombrio, as grandes pestanas pareciam a réplica viva do pequeno ser a seu lado.

Aquela noite de Natal marcou algo irreversível. Durante os meses seguintes, o mais velho afeiçoou-se profundamente. Antes, havia vida, os outros. Agora, havia o seu irmão. Os quartos de ambos eram contíguos. Todas as manhãs, o mais velho acordava antes dos restantes, pousava um pé no chão, estremecia ao contacto com a tijoleira. Abria a porta, dirigia-se para a caminha com os torneados brancos de ferro na qual ele e a irmã tinham também dormido, antes de crescerem e exigirem um leito à medida das suas necessidades. O menino, por seu lado, não reclamaria nada. Por isso, manter-se-ia na caminha. O mais velho abria a janela, deixava a manhã entrar. Sabia tirar delicadamente o menino da cama, a mão a segurar-lhe a nuca, e transferi-lo para a mesinha acolchoada. Mudava-lhe a fralda, vestia-o, depois descia com cuidado para a cozinha, para lhe dar a fruta triturada que a mãe preparara na véspera. Mas, antes de executar todos estes gestos, debruçava-se sobre o colchão. Encostava a sua bochecha à do menino, maravilhado com aquela palidez tão doce, e permanecia assim, naquele contacto imóvel, pele contra pele. Saboreava a sensação cremosa transmitida por aquela bochecha e o facto de estar indefesa, recetiva ao apelo de uma carícia, recetiva até, quem sabe, de propósito para ele, o mais velho. A respiração do menino era regular. Os olhos de ambos não olhavam na mesma direção, o mais velho bem o sabia. Ele observava os torneados da cama e, atrás destes, a janela que dava para o ribeiro; o menino contemplava a lonjura, apreendendo um ritmo que ninguém decifrava. Aquilo convinha ao mais velho. Seria os olhos dele. Falar-lhe-ia da cama e da janela, da espuma branca da torrente, da montanha para lá do pátio, do chão de ardósia de um azul-noturno, da porta de madeira, da muralha do velho muro, das pedras e dos nossos reflexos acobreados, das flores que brotavam dos vasos bojudos, com duas asas pequenas parecidas com orelhas. Junto do menino, dava por si a ser paciente. Durante muito tempo, a sua postura fria fora a melhor fachada para acalmar uma inquietação. Adorava provocar o acontecimento para nunca ter de esperar por ele. Seguiam-no, ofuscados por este ímpeto claro e sem hesitação. A verdade era que ele temia tanto ver-se à mercê de uma coisa que preferia precipitá-la. Assim, em vez de recear a barafunda de um recreio, a obscuridade total da noite montanhosa e o ataque dos morcegos, assumia o controlo. E lançara-se para o recreio, na noite ou sob as abóbadas da cave habitadas por morcegos que o pânico de uma intrusão fazia esvoaçar em todas as direções.

Com o menino, nada daquilo funcionava. O menino estava simplesmente ali. Nada havia a temer, uma vez que ele não representava qualquer ameaça ou promessa. O mais velho sentia em si uma capitulação. Já não valia a pena antecipar-se. Algo o tocava, uma mensagem vinda de longe que convocava a quietude das montanhas, a presença imemorial de uma pedra ou de um curso de água, cuja existência bastava a si própria. Obrava-se nele a submissão às leis do mundo e seus contratempos, sem revolta nem amargura. O menino estava ali de uma forma tão evidente como uma sinuosidade no terreno. «Mais vale aguentar que esperar», dizia ele de si para si, e era um provérbio das Cevenas. Não devia revoltar-se.

Amava sobretudo a bondade impassível, a candura primitiva do menino. O perdão fazia parte da sua natureza, pois não emitia qualquer juízo. A sua alma ignorava, de modo absoluto, a crueldade. A sua felicidade resumia-se a coisas simples, a limpeza, a saciedade, a macieza do pijama violeta ou uma carícia. O mais velho percebeu que tinha ali a experiência da pureza. Ficou transtornado. Ao lado do menino, já não procurava apressar a vida com receio de que ela lhe fugisse. A vida estava ali, mesmo à mão de semear, nem medrosa nem combatente, apenas ali.

Pouco a pouco, começou a descodificar os seus choros. Sabia qual dava conta de uma dor de barriga, de uma fome, de um desconforto. Possuía já um saber que se esperava que descobrisse mais tarde, como mudar uma fralda e dar um puré de legumes à boca. Atualizava com regularidade uma lista de coisas a comprar, como outro pijama violeta, noz-moscada para aromatizar os purés, loção de limpeza. Entregava a lista à mãe, que a executava com um murmúrio de agradecimento no olhar. Adorava a serenidade do menino quando este cheirava bem e se sentia aquecido. Nessas alturas, o menino gorjeava de conforto, e em seguida a sua voz elevava-se como um canto antigo, os lábios arrepanhados num sorriso, as pestanas a baterem, a voz mais alta, numa melopeia que não falava senão da satisfação das necessidades básicas, e talvez também da ternura prodigalizada.

O mais velho trauteava pequenas canções. Compreendera depressa que a audição, o único sentido que funcionava, era um instrumento prodigioso. O menino não conseguia ver, nem segurar, nem falar, mas conseguia ouvir. Consequentemente, o mais velho modulava a sua voz. Sussurrava-lhe os matizes de verde que a paisagem oferecia ao olhar, o verde-amêndoa, o vivo, o plúmbeo, o suave, o cintilante, o estriado de amarelo, o baço. Esfregava ramos de verbena seca junto da sua orelha. Era um som violento, que ele contrabalançava com o marulho de uma bacia de água. Por vezes retirava-nos do muro do pátio para nos largar da altura de alguns centímetros de modo que o menino captasse o impacto surdo de uma pedra no chão. Falava-lhe das três cerejeiras que havia muito um camponês trouxera às costas desde um vale longínquo. Tinha trepado a montanha e depois descido por ela, ajoujado sob a carga daquelas três árvores que, segundo toda a lógica, não poderiam viver naquele clima nem naquela terra. No entanto, miraculosamente, as cerejeiras haviam medrado. Tornaram-se o orgulho do vale. O velho camponês partilhava a sua colheita de cerejas, que todos degustavam com solenidade. Na primavera, dizia-se que as flores brancas eram prenúncio de felicidade. Ofereciam-nas aos enfermos. O tempo passou, o camponês morreu. As três cerejeiras seguiram-no. Não se procurou uma explicação porque ela estava à vista, na evidência dos ramos subitamente estiolados: as árvores acompanhavam aquele que as plantava. Ninguém teve coragem de tocar nos troncos secos e cinzentos, de tal modo se assemelhavam a lápides, que o mais velho descrevia ao menino nos seus mais ínfimos entalhes. Nunca tinha falado tanto com ninguém. O mundo tornara-se uma bolha sonora, cambiante, na qual era possível tudo traduzir em ruído e voz. Um rosto, uma emoção, um passado tinham a sua correspondência audível. Deste modo o mais velho descrevia aquela região onde as árvores nascem sobre as pedras, povoada por javalis e aves de rapina, aquela região que se revolta e reclama os seus direitos sempre que se constrói um murete, um pomar ou uma serventia, impondo o seu declive natural, a sua vegetação, os seus animais, exigindo sobretudo uma imensa humildade ao homem. «É a tua terra», dizia ele, «tens de a ouvir.» Nas manhãs do Natal, amarrotava o papel de embrulho e descrevia-lhe, com pormenor, a forma e as cores do brinquedo que não teria préstimo. Os pais aceitavam, um pouco perplexos, mais ocupados em aguentarem-se. Os primos, num impulso de delicadeza fatalista, punham-se, também eles, a descrever em voz alta os brinquedos, e depois, por extensão, a sala, a casa, a família — isto até ao delírio, e o mais velho também se ria.

Quando a casa dorme, ele levanta-se. Ainda não um jovem homem, na verdade mais um pequeno homem. Aperta um cobertor sobre os ombros. Sai para o pátio e aproxima-se do muro. Encosta a fronte a nós. As mãos erguem-se à altura da cabeça. É uma carícia ou um gesto de condenado? Não diz nada, imóvel na obscuridade glacial, o rosto muito perto de nós. Aspiramos o seu hálito.

Quando está bom tempo e a montanha parece resfolegar por mercê dos primeiros raios, o mais velho dirige-se para as traseiras da casa. O terreno sobe, a contrapelo do ribeiro que multiplica as cascatas. Avança com cautela, os braços carregados com aquele menino grande cuja cabeça bamboleia. Sobre a anca, bate a compasso um saco com uma garrafa de água, um livro e uma máquina fotográfica. Identifica o local onde o terreno se torna plano. Os seixos formam uma pequena praia. Pousa o corpo com delicadeza, a mão a apoiar a nuca. Ajeita a cintura, desloca um pouco o queixo, para que fique à sombra de um pinheiro imenso. O menino suspira de conforto. O mais velho esfrega as agulhas, que emanam um perfume de citronela, e passa-lhas sob o nariz. Estes pinheiros não são da região, foi a sua avó que os plantou há muito tempo. É forçoso acreditar que amaram aquela montanha, pois pegaram e medraram, mesmo tendo a sua majestosidade se convertido num estorvo. São incontáveis os ramos tombados sobre postes elétricos, e a terra privada de luz pelas suas copas. O mais velho vê aqueles pinheiros como anomalias, e sem dúvida não será por acaso que deita o irmão debaixo deles.

Adora aquele sítio. Permanece sentado ao pé do menino. Fletiu os joelhos, que abraça. Depois lê e, quando acaba de ler, não lhe fala. Não lhe descreve nada. O mundo vem ter com eles. As libélulas azul-turquesa crepitam ao passarem junto da orelha. Os amieiros mergulham os ramos na água, criando uma acumulação de lodo viscoso. As árvores formam duas paredes que ladeiam o corredor do riacho e, havendo imaginação, o mais velho poderia crer-se numa sala, com lajes de pedra lisa e um teto de pinheiro. Tira algumas fotografias. Aqui o riacho corre calmo, tão límpido que se vê no fundo o tapete de seixos dourados. Depois a superfície enruga-se e jorra em cachão, desaguando em bacias imóveis que, por seu turno, se estreitarão em cascatas. O mais velho escuta a fuga daquele ribeiro, o seu ímpeto. A toda a volta, velam muralhas ocres e verdes, ramos ondulantes como mãos e flores com forma de confetes.

A mais nova junta-se-lhe com frequência. Os dois anos que os separam parecem por vezes vinte. Ele observa-a a avançar lentamente pela água gelada, afastando os dedos ao molhar a barriga. Às vezes, acocorada com os tornozelos dentro de água, concentrada, tenta apanhar os alfaiates que deslizam à superfície, lançando um grito de alegria quando agarra um. Chapinha, salta, constrói um dique com seixos ou um pequeno castelo. Inventa histórias, tem a imaginação que a ele falta. Um pau transforma-se em espada, a cúpula de uma bolota torna-se um elmo. Conversa a meia-voz, concentrada. A luz envolve os seus cabelos castanhos, demasiado compridos, que ela afasta com um gesto impaciente. O mais velho adora vê-la viver. Repara que ela já não precisa de braçadeiras. Que os seus ombros não se avermelham graças ao protetor solar. De súbito, pensa no ninho de vespas que, no verão anterior, se escondia no grande pinheiro. Ergue-se, verifica, volta a sentar-se. Mantém-se ali, o coração contraído mas satisfeito, rodeado pelos que ama, a irmã, o irmão e nós, as pedras, sob a forma de cama ou de brinquedo.

Pouco a pouco, o menino reconheceu a sua voz. Agora sorria, gorjeava, chorava, exprimia-se como um bebé, enquanto o corpo crescia. Como permanecia deitado e não mastigava, o palato estreitou-se e elevou-se. Com isso, o rosto tornou-se mais ovalado, o que lhe aumentava os olhos. O mais velho ficava longos instantes a tentar seguir aqueles berlindes negros que pareciam dançar lentamente. Nunca pensava nas outras crianças, que, com aquela idade, teriam feito imensos progressos. Não o comparava. Menos por reflexo de proteção do que em virtude de uma felicidade plena, completa, tão original que a norma lhe parecia insípida. Em consequência, desinteressava-se dela.

Instalava-se o menino no sofá, a cabeça sempre apoiada numa almofada. Isso bastava para o fazer feliz. Escutava. Ao seu contacto, o mais velho aprendeu o tempo morto, a imóvel plenitude das horas. Fluía nele, como ele, para permitir o acesso a uma sensibilidade excecional (roçagar ao longe, frescura do ar, murmúrio do choupo cujas folhinhas, reviradas pelo vento, brilhavam como pepitas, espessura de um instante prenhe de angústia ou repleto de alegria). Era uma linguagem dos sentidos, do ínfimo, uma ciência do silêncio, algo que não se ensinava em mais nenhum lugar. A criança fora da norma, saber fora da norma, pensava o mais velho. Aquele ser nunca aprenderia nada e, afinal, ensinava os outros.

A família comprou um pássaro para que o menino ouvisse os chilreios. Adquiriu-se o hábito de ligar o rádio. De falar alto. De abrir as janelas. De deixar entrar os sons da montanha para que o menino não se sentisse só. A casa ressoava com o som das cascatas, dos badalos das ovelhas, dos balidos, dos latidos dos cães, dos gritos das aves, dos trovões e das cigarras. O mais velho não se demorava à saída da escola. Corria para o autocarro. Na sua cabeça, entrechocavam pensamentos alheios a tudo aquilo. Haverá ainda sabonete suave para o banho, soro fisiológico, cenouras para um puré? O pijama violeta de algodão estaria seco? Não ia a casa dos amigos. Não olhava para as raparigas, não ouvia música. Estudava muito.

O menino passou dos quatro anos. Era mais pesado de transportar — pois o seu crescimento prosseguia. Vestiam-no com pijamas que pareciam fatos de treino, o mais grossos possível, uma vez que a imobilidade fazia dele um ser friorento. Era preciso deslocá-lo com frequência, pois de outro modo a pele avermelhar-se-ia em certas zonas. A posição deitada provocara-lhe uma luxação das ancas. Não era dolorosa, mas fazia-o manter as pernas arqueadas. Estas eram magras, de uma palidez quase tão translúcida como o rosto. O mais velho massajava-lhe com frequência as coxas com óleo de amêndoas doces. Porque tinha passado ao tato. Abria docemente as mãozinhas sempre fechadas e pousava-as sobre um material. Da escola, trouxe feltro. Da montanha, gravetos de azinheira. Acariciava a parte interna dos pulsos com um raminho de hortelã, fazia rolar avelãs sobre os dedos, falava-lhe continuamente. Nos dias de chuva, abria a janela e punha o braço do irmão do lado de fora, para que este sentisse o contacto do aguaceiro. Ou então soprava suavemente para a sua boca. O milagre produzia-se amiúde. A boca do menino distendia-se num imenso sorriso, acompanhado de um fio de voz deleitada. Um som de beatitude, um pouco tolo, que se apoiava num silêncio e depois recomeçava, um pouco mais agudo, um pouco mais aberto, era como uma música, pensava o mais velho. Ele não se perguntava, como faziam os seus pais à noite, como teria sido a voz do menino, se conseguisse falar, como teria sido o seu temperamento, jovial ou taciturno, caseiro ou turbulento, como teria sido o seu olhar, se conseguisse ver. Aceitava-o como era.

Numa tarde de abril, durante as férias da Páscoa, aproveitou o facto de os pais terem ido às compras para o levar ao parque infantil. Era um espaço verde à saída da localidade, delimitado por torniquetes e baloiços. Os pais aceitaram com um aceno inquieto da cabeça, prometeram demorar pouco e dirigiram-se para o supermercado. O mais velho retirou o menino da sua cadeira especial para o carro. Agora exigia toda uma arte. Era preciso sentá-lo no antebraço e segurar-lhe a nuca. O mais velho sentia a respiração do menino no pescoço. Começava a ter o seu peso. De longe, dir-se-ia uma criança desmaiada.

Atravessou a estrada, franqueou o portão e estendeu o irmão delicadamente sobre a relva. Depois deitou-se de costas, ao lado dele, para lhe descrever em voz baixa a paisagem em torno de ambos. Os gritos vindos da caixa de areia, o rangido dos torniquetes e o eco distante de um mercado envolviam-nos com um forro sonoro. Pontuava as palavras com um beijo no pulso. Vigiava as moscas. O seu receio era que entrasse um inseto na boca do menino (que respirava de lábios entreabertos, devido à elevação e ao estreitamento do palato). De súbito, uma sombra cobriu-lhe o rosto. Ouviu uma voz.

— Meu rapaz, desculpa intrometer-me. Metes-me dó. Enfim. Para quê tomar conta de macaquinhos? Para ganhar mais dinheiro?...

Era uma mãe de família, animada por intenções louváveis — em geral, o equipamento dos grandes assassinos. O mais velho soergueu-se nos antebraços. A senhora não era da terra. Não tinha um ar malévolo.

— Mas, minha senhora, é o meu irmão — disse ele.

Ela tossicou, incomodada. Voltou-se e gritou os nomes dos filhos. Nesse tempo, o mais velho não sentia nem mágoa nem cólera. Não contemplava a malevolência. Aquela senhora tinha-se enganado redondamente, era tudo. E o menino tinha direito ao seu quinhão de bem-estar.

Mais tarde, viria o constrangimento dos olhares pousados sobre o carrinho, um sentimento de vergonha que ele viveria como uma traição ao irmão. Seria traçada a invisível e imensa fronteira com eles, fortalecidos pela sua normalidade dominante. Eles seriam o orgulho ruidoso das famílias, esses seres de correrias e algazarras, irradiando vida, ignorando corpos amorfos e palatos estreitos e elevados, saltando dos automóveis sem necessidade de serem retirados de cadeiras especiais; seriam os pobres desgostos dos colegas de turma cujo universo vacilaria devido a uma má nota; o sorriso de uma gentileza insustentável, ou mesmo de piedade, que tornaria a repulsa quase preferível. Seriam as centenas de milhares de minúsculas circunstâncias que remeteriam o mais velho à solidão. Então, forçosamente, a montanha surgiria como uma massa desprovida de moral, acolhedora como o são os animais. Havia ali a etimologia de refúgio, fugere, fugir. A montanha permitia o distanciamento, um passo atrás em relação ao mundo. Ao mesmo tempo, o mais velho sabia-o, era preciso harmonizar-se com eles, porque eles eram a vida maioritária e buliçosa. Não devia isolar-se. O mais velho considerava-os como um bebedouro onde se dessedentar de normalidade. Um lanche de aniversário, uma competição de tiro com arco, um jantar com amigos dos pais, uma ida ao supermercado colmatavam o isolamento, relembravam que os outros o mantinham de pé, assinalavam uma pertença, palpitavam como um grande coração. Na fila do supermercado, à espera da sua vez na cantina, na soleira de uma casa decorada com balões, o mais velho podia fingir que era como os outros. Uma vez que o carrinho se enchia com fraldas, boiões de comida e óleo de amêndoas doces, podia fazer-se de conta que se tinha um bebé em casa. Em casa dos colegas, respondia «dois» quando lhe perguntavam: «Quantos irmãos tens?» Em seguida arranjava maneira de não responder a: «Andam em que ano?» Aprendia a trocar as voltas. Tinha vergonha de ter de trocar as voltas. Gostaria de poder dizer: «dois, um deles deficiente», desejava que depois se passasse a outro assunto, como se fosse natural. Em vez disso, sentia-se culpado. Os outros terríveis tinham esse poder de criar uma culpa onde ela não existia, à imagem daquela carrinha pintalgada que emitia uma música muito alta e percorria o vale todos os verões a vender farturas de castanha. Os primos faziam uma espera à carrinha, os adultos saíam das casas de porta-moedas em riste. Mal eram compradas, as farturas começavam a ser comidas a toda a brida, e as crianças imploravam por mais. Quando o mais velho ouviu as primeiras notas da carrinha, encontrava-se no pomar, abaixo da estrada, à beira da água, ocupado a recolher maçãs do chão para um pano de cozinha. Não eram comestíveis, cheias de lagartas ou picadas pelos pássaros, mas isso não tinha importância. Tinha trazido o menino e a sua espreguiçadeira até ao pomar para lhe dar a sentir, no côncavo da palma da mão, a forma irregular das reinetas. Gostava muito daquele lugar fresco, com árvores de troncos protegidos por redes, logo a seguir à ponte. Como ficava num nível inferior à estrada, os automóveis não o viam. Aliás, à aproximação do motor, o mais velho ergueu a cabeça. Acima dele, a carrinha passou, o bando dos primos surgiu quase ao mesmo tempo. O que fazer? Ficar ali e privar-se das farturas? Impensável. Regressar discretamente, com o lastro de um menino sem vigor? Era evidente que não. Então, sem refletir, fez rolar as maçãs do pano, sacudiu o tecido e cobriu o menino. Subiu a rampa do pomar, chegou à estrada, à ponte, e correu para a carrinha sem se voltar.

Reuniu-se aos primos excitados, ajudou a irmã a desembrulhar a sua fartura. Sorriu como os outros. Não se atrevia a virar a cabeça para o pomar. A fartura sabia a cartão.

Quando a carrinha partiu e tomou a estrada estreita, eclipsou-se discretamente e correu. Quase deslizou na gravilha da rampa que conduzia ao pomar. Viu a erva, a sombra dançante dos ramos, a armação da espreguiçadeira, depois o pano branco; os cabelos castanhos passavam além dele, dois pequenos punhos fechados saíam de cada lado; as maçãs estavam no chão. O menino não chorava, atento àquele material macio que o tinha subitamente coberto. Como a cabeça estava de lado, tinha conseguido respirar. O mais velho ajoelhou-se, a garganta apertada. Retirou o pano. Ergueu delicadamente a cabeça. Encostou a face à sua, murmurando várias vezes «desculpa». O menino não emitiu qualquer som, piscou os olhos, incomodado com as gotas tépidas e salgadas que lhe caíam sobre o rosto.

Mas por agora, no momento em que a mãe de família interveio no parque infantil, ele não conhecia a nocividade dos outros, a sua estupidez e a sua tirania. As carrinhas podiam passar. Era-lhe indiferente. A sua linha orientadora era fazer como a montanha, proteger. A inquietude debruava a sua vida. Tocava nas mãos do menino para lhe verificar a temperatura, apertava melhor o cachecol da irmã mais nova, proibia-a de se aproximar daquelas pequenas ovelhas nervosas que avançavam em fileira cerrada pela estrada. Um dia ela apareceu com um leirão ferido, ele ordenou-lhe que o lançasse à água. Sentia em relação à irmã o mesmo instinto protetor que o impediria mais tarde de ter filhos. Estremecendo ao menor ruído do mundo, temendo o pior, não se equilibra ninguém. Era o preço a pagar, pensava ele. Era a sua missão, inscrita tão profundamente como as estrias ocres que decoravam as pedras. Da vez em que derrubaram o imenso cedro junto da azenha, foram todos à procura das crianças, para que assistissem ao espetáculo. Não estavam em lado nenhum. O mais velho, que temia que um ramo magoasse a irmã, tinha-a levado para mais alto, na montanha, a colher espargos silvestres. Passaram a manhã curvados sobre o chão, em busca das torcidas eriçadas de espinhos. Castigaram-no, permaneceu impassível, pois para ele aquilo não tinha discussão. Derrubar um cedro era perigoso, ele tinha afastado a irmã. Sem apelo nem agravo — visto que a vida pode desfazer a felicidade muito facilmente. Visto que uma infância pode desmoronar-se, um corpo pode não reagir, os pais podem sofrer. Um dia, um professor perguntou-lhe que profissão gostaria de ter, e ele respondeu: «Mais velho.»

A irmã mais nova, por seu lado, parecia despreocupada. A menina era saudável e bonita. Por vezes mascarava o menino, que assemelhava a uma boneca viva. O mais velho não gostava disso. Franzia os sobrolhos e retirava a maquilhagem, o chapéu de renda, as pulseiras. Não lhe queria mal. Via naquilo o refrigério de uma vivacidade, e aquela turbulência fazia-lhe bem, era uma variação do ser acamado como um velho. Retirava dela a alegria que ele já não tinha. A mais nova não parecia entender inteiramente a situação. Continuava a fazer perguntas, a ter caprichos, a evadir-se em histórias imaginárias. Continuava a ser criança. Ele invejava-lhe aquela doce inocência, até ao momento em que uma menina de um lugarejo vizinho veio brincar com ela no pátio. Esta apontou com o queixo para o mais velho e perguntou à mais nova se tinha outros irmãos. Ela respondeu que não.

Um dia, o infantário onde o menino ficava durante o dia informou os pais de que não tinha meios para continuar a ocupar-se dele. Era um estabelecimento situado às portas da cidade, que habitualmente recebia crianças desfavorecidas, em espera, em trânsito, por vezes com deficiências ligeiras, mas não com o grau do menino. O pessoal não dispunha do material necessário, e ainda menos de formação específica. Ora, desde havia pouco tempo, o menino era por vezes acometido de tremuras nervosas. Os olhos piscavam muito depressa, os punhos moviam-se de modo brusco. Pequenos ataques de epilepsia, tinha prevenido o professor, nada de doloroso para ele, passavam com umas gotas de Rivotril, mas eram aparatosos o bastante para infundir medo. O menino também se tinha engasgado mais do que uma vez, e as senhoras do infantário, em pânico perante a sua tosse, sentiam-se desarmadas. Sem falar da epidemia de gripe, que podia derrubar um corpo tão frágil. Era preciso encontrar-lhe um sítio. Existiriam organismos, instituições, casas especiais?, perguntaram os pais. Muito poucos. O país deles queria robustez, bons mecanismos. Não gostava dos diferentes. Não tinha nada previsto para eles. As escolas fechavam-lhes as portas, os transportes não estavam equipados, as vias públicas eram armadilhas. O país ignorava que, para alguns, um lanço de escadas, os rebordos e os buracos equivaliam a falésias, muralhas e penhascos. Por isso, um local pensado para deficientes... Podíamos ouvir, e adivinhar, pela porta aberta para o pátio, os fragmentos de informações e as vozes carregadas de perguntas. Ao longo dos anos tínhamo-los visto, instantes de solidão como aquele. Porque os pais estavam sós. Adquiriram o hábito de ir à cidade fazer maratonas administrativas. Víamo-los partir muito cedo, subir ao pequeno parque de estacionamento, meterem-se no carro. Levavam duas sanduíches, uma garrafa de água. Aquelas deslocações podiam durar um dia inteiro. Nas câmaras municipais, nos serviços sociais, nas instâncias pretensamente destinadas a apoiar as famílias, nos ministérios, faziam-nos passar um mau bocado, multiplicando os entraves. O percurso era glacial, inumano, inçado de acrónimos, MDPH, ITEP, IME, IEM, CDAPH. Os interlocutores mostravam-se absurdamente minuciosos ou de uma negligência odiosa, dependia. Os pais falavam daquilo à noite, em voz baixa. Tiveram de vergar-se a regras insanas. Entraram em salas cinzentas onde os aguardava um júri que decidiria se, sim ou não, eram elegíveis para um subsídio, um recurso, um rótulo, um sítio. Tiveram de provar que, desde o nascimento do filho, a vida tinha mudado a suas expensas; provar também que o filho era diferente, atestados médicos, exames neuropsicométricos, ordenados numa pasta ainda mais preciosa do que a carteira deles. Pediram-lhes ainda que traçassem um «projeto de vida», uma vez que da vida antiga restava muito pouco. Os pais cruzaram-se com outros, dilacerados, com pouco dinheiro porque as ajudas demoravam a chegar, ou aturdidos porque um departamento não passava o processo a outro e em caso de mudança de casa era preciso recomeçar do zero. Descobriram a obrigação de todos os três anos provar que o filho continuava deficiente («Porque acham que as pernas dele vão ficar como novas em três anos?», tinha gritado uma mãe à porta do gabinete.) Ouviram um casal explodir porque, ao que parecia, o filho de ambos não era deficiente o bastante para beneficiar de apoio, mas era demasiado deficiente para esperar ser integrado. A mãe tinha deixado de trabalhar para tomar conta do menino, uma vez que ninguém o aceitava. Os pais descobriram a grande terra de ninguém das franjas, povoadas por seres sem direito a cuidados, nem projetos nem amigos. Aprenderam que a doença mental, deficiência invisível, representava uma dificuldade suplementar, «era preciso que a minha filha fosse aleijada para vocês mexerem o cu?», rugiu um pai na receção de um centro médico-social, aberto apenas durante a manhã. Mais do que uma vez, o mais velho viu os pais, exaustos, levantarem-se cedo, regressarem de mãos a abanar, preencherem formulários, processos, fazerem fila, correrem atrás de atestados, serem deixados pendurados ao telefone, contestarem uma data ou informação falsa, na realidade tornarem-se suplicantes, pensava ele, tanto assim que desenvolveu um ódio inextinguível pela administração. Este foi o único sentimento negativo que persistiu nele de forma definitiva, ao ponto de, uma vez adulto, não conseguir aproximar-se de um guiché, fosse ele qual fosse, subscrever qualquer coisa, preencher um formulário. Não renovava cartões nem assinaturas, preferia pagar coimas e ter custos adicionais a lidar de novo com aquela burocracia. Nunca pediu um visto na vida, jamais pôs os pés num notário ou num tribunal, não comprou carro nem maapartamento. Nunca ninguém percebeu aquele bloqueio, salvo a mais nova, que sabia calcular os impostos para retenção na fonte, anular um tarifário telefónico, pagar um seguro. A única exceção foi a renovação do bilhete de identidade, que exigia a presença do mais velho. A mais nova marcou a ida, reuniu os documentos, acompanhou-o, sem ousar dirigir-lhe a palavra, de tal modo o mais velho, rígido e transpirado na cadeira de plástico, só pedia para fugir.

Com extrema tristeza, os pais voltaram-se para outras soluções. Procuraram mais longe, mais específico, mais caro. Consideraram mesmo mandar o filho para o estrangeiro, para um país que não encarasse os atípicos como um peso. Mas renunciaram, pois a própria ideia de saberem o seu menino tão longe esmagava-os. Caída a noite, no pátio, a mãe enxugava os olhos e depois acendia um cigarro. O pai enchia-lhe de novo a caneca com uma tisana de verbena, suspendia o gesto, ia buscar uma garrafa de vinho.

O Nosso Irmão
O Nosso Irmão créditos: Editorial Presença

Livro: O Nosso Irmão

Autor: Clara Dupont-Monod

Editora: Editorial Presença

Publicação: 21 de setembro

Preço: 11,61€

Ouviram falar de uma casa. Uma casa isolada, a centenas de quilómetros dali, em forma de L, instalada numa pradaria, cheia de crianças como a sua, acarinhadas por freiras. Onde viveriam elas, iriam para casa à noite, seriam oriundas da região? Saberiam que o menino era friorento mas que a lã o arranhava, que adorava puré de cenoura e acariciar a erva, que um bater de porta o sobressaltava? E poderiam elas fazer face a uma crise convulsiva, a uma bucha atravessada na garganta ou a um calázio, essa inflamação das pálpebras que o menino desenvolvia cada vez com maior frequência? O mais velho nunca obtinha respostas. Detestava aquela paisagem plana e sem pedras, aquele clima ameno. Considerava absurdos os muros que cingiam a casa e o jardim. Como se o menino conseguisse fugir a sete pés, pensava ele. Passado um portão azul, o automóvel avançou pelo saibro, que rangeu alto. A casa era baixa, com telhado de telhas, fachada branca, e, no espaço de um segundo, a nostalgia das paredes cor de areia da sua terra, uma tonalidade tão particular do xisto misturado com a cal, apertou-lhe o coração. Viu-se rodar nos calcanhares, tirar no menino da sua cadeira especial e correr pela planície, a mão a segurar-lhe a nuca. De tão absorto neste pensamento, nem correspondeu à saudação das senhoras de coifa branca.

Não saiu do carro. Recusou visitar o local, assim como a despedida. Concentrou-se nos ruídos, como o menino lhe ensinara. Ceceio da bagageira, deslizamento do saco a ser retirado (teriam lá posto o pijama violeta, o seu preferido? E um seixo do riacho, um ramo, qualquer coisa que lhe recordasse as montanhas?), passos sobre a gravilha, rangido do portão, silêncio, alguns chilreios de aves que não reconheceu, de novo ruído de passos, estalido da porta, tosse do motor. Deixou os olhos pretos numa pradaria e regressou à sua vida.

O pai disse piadas sobre as freiras, os primos telefonaram, rindo do infortúnio de terem de conviver com «os papistas». Mas todos ficaram aliviados por saber que o menino fora acolhido. Todos, menos o mais velho.

No seu âmago, instalou-se uma tristeza. Evitava os almofadões do sofá, ainda moldados pelo corpo do menino. Não mais regressou ao riacho. Deixou de fazer listas, mudou a sua rotina matinal. Passou a demorar-se à saída da escola, uma vez que agora ninguém tinha necessidade de fraldas ou de puré de cenoura.

Cortou o cabelo, começou a usar óculos. Dedicou-se à sua nova escola como podem dedicar-se aqueles cuja memória transborda, com uma seriedade intimidante. Os outros mantinham-se à sua volta, aqueles famosos outros que tinham erguido, com um olhar, uma barreira entre o seu irmão e o resto do mundo. Tinha de lidar com eles. Sabia-o. Integrou-os o suficiente na sua vida para não ser ostracizado, mas não o suficiente para se abrir e afeiçoar. Juntava-se aos grupos, encontrava sempre alguém com quem almoçar na cantina, ia a algumas festas. Evitava estar só, mesmo sendo solitário. Tudo era cálculo e aparência. Os seus despertares eram marejados de lágrimas, pois, no instante em que abria os olhos, a primeira coisa que ouvia era o som do riacho, e depois, no segundo seguinte, atingia-o a certeza da caminha sem lençol, a dois passos do seu quarto. Então o coração endurecia-se-lhe, sentia-se fisicamente empedernir, tornar-se um bloco compacto e pesado, e no instante seguinte explodia sem ruído, libertando milhares de estilhaços que se enterrariam no dia à sua frente. Tocava no peito e surpreendia-se sempre por não sangrar. Respirava com dificuldade, mantinha-se assim, os pés nus sobre a tijoleira, o corpo dobrado. Ia buscar algures a coragem de se erguer, passar diante do quarto do menino, enfrentar a banheira vazia. No rebordo do lavatório, o frasco de óleo de amêndoas doces já não tinha utilidade.

Fosse aonde fosse, tinha de suportar a ausência física. Era o mais difícil. O toque da pele pálida e macia, a face contra a face, o seu cheiro, a textura dos cabelos e os olhos pretos errantes. O gesto de o erguer pelas axilas, o contacto do corpo içado contra o peito, a respiração no pescoço. O odor de flor-de-laranjeira. A imobilidade tranquila e aquela doçura, ó imensa doçura, que o ajudava a viver. Tinha também de enfrentar a preocupação permanente de saber se o tratavam bem. Aterrorizava-o a ideia de que sentisse frio. De que, no momento em que ele, o mais velho, fazia um trabalho de casa, se sentava no autocarro, apanhava os primeiros figos, naquele instante preciso, o menino pudesse ter frio. A sobreposição daquelas duas temporalidades era-lhe insuportável. Somava-se o receio de que fosse tratado com aspereza por mãos ignorantes. Nessas alturas, dirigia-se muitas vezes para o pomar onde tinha coberto o irmão com um pano e olhava para as maçãs no chão. Sabia bem que era inútil ficar plantado ali, no vazio de uma lembrança, mas era mais forte do que ele. Era um modo de acalmar o seu coração enlouquecido, um modo de estar com o menino.

Um dia os pais levaram-no ao casamento de uma prima. Não lhe agradava a multidão, e ainda menos os trajes afetados e as cortesias de circunstância. Mas sabia violentar-se, e os pais tinham um ar feliz. A mãe alisara o cabelo, o pai estava inclinado para ela, e ela sorria. Sentados à volta daquela mesa redonda sobre a erva, com as montanhas como pano de fundo, assemelhou aquele instante a um interregno. Para as pessoas como ele, aquelas festas constituíam uma trégua. Procurava a mais nova com os olhos, divisara-a entre os desportistas que se exercitavam nos aprestos entre duas árvores, quando ressoou uma frase, algo como «amar não é -olharem um para o outro, é olharem juntos na mesma direção». Fora dita ao microfone pelo padrinho. Era a frase que, infalivelmente, se ouvia em todos os discursos de casamento; pertencia, ao que parecia, a Saint-Exupéry, e ele detestava-a tanto quanto a achava idiota. Aquela era uma lógica de equipa, não de casal. Que mundo estranho, em que se aparenta o amor a um objetivo, e que pena que não se compreenda que, pelo contrário, o amor é afogar-se nos olhos do outro, mesmo sendo esses olhos cegos. Sentiu-se só. Olhou brevemente em torno de si. As pessoas escutavam aquele discurso. Teria dado o que fosse preciso para ter o menino consigo. Tê-lo-ia pousado sobre a erva e teria mergulhado o seu olhar no dele. Recordou-se do choque que sentira quando a professora de Francês os fizera estudar o mito de Tristão e Isolda. Se aqueles dois tivessem tido de «olhar juntos na mesma direção»! Haviam-se fundido um no outro, precisamente, e ele, que preferia a matemática à literatura, ainda assim tinha um fraco por aqueles amantes. Compreendia muito bem o desprezo das regras quando um amor profundo assim exige.

Na sua nova escola, o ouvido sensível que desenvolvera levava-o a sobressaltar-se ao menor ruído. Detestava as correrias, os gritos, as ordens lançadas de um grupo para outro diante dos portões. Não o demonstrava. O barulho podia marejar-lhe os olhos, pois buscava então a presença doce e o silêncio, a respiração regular. No fundo, pensava ele, o inadaptado sou eu. E a ideia de que naquele preciso momento o menino respirava sem que ele o pudesse ver, de que continuava a existir mas longe de si, engendrava uma dor tão viva que ele tinha desenvolvido subterfúgios. Foi por isso que deixou de ler por completo e se concentrou nas ciências. As ciências, pelo menos, não lhe provocavam dor. Não lançavam uma ponte até à memória, não remexiam nos sentimentos. As ciências eram como a montanha, ali postas quer isso agradasse quer não, insensíveis às mágoas. Eram detentoras da justeza. Ditavam a sua lei, era exato ou inexato, era calmaria ou tempestade. O mais velho mergulhava em problemas geométricos, em enigmas escritos sem palavras, uma aritmética que percorria as páginas como um manuscrito em língua primitiva. Tratava-se de demonstração. Era frio e tranquilizante. Quando erguia a cabeça, sentia formar-se em si uma cólera enciumada em relação às freiras que não conseguia contrariar. Então tornava a mergulhar nos números.

Anos mais tarde, compreenderia que também aquelas mulheres tinham alcançado um nível inaudito de infralinguagem, capazes de comunicar sem palavras nem gestos. Que tinham compreendido, desde há muito, aquele amor tão particular. O amor mais sofisticado, misterioso, volátil, assente no instinto aguçado do animal que pressente, dá, que reconhece o sorriso de gratidão pelo instante presente sem ter sequer ideia de um retorno, um sorriso de pedra tranquila, indiferente aos amanhãs.

Todos os inícios de férias, a família subia montanhas até à pradaria para ir buscar o menino. O mais velho via aproximar-se o portão azul, ouvia o saibro. Não saía do carro. As freiras vinham até ao patim com o menino nos braços. Seguravam-lhe bem a cabeça, ajeitavam-no bem na sua cadeira especial, no banco traseiro do automóvel. A mãe afagava os cabelos do menino, agradecia às freiras. O mais velho olhava em frente. O coração batia-lhe no ventre, nos dedos, nas têmporas, pensava que todo ele ia explodir. Sentia um eflúvio novo, não era a flor-de-laranjeira que conhecia, mas um odor mais adocicado. Sentia também que ia inclinar-se para o pescoço, encostar a sua bochecha à dele, naquele contacto tão ansiado. Então, num gesto de resistência desesperada, tirava os óculos. Míope, não se arriscava a vê-lo. Pois vê-lo significava recomeçar do zero. Engrenava a subida de todos aqueles dias sem ele, sem a sua pele suave e sem o seu sorriso. Desenhava a separação próxima, ainda mais dolorosa. Vê-lo destruía de uma assentada todo o trabalho valoroso. Significava deitar-se na terra e morrer.

Por isso o mais velho arrumou os óculos. Cerrou os dentes durante todo o trajeto. Obrigou-se a manter a cabeça voltada para o vidro, num nevoeiro. Sucediam-se a grande velocidade manchas verdes, brancas e castanhas. No espaço de um instante, cedeu, virou-se para lançar uma olhadela à cadeira especial junto do outro vidro. Sentiu alívio, não discernia nada a não ser talvez as barrigas das pernas, pequenas e magras, que agora transbordavam, e, aliás, o que trazia ele nos pés? Pantufas, mas de onde? Interrompeu-se, forçou-se a virar a cara. Ignorou a irmã, que o observava, concentrou-se nas manchas do exterior, esfregou os olhos, que ardiam. A mãe mudou a fralda do menino na área da autoestrada, deu-lhe de comer, murmurou-lhe ao ouvido. Ver o menino amimado tranquilizava o mais velho. Mas manteve-se obstinadamente cego ao irmão, com terror de ser submergido.

Chegaram ao pátio. Em primeiro lugar, com um passo enérgico, a mais nova. Já não era uma menina, mas continuava jovial, viva, e desta vez mantinha o irmão debaixo de olho. Era a sua vez de olhar por ele. Em seguida, o mais velho. Trazia os braços vazios. Atrás, a mãe carregava o menino. Avançava com cautela. Ele tinha crescido, era grande a distância entre as nádegas e a cabeça, que era preciso segurar sem lhe torcer as costas. Instalou-o sobre os almofadões, o tempo de abrir a casa. Vimos então o mais velho puxar de uma cadeira de plástico, longe do irmão, e estreitar os olhos. Tentava distingui-lo. Não tinha voltado a pôr os óculos, uma vez que vê-lo ia além das suas forças. Mas o trajeto de automóvel fizera-o compreender isto: não o ver ia também além das suas forças. Por isso tentava vê-lo apesar de tudo.

Fazia aquilo todas as férias. Instalar-se no pátio, sob pretexto de terminar um exercício de matemática, e depois erguer a cabeça. Olhos fendidos, rosto crispado, a fim de adivinhar o menino deitado. Já não lhe dava a comida, já não lhe falava, já não lhe tocava. Mas lavava as mãos durante muito tempo, a cabeça virada para a banheira, enquanto a mãe dava banho ao menino. Descascava os legumes ao lado do sofá e interrompia-se com frequência, todo o seu ser crispado num esforço, numa certeza: não se aproximar, não encostar a bochecha dele à sua.

Uma vez que a miopia apenas lhe deixava ver uma silhueta vaporosa, voltou-se para a audição. Sabia como fazê-lo. Ouvia o irmão respirar, tossicar, engolir a saliva, suspirar, gemer. À noite, acordava em sobressalto, arrancando-se às imagens nauseantes. Afastava os lençóis. Avançava sobre a tijoleira, entreabria ligeiramente a porta, apenas o suficiente para entrever os torneados da cama. Não passava dali. Escutava o menino a respirar. Sobretudo, não se aproximar. Não se recomporia. Permanecia atrás da porta, a tremer, dilacerado. Era absurdo. Era como era. Face à provação, adaptava-se.

À noite, quando ele se levanta para vir encostar-se ao muro do pátio, apoia a fronte contra nós, as suas mãos sobem à altura do rosto e empurram. O corpo inteiriça-se, preparado para o embate.

Os meses passaram. Um verão, o mais velho, quase um jovem homem, pôs a mochila às costas para ir ao encontro de amigos, mais longe na região. A viagem duraria alguns dias. Despedira-se dos pais e atravessava o pátio quando, de súbito, o vimos dar meia-volta. Como nos surpreendermos? As coisas não duram para sempre, e mesmo nós acabaremos em pó. Para ele, chegara a hora da reconciliação. Teria sido a iminência da partida ou o extravasar daqueles meses de dor longe do menino? Teria sido a maturidade ou, pelo contrário, o cansaço de não lograr crescer, ser razoável? Fosse o que fosse, a certeza eclodiu antes mesmo de ele transpor a porta de madeira. Viver ao lado já não era uma opção. Ele tinha tentado. Tinha tirado os óculos, forjado outros laços, nutrido os seus dias de presença e de acontecimentos. Tinha entrado em brigas como devido, tinha-se contentado com uma silhueta imprecisa, tinha conseguido não se aproximar da cama nas noites de insónia. E o resultado cabia naquelas poucas palavras: viver ao lado já não era opção. O mais velho pousou a mochila e subiu as escadas.

Os seus passos levaram-no ao quarto fresco. Abriu a porta, avançou até à cama dos torneados brancos. O menino, como era seu hábito, estava deitado de costas. Tinha crescido. Envergava um pijama violeta do tamanho de dez anos e tinha nos pés umas pantufas forradas a lã de ovelha. Os seus punhos estavam fechados. A boca, entreaberta. Absolutamente igual a si mesmo. Os olhos pretos erravam, a menos que seguissem trajetórias precisas. Escutava o ribeiro e as cigarras pela janela aberta. O mais velho agarrou-se aos torneados como a uma amurada, debruçou-se sobre o colchão. Como o menino tinha a cabeça virada para a janela, deixava exposta a bochecha redonda e sedosa. O mais velho pousou nela como ave que regressa ao ninho, com um alívio tal que lhe vieram lágrimas aos olhos. Ergueram-se em si todas as palavras contidas durante meses. Falou-lhe como outrora, sem esforço, a bochecha contra a dele, com as entoações que conhecia. Confessou-lhe o seu ardil miserável, a tentativa de tirar os óculos para deixar de o ver, falou-lhe do fluxo dos dias sem ele. O seu coração abria-se como um fruto maduro. Contudo, o menino não sorriu, nem sequer piscou os olhos. Olhava para outro sítio e respirava suavemente, como sempre. Já não reconhecia a sua voz. Há quanto tempo o mais velho não falava com ele? Endireitou-se, muito pálido, agarrou na mochila e foi ter com os amigos.

Aguentou-se quatro dias. Ao quinto, pediu boleia junto de um souto. À tarde, abriu a porta de madeira com uma carga de ombro, entrou no pátio com um porte marcial, cruzou a sala sob os olhares estupefactos dos pais e dirigiu-se diretamente para as escadas. Seria como se nada se tivesse mexido durante aqueles quatro dias: a cama, a cortina de filó batida pelo sol diante da janela aberta, o rugido da torrente. Abriu a porta com brusquidão. Debruçou-se de novo sobre a cama, ofegante. Falou-lhe mais uma vez, de modo entrecortado, balbuciante, sem reprimir o temor de se saber esquecido. Chorou como muitos anos antes, no pomar, molhando o rosto do irmão, beijando-lhe os dedos. Pediu-lhe perdão. Então o menino bateu as longas pestanas negras, distendeu a boca. Elevou-se um fio de voz feliz, monocórdico, exceto no último segundo, quando assumiu uma tessitura leve, aérea. O mais velho anunciou que passaria ali o resto do verão.

Prosseguiu o reencontro. Um dia, levou para o pátio uma bacia com água tépida, uma tesoura, um pente. Ajoelhou-se junto dos almofadões, molhou cuidadosamente a cabeça, dando pancadinhas na fronte com uma toalha. Cortou-lhe o cabelo de um lado, depois tomou o rosto entre as mãos para o virar e retomou a operação. Enxugou-o como se acaricia. Os gestos regressavam-lhe, intactos. Mas era preciso tempo, e o verão só dura dois meses. Quando o automóvel parou diante da casa na pradaria, o mais velho não saiu nem logrou despedir-se dele.

Ainda assim, o seu regresso às aulas foi menos doloroso do que nos anos anteriores. Sabia o irmão em segurança. Sabia-se na rota da sua vida futura. Pela primeira vez, estes dois factos não colidiam. Pensava nas freiras sem cólera. Elas tomavam bem conta dele. Sentia-se aplacado. Lembrava-se todos os dias do canto feliz na cama de torneados e retirava daí energia. Saiu da sua matemática para ouvir música, ir ao cinema, e descobriu a conversação. Claro está, sabia que jamais igualaria os animadores natos, não possuía o desembaraço deles. Tinha sempre consigo uma lista de temas de conversa, para o caso de se instalar um silêncio, de uma questão intrusiva o desconcertar. Para o caso de se sentir perturbado por uma frase, amolecido por um ambiente descontraído. Não devia deixar-se tocar. Era a sua linha vermelha. O preço a pagar seria demasiado alto. Ninguém trespassaria, portanto, aquele bloco de medo, mas ele conseguiu, ainda assim, baixar a guarda. Tinha risos descontrolados, abandonos, e mesmo uma namorada. Era tudo o que podia oferecer. Quando pensava no menino, sorria. Ele estava longe mas estava ali. O mais velho sentia-o na ondulação rápida de uma cobra-de-água, no ar saturado de pulverosas flores brancas e no levantar-se do vento. Parecia-lhe então ouvir o frémito das árvores em torno do riacho. A beleza estaria eternamente em dívida para com o menino. Esta convicção transformava-se em músculo, em armadura. A perspetiva de o ver nas férias próximas já não lhe verrumava o coração. Pelo contrário, sentia-se transportado pela alegria, agora suficientemente seguro para manter os óculos postos e tirar partido da sua presença. Tinha pressa de reencontrar a sua quietude. Era um sentimento novo e poderoso. Porque, finalmente, a provação tinha-se transmutado em força. Media assim o seu contributo: seria talvez inadaptado, mas que outra pessoa tinha a capacidade de o enriquecer tanto? A sua própria existência era uma experiência incomparável. E, embora tivesse perdido o hábito de se confiar, de se abrir, de convidar os amigos, recebera, em troca, aquele amor precioso. Admitiu, portanto, pela primeira vez, sair do automóvel quando este se detivesse diante da casa na pradaria. Talvez fosse mesmo conversar um pouco com as freiras.

Encontrava-se naquele estágio do seu renascimento quando lhe disseram que ele tinha morrido. Tão suavemente como vivera, disseram as freiras, com quem o mais velho, de facto, nunca conversou. O seu organismo frágil tinha simplesmente renunciado. O abandono assumira a forma de um sopro que cessa, sem violência. A epidemia de gripe perfilava-se, os acessos de tosse e de epilepsia tornavam-se mais frequentes, engolia mais lentamente, as refeições eram demoradas. Contribuíra com o que pudera, desembaraçara-se com o que tinha. Como se tivesse usado as suas reservas e estas se tivessem exaurido. Uma manhã, o menino não acordou.

As freiras enxugavam os olhos. O corpo aguardava a família numa sala especial, ao fundo, adjacente à lavandaria. Escutaram-se ali os sons habituais, de mistura com murmúrios e passos sobre os ladrilhos. O mais velho não compreendeu nada, agiu como um autómato. Pensou apenas que era a primeira vez que entrava na casa onde o menino tinha passado tanto tempo. Os corredores cheiravam a puré morno. As camas, colocadas a meia altura das paredes, tinham a toda a volta barras altas amovíveis. O mais velho notou a ausência de almofada e de peluche, o que lhe pareceu ser uma boa precaução. Os cobertores eram amarelo-pálidos. Nas paredes, cartazes com patinhos, pintainhos e gatinhos. Não havia desenhos porque ali nenhuma criança conseguia segurar num lápis, disse de si para si. As janelas davam para o jardim. Tinham aberto as janelas para que o menino escutasse os sons do exterior? Ele pensava que sim.

No momento de entrar na sala, o mais velho tirou os óculos e fechou os olhos. Tateou um rebordo duro, concluiu que se tratava do caixão. Debruçou-se, o nariz sentiu uma superfície fria e macia, era a bochecha. O mais velho entreabriu brevemente os olhos. Viu as pálpebras fechadas translúcidas, venadas, com minúsculas caneluras azuis. As pestanas projetavam a sua sombra sobre a pele pálida. A boca entreaberta não deixava escapar nenhum sopro tranquilo, era lógico. Os joelhos tinham sido um pouco fletidos, mas, em virtude desta anatomia particular, afastavam-se até tocarem as paredes do caixão. Os braços estavam juntos sobre o busto; as mãos, fechadas em pequenos punhos. O mais velho perguntou se podia levar o pijama violeta.

Em casa, a mãe, em camisa de noite, mordeu o ombro do marido e depois cambaleou contra ele. Ele apertou-a nos braços, e vergaram-se ambos em direção ao chão. A mais nova permaneceu crispada à janela do seu quarto, fixando a montanha para lá do pátio, até à primeira claridade da aurora. O mais velho, por seu lado, não fez nada. Pela primeira vez desde há anos, não se ergueu de noite para vir encostar-se a nós, no pátio.

O funeral foi concorrido, embora, claro está, o menino não conhecesse ninguém. Generosamente, as pessoas acorreram pelos pais. O pátio encheu-se. Depois subiram lentamente à montanha, pois aqui os mortos são enterrados no seu seio. A família possuía o seu minúsculo talhão, duas grandes estelas brancas sobre a terra, rodeadas por um gradeamento cujos arabescos de ferro evocavam uma varanda, mas que, ao mais velho, recordaram os da cama. Os primos abriram banquinhos de lona, firmaram o violoncelo na erva, sacaram das flautas transversais. A música elevou-se.

No momento de baixar o caixão à terra, as pessoas afastaram-se para deixarem passar o mais velho sozinho. Ele não se apercebeu. Fizeram descer as cordas com cuidado. Enquanto o caixão se internava no ventre da montanha, foi trespassado por um medo, tão vivo que sentiu a sua mordedura: «Oxalá não tenha frio.»

Depois, de olhos cravados na terra que engolia lentamente o menino, consciente de que aquele era o derradeiro adeus, fez uma promessa que ninguém ouviu: «Darei testemunho de ti.»

O professor, aquele que pronunciara o veredicto e seguira o menino durante oito anos, estava presente. Lembrou que a criança tinha portanto vivido muito mais do que o expectável. Disse também que aquela pequena vida era a prova acabada de que a medicina não conseguia explicar tudo. Sem dúvida o amor que recebeu, murmurou aos pais.

Desde então, o mais velho cresceu sem se afeiçoar. Afeiçoar-se é demasiado perigoso, pensa ele. As pessoas que se ama podem desaparecer muito facilmente. É um adulto que associou a possibilidade da felicidade àquela da perda. Maus ventos ou presentes, já não dá à vida o benefício da dúvida. Perdeu a paz. Passou a ser um daqueles seres que trazem no peito um instante imutável, suspenso para todo o sempre. Algo nele se transformou em pedra, o que não significa insensível, antes resistente, imóvel, implacavelmente idêntico ao sabor dos dias.

Transporta também em si um estado de alerta. Quando sai de uma reunião ou de uma sessão de cinema e liga o telemóvel, tem muitas vezes uma sensação de alívio. Não recebeu nenhuma mensagem urgente. Nada de despedidas ou catástrofes. O destino não lhe levou ninguém querido, e a família está bem. Se alguém se atrasa cinco minutos, se o autocarro abranda bruscamente ou não vê um vizinho há dias, sente aumentar em si uma tensão. A inquietação criou raízes nele, germinou como a figueira das montanhas, coriácea e resistente. Talvez um dia passe. Talvez não.

Soergue-se a meio da noite, a nuca húmida, a cabeça repleta de imagens do menino. Sonha que lhe acontece alguma coisa. Sente vontade de saber que ele está bem. Lembra-se de que ele já não está entre os vivos. Fica sempre espantado com a novidade do sucedido, como se os dias não tivessem qualquer influência. Para todo o sempre, o irmão morreu na véspera. Repetiram-lhe que o tempo repara. Na verdade, reflete ele durante estas noites, o tempo não repara nada, muito pelo contrário. Escava e aviva a dor, um pouco mais intensa a cada vez. É tudo o que lhe resta do menino, o desgosto. Não pode subtrair-se a ele: isso significaria perder definitivamente o menino.

Levanta-se e come um pouco. Observa pela janela a noite urbana, bem mais silenciosa do que a da montanha. Levou tempo a habituar-se à cidade. Durante muito tempo, achou espantoso os cães levados pela trela. E o verão sem barulho, nem cigarras nem sapos. Involuntariamente, erguera a cabeça durante os meses de março para espiar as primeiras andorinhas, aguçara o ouvido em julho para distinguir os andorinhões. Procurara os odores, excrementos de animais, verbena, hortelã, e os ruídos, badalos das ovelhas, riacho, zumbido dos insetos, vento que raspa nas cascas das árvores. Depois tinha-se acostumado ao terreno plano, ele que não conhecia senão o escarpado, ao solo sem pegadas e aos tacões dos sapatos femininos. Tem em si conhecimentos inadaptados à cidade. De que lhe serve saber que os castanheiros não nascem acima dos oitocentos metros de altitude, que a madeira de avelaneira é a mais flexível para fazer um arco? Não lhe serve de nada, mas está habituado. Sabe bem o que são conhecimentos inúteis.

Diante da janela, à noite, pensa nos ramos dúcteis dos amieiros no curso de água, nas libélulas azul-turquesa. Acaba sempre por pegar num quadro, a sua fotografia preferida, que ele mandou ampliar, a do riacho. Observa-a intensamente. Quase se tinha deitado nas pedras, para a tirar à altura do rosto do menino. Os grandes olhos pretos dele preparam-se para se desviar para o lado, mas na imagem quase se consegue ter a impressão de que ele observa. Tem o cabelo denso alisado pela brisa. A bochecha redonda pede uma carícia. A toda a volta, os pinheiros velam. A água corre, brilhante, arrepiada entre os dois pequenos calcanhares da irmã, empoleirada num dique de seixos, a cabeça voltada para a máquina e o olhar abertamente fixo na objetiva. Por cima, forçando a passagem entre folhas e ramos, desenha-se o céu em renda azul. Consegue ficar até de manhã a analisar os pormenores daquela fotografia.

Depois, vai trabalhar.

Desenvolveu um espírito matemático muito apurado, tanto que se tornou diretor financeiro de uma grande empresa. Os números não traem, são fiáveis, não reservam nenhuma surpresa desagradável. Todas as manhãs, veste um fato escuro, apanha um autocarro com outros fatos escuros. Não gosta dos outros, mas tolera as pessoas. Na empresa não tem amigos em especial. Bastam-lhe simples colegas, pelo menos para não almoçar sozinho na cafetaria, ser por vezes convidado ao domingo. Sabe o que deve dizer e fazer para passar despercebido. Não desperta nem desconfiança nem simpatia. Um homem na casa dos trinta, perdido entre tantos outros, convém-lhe assim, tem a esperança insensata de que daquele modo, silhueta anónima na multidão, o destino se esqueça dele e o deixe em paz. E ninguém percebe que, se ele domina tão bem os cálculos, os gráficos, as colunas de custo/benefício, os altos voos das operações bancárias, o equilíbrio das contas, é precisamente porque foi vítima do arbitrário. Ninguém faz ideia de que, por detrás daquele executivo de fato, há um menino estranho cujos olhos pretos dançam.

Não tem noiva nem filho. Deixa isso à irmã mais nova. Ela terá três filhas que correrão pelo pátio aos gritos, durante as férias, uma vez que agora reside no estrangeiro. Um país, um marido, filhas: longe dali, proporcionou a si própria uma normalidade. Estabeleceu como ponto de honra romper com aquela maldição de dissonância, ao passo que ele se mantém seu cativo. Mas aquela será porventura, diz ele a si mesmo, a lição que ela retirou ao vê-lo viver a ele, o mais velho. Afinal é o seu papel, servir de farol. Mostrar o que não se deve fazer.

Nós, as guardiãs deste pátio, vemo-los com a mesma diligência que os seus pais, que agora ocupam a outra casa sobranceira ao riacho. Reconhecemos o rangido da porta pesada, o suspiro de satisfação depois da viagem, os móveis de jardim trazidos para o exterior. Vê-los-emos jantar, saborearemos o quadro milenar das gerações que se sucedem, e sabemos que, em geral, quando a mais nova traz a família, o mais velho não tardará. Permaneceram muito chegados. Ela dá-lhe papéis a assinar, previne-o de um prazo, de um reembolso, de uma renovação. Exorta-o a sair, a fazer amigos, ele responde-lhe com um sorriso, está tudo bem assim para mim. E nós acreditamos nele. Para onde quer que vá, e em especial aqui, leva consigo a lembrança de uma promessa feita sobre um túmulo. Dá um testemunho. Pode ficar horas sentado à beira do riacho. Vemos aquele homem grande debaixo do pinheiro, a observar as libélulas e os alfaiates sobre a água. Sabemos que tem a alma constrita de dor, bem vemos que a sua mão toca gentilmente nas pedras onde repousava a cabeça do menino. Mas sentimos também um certo apaziguamento. Às vezes, mantém-se imóvel, diante do local dos almofadões que foram durante muito tempo postos à nossa sombra, e escuta a chegada da tarde. Quando os primos estão presentes, participa nas conversas, ri evocando o passado. Também eles tiveram filhos. Adora ver os pequenos construírem a mesma memória que ele. Proíbe-os de se aproximarem da azenha, conserta um triciclo, exige que usem braçadeiras junto da água. Não consegue amar senão na inquietação. É eternamente o mais velho.

À noite, é ele o último a limpar o pátio, a dar uma mangueirada às lajes de ardósia, às hortênsias, e é inevitável: aproxima-se, pousa lentamente a testa e as mãos sobre nós. Encosta-se ao muro morno, de olhos fechados. Uma noite, a sobrinha de cinco anos surpreendeu-o e perguntou-lhe: «O que estás a fazer?», e o mais velho, com o seu sorriso doce, sem voltar a cabeça, respondeu: «Estou a respirar.»