PRÓLOGO

Itália. Agosto de 1943. As forças de Hitler, comandadas pelo General Karl Wolff , acercam-se de Roma. O seu objetivo é claro: invadir Roma, tomar a Cidade do Vaticano e raptar Pio XII. As recentes manifestações públicas de membros da cúria e do próprio papa contra o regime nazi, e o iminente volte-face de Itália para o lado dos Aliados, criaram, em Hitler, o receio de ver as hostes católicas virarem-se contra o seu império.

O Cardeal Eugenio Pacelli, eleito Papa Pio XII à terceira votação no conclave de 1939, quarto conclave do século xx, foi voz ativa contra o nazismo durante o pontifi cado do anterior papa, Pio XI. O então Cardeal Secretário de Estado Pacelli esboçou o documento que viria a dar origem à carta encíclica de Pio XI e da Santa Sé na qual o movimento totalitário, preconceituoso, antissemita e magnânimo de Hitler é liminarmente condenado e repudiado. A pedido de Pacelli, o Cardeal Michael von Faulhaber, arcebispo de Munique e profundo opositor ao nazismo, auxiliou na escrita da carta. Este contributo valeu-lhe o título de «cardeal judeu», atribuído de forma pejorativa pelos nazis, passando a ser uma persona non grata para o seu próprio país.

A dita carta encíclica, entretanto intitulada Mit Brennender Sorge [Com profunda preocupação], não caiu bem para o lado alemão e as crescentes críticas da agora cúria de Pio XII ao nacional-socialismo têm despoletado preocupação e ira em Hitler. O führer planeia avançar com um plano para controlar de vez as palavras da Igreja. Raptar Pio XII e manter o papa sob sua total custódia permitir-lhe-á não só ter plenos poderes sobre toda a cúria da Igreja Católica Apostólica Romana, a que mais fiéis tem espalhados pelo globo, como também utilizar a voz de Pio XII para emitir para as massas todo o tipo de informação que lhe convier.

A incursão das tropas nazis pelas muralhas e portões do Vaticano tornou-se numa séria possibilidade já tida em consideração pela própria Santa Sé, pelos Aliados e até por países que se mantêm neutros perante os atuais conflitos. Os Estados Unidos da América de Roosevelt, a Espanha de Franco e o Portugal de Salazar convidaram Pio XII a mudar toda a cúria vaticana para os seus países. O papa, por sua vez, nunca teve em verdadeira consideração tal cenário, no entanto tudo muda quando uma carta anónima chega à caixa de correio de Monsenhor Mario di Corneliano, camareiro pessoal de Pio XII e cónego da Basílica de São Pedro. A carta garante que o plano de Hitler está já em marcha, e que o Santo Padre e toda a cúria correm sérios riscos. A Igreja, enquanto instituição mais reconhecida por todo o mundo, está prestes a sofrer a maior revolução da sua milenar história.

I

Buongiorno…

No lado de fora do escritório pessoal do Monsenhor Di Corneliano ouvem-se, ao longe, periódicos embates com o solo. O som é indubitavelmente emitido pelos saltos emadeirados de uns quaisquer sapatos, provavelmente femininos. Mario di Corneliano nasceu no seio de uma família aristocrática italiana, de Piacenza, e cedo se dedicou à religião e ao sacerdócio. Ordenado padre com apenas vinte e quatro anos, em 1927, Di Corneliano tem passado estes seus quinze anos de sacerdócio ao dispor da cúria romana, na Cidade do Vaticano. Foi, quase de forma imediata, escolhido para assumir a posição de cónego da Basílica de São Pedro, função que lhe exige um enorme domínio do protocolo da Santa Sé, uma extrema capacidade de organização e preparação de qualquer tipo de celebração, e um estado de alerta quase semelhante ao de qualquer serviço de emergência. Além disso, tem a seu cargo todos os trâmites relacionados com a preservação da basílica, das estruturas adjacentes e do seu conteúdo artístico, religioso ou meramente decorativo. Passados alguns anos de trabalho na cúria, em 1931 foi escolhido por Ambrogio Ratti, vulgarmente conhecido como Papa Pio XI, para assumir a posição de camareiro pessoal de sua santidade. Este cargo valeu-lhe o título de monsenhor, que, por se tratar de um título honorífico atribuído somente pelo líder da Igreja, tem bastante relevância. Para lá de todas as tarefas que já tinha a seu cargo enquanto cónego da Basílica de São Pedro, Di Corneliano fica também responsável por todo e qualquer assunto que habitualmente compete a um secretário privado. Cabe-lhe atender a todos os pedidos do papa, marcar 14 reuniões, programar a agenda, organizar visitas apostólicas e até tratar de assuntos do foro mais íntimo do Sumo Pontífice. Após a morte de Pio XI, o novo papa, Eugenio Pacelli, que adotou o nome papal de Pio XII, mantém Di Corneliano nos dois cargos que este já ocupava durante o pontificado anterior. Assim, divide o seu tempo entre as funções de camareiro pessoal de sua santidade e de cónego da Basílica de São Pedro.

O som dos saltos altos cessa. Dois pequenos embates contra a porta sentem-se.

— Sim?

A porta do escritório do Monsenhor Di Corneliano abre-se.

Na pequena mas cuidadosamente decorada sala é visível uma secretária de madeira robusta, alinhada ao centro mas mais próxima da parede do fundo. Atrás da mesa, sentado numa cadeira de pele sintética já gasta, um homem de meia-idade debruça-se sobre o trabalho — é Di Corneliano. De cada lado da secretária existem outras duas cadeiras, também elas de madeira a condizer com a secretária e preparadas para receber quem nelas se quiser sentar durante uma qualquer reunião. Na parede do fundo, entre duas janelas com vista para a Praça de São Pedro, está pendurado um crucifi xo esculpido em marfi m e de valor avultado, demasiado bonito para estar trancado num escritório onde poucos poderão apreciá-lo. A parede do lado esquerdo está completamente forrada com estantes de aspeto frágil. É difícil perceber como as suas fi nas pernas de metal conseguem suportar o peso de tantas pastas, papéis, arquivadores e uma ou outra estatueta. Quadros diversos, todos com representações de cenas bíblicas e com molduras iguais, alinham-se pelas demais paredes. Alguns vasos de plantas foram usados para encher as áreas mais vazias do lugar. Existirão, no Vaticano, espaços muito mais acolhedores e agradáveis à vista, mas, de qualquer forma, este é um local de trabalho e não de turismo.

A Irmã Nicoletta entra.

Nicoletta é o expoente máximo do grande grupo de freiras que servem a Cidade do Vaticano e os seus habitantes mais ilustres. É o equivalente a uma madre superiora de um qualquer convento, com a diferença de que aquelas freiras não estão obrigadas ao recolhimento nem têm grande tempo livre para se dedicarem à oração. Estas verdadeiras empregadas são responsáveis por todos os encargos que uma casa com centenas de habitantes possa ter, desde a alimentação até à limpeza, passando por todo o tipo de tarefa doméstica. Nicoletta é uma mulher séria e ligeiramente austera. Apesar de não parecer, conta já com mais de seis décadas de vida, quatro das quais ao serviço da cúria. Lidera as freiras serventes de forma intransigente para que nada falte aos bispos e cardeais que residem ou passam pela Cidade do Vaticano e, claro, a sua santidade, o Papa Pio XII.

A freira carrega nos braços um pequeno baú de madeira com o brasão papal de Pio XII gravado no centro de cada lado. No seu interior vem toda a correspondência dirigida ao papa. Na realidade, tudo o que é enviado a Pio XII passa primeiro pelas forças de segurança do Vaticano e depois pelo crivo do Monsenhor Di Corneliano. Uma vez verificada e ordenada, a correspondência mais relevante é, então, entregue ao papa.

Buongiorno, monsenhor, trago-lhe a correspondência do dia.

Pousa a caixa na sobrelotada secretária de Di Corneliano. Papéis amontoam-se por todo o lado, condizentes com a carga excessiva de trabalho do presbítero. Agenda para atualizar, planos para aprovar, reuniões para marcar, documentos para assinar, papel e mais papel. São assim os dias de Monsenhor Di Corneliano desde que trabalha na cúria. Em boa verdade, a quantidade de trabalho que lhe é exigida aumentou consideravelmente após a morte de Lorenzo Lauri, cardeal camarlengo de Pio XII. O cardeal faleceu há dois anos e o papa ainda não terá decidido qual o nome do sucessor para o cargo. Diz-se nos corredores que Pio XII não encontrou ainda a pessoa certa a quem confi ar a função. Talvez por ele próprio ter sido cardeal camarlengo de Pio XI, e por conhecer bem as exigências do cargo, lhe seja tão difícil escolher um sucessor para Lauri. Sejam quais forem as razões do papa, a verdade é que a vida de Monsenhor Di Corneliano se tornou quase num inferno desde então. Neste momento vê-se responsável por três cargos distintos que poderiam muito bem ser ocupados por três pessoas, o cargo de cónego da Basílica de São Pedro, o de camareiro pessoal de sua santidade e o de camarlengo não oficial da Santa Sé.

— Obrigado, irmã. Pode deixar aí.

Rodopiando sobre os saltos, a Irmã Nicoletta dirige-se à porta pela qual havia entrado há instantes.

— Irmã, desculpe, o Santo Padre já está disponível?

Detendo o passo, rodopia de novo sobre os seus saltos e encontra os olhos de Di Corneliano. Por estarem sempre colados no trabalho, é mais comum ver-se o topo da sua cabeça, onde o cabelo já vai escasseando, do que os seus olhos acastanhados.

— Sua santidade está a terminar a primeira refeição do dia, monsenhor. Depois disso terá uma reunião com o Cardeal Maglione.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Luigi Maglione é um clérigo italiano elevado ao cardinalato por Pio XI no consistório de 1935. Antes disso foi núncio apostólico em diversos países europeus, entre eles a Suíça e a França. Ocupa, desde 1939, a posição de cardeal secretário de Estado da Santa Sé. É o responsável pelo governo de Pio XII, função equivalente à de um primeiro-ministro ou presidente de governo de um qualquer país. Sucedeu, enquanto líder da Secretaria de Estado, ao próprio Cardeal Pacelli após a sua eleição como Sumo Pontífice no conclave de 1939. Maglione é um homem ardiloso e habilidoso com as palavras faladas e escritas, embora só as use quando estritamente necessário. Habituado a falar com chefes de Estado, líderes religiosos e individualidades dos quatro cantos do mundo, domina o protocolo, controla a arte do negoceio, é perspicaz e cordial. Um verdadeiro mestre na arte da política.

— Sim, é verdade. Obrigado por relembrar-me disso — nota Di Corneliano, enquanto mira o relógio que usa no pulso esquerdo.

Ao inclinar a cabeça para devolver os olhos ao trabalho, passa os olhos pela caixa deixada por Nicoletta na sua secretária há instantes. Um envelope preto no meio de tantos brancos chama-lhe a atenção.

— Irmã Nicoletta, que envelope é este?

A ausência da freira já se faz notar. A pergunta de Di Corneliano cai em saco roto. Habitualmente só verifi ca a correspondência quando despacha assuntos mais importantes, mas a sua curiosidade sobrepõe-se ao trabalho que tem em mãos. Resolve ver do que se trata aquele envelope forasteiro e tão fora do vulgar. Puxa-o de entre os demais. Vem lacrado mas sem dados de remetente. Sente um súbito receio apoderar-se de si. Em tempos tão conturbados, aquele envelope pode ser sinónimo de graves problemas. Sem perder mais tempo, abre-o e lê o papel que vem no seu interior.

II

Com a graça de Deus…

A reunião privada entre Pio XII e o seu secretário de Estado, o Cardeal Maglione, nos aposentos papais do Palácio Apostólico, começou há poucos minutos. Ali discutem-se os mais variadíssimos assuntos relacionados com o governo da Santa Sé. Finanças, Código Canónico, ordenação de bispos e cardeais, relações internacionais, a guerra, o estado do mundo, de tudo um pouco.

O escritório papal em tudo destoa do escritório do Monsenhor Di Corneliano. Este reveste-se de arte sacra muito valiosa. Belíssimos quadros ornamentam as paredes. Estantes de aspeto maciço sustentam dezenas de livros, qual deles o mais importante ou precioso. Ao centro do amplo escritório existe uma mesa de madeira clara, envernizada e ladeada por oito cadeiras forradas a tecido branco. Servirá para reuniões mais populosas. Ao fundo da sala colocara-se a secretária de Pio XII, feita da mesma madeira da mesa central, com a cadeira do papa por trás e duas cadeiras pela frente, para visitantes. Uma destas está ocupada pelo Cardeal Maglione. À direita da mesa, uma estátua de São Pedro esculpida em madeira e pintada pelas mãos de um dos mais nobres artistas italianos. À esquerda, um crucifixo que, embora sendo de pequenas dimensões, compensa pelos detalhes de ouro maciço que adornam a cruz. A pequena máquina de escrever do papa, uma Remington de cor branca, foi chegada para um dos lados da secretária a fi m de abrir espaço para os papéis que Pio XII e o cardeal secretário de Estado usam durante a sua reunião. O agora papa teve ali muitas reuniões semelhantes a esta, no tempo em que era secretário de Estado de Pio XI. A lógica e os assuntos mantêm-se, a única coisa que mudou foi o seu cargo dentro da cúria.

Pio XII ocupa a sua habitual posição atrás da secretária. Uma batina branca com trinta e três botões, um por cada ano de vida de Jesus Cristo, cobre-lhe o corpo. Usa uns óculos com lentes perfeitamente redondas, apoiados sobre o nariz. Calça os típicos múleos vermelhos reservados ao papa, da cor do sangue derramado pelos santos mártires da Igreja. Uma faixa de seda, também ela branca, enrola-se firmemente à sua cintura e as extremidades dependuram-se ao longo do corpo quase até ao chão. Pelos ombros cai-lhe o amito cuidadosamente alinhado. Ao pescoço, pela altura do coração, enverga uma cruz cravejada de pedras preciosas em vários tons azulados e esverdeados. No topo dos cabelos, que já não são muitos, assenta um solidéu branco, feito das melhores peças de veludo. Na sua mão direita ostenta-se a peça mais importante que um papa pode usar, o anel do pescador. Encaixado de forma perfeita no dedo anelar, o anel de ouro maciço é o símbolo máximo da supremacia, infalibilidade e primazia do Santo Padre. Por ser único para cada herdeiro de Pedro, será destruído imediatamente após a confirmação da morte de Pio XII. Estas vestes, quotidianas e bem simples, em nada são comparáveis aos paramentos que usa quando é transportado na sua sede gestatória, por doze homens, ao longo da Praça de São Pedro. Aí, os belos padrões da alva, que se sobrepõe a tudo o resto, e o brilho das joias preciosas que ornamentam as três coroas da tiara papal deixam bem claras as funções de sacerdote, profeta e rei do homem que a usa.

A cova no queixo do Cardeal Maglione sobrepõe-se a todas as demais feições do seu rosto. É um dos mais reconhecidos traços físicos do cardeal secretário de Estado. Já no que aos paramentos diz respeito, uma batina em tudo semelhante à de Pio XII, exceto na cor, cobre-lhe o corpo. A batina do cardeal é toda negra mas pontilhada com trinta e três botões vermelhos. Por cima veste uma sobrepeliz rendada e um amito vermelho. Vermelhos são também o solidéu que traz à cabeça e a faixa justa à cintura. À altura do coração dependura-se uma cruz tão ou mais cravejada de joias que a de Pio XII. O barrete e o anel cardinalício, símbolos de um típico príncipe da Igreja e impostos por Pio XI no consistório cardinalício de 1935, são orgulhosamente usados pelo Cardeal Maglione.

De supetão, a porta do escritório é aberta. O barulho do forte embate na parede causa um enorme susto nos dois homens. Quem chega nem se dignou a bater na porta, de forma a pedir licença ou a anunciar a sua entrada.

— Vossa santidade! Vossa eminência! O mal está perto! O que mais temíamos vai acontecer!

A voz grave mas ligeiramente trémula entrega a sua preocupação.

— O que pensa que está a fazer, Monsenhor Di Corneliano?!

O tom austero e o olhar grave do cardeal secretário de Estado em direção a Di Corneliano deixam transparecer o elevado incómodo que se apoderara dele, causado pela tão inesperada e abrupta interrupção. Nem ele nem Pio XII estão habituados a ser interrompidos desta forma.

— Lamento imenso ter entrado assim, eminência! Perdoem-me tê-los interrompido, mas o assunto não é para menos! Por favor, têm de ler esta carta imediatamente! Estamos perdidos!

Os olhares de Pio XII e de Maglione cruzam-se por breves instantes. Ambos exibem uma feição inquisitória no rosto, revelada pelo franzir da vista e pelas rugas da testa. O camareiro pessoal de Pio XII corre em direção a eles e pousa o envelope negro sobre a mesma secretária onde, até há alguns segundos, se tratava do governo da Santa Sé e da Igreja. Sem se demorar muito e a começar a fi car inquieto com as atitudes do seu camareiro, Pio XII pega no envelope, retira o papel do seu interior e percorre o texto com os olhos.

Sua Santidade, Papa Pio XII,

O plano de Hitler vai avançar! O Vaticano será invadido em poucas semanas, talvez dias! O Santo Padre está em risco!

Um amigo

Assim que lê a carta, Pio XII sente-se ligeiramente perdido. Um turbilhão de ideias toma conta de si. Tenta perceber mentalmente o verdadeiro signifi cado das palavras que acaba de ler. Ao notar que aquilo pode tratar-se de um assunto bem sério, mira Maglione com um olhar vidrado.

— O que diz o papel, Santo Padre? — questiona o cardeal.

— Veja você mesmo, Maglione! O que faremos agora? O que será de mim? O que será de nós? O que será da Igreja?

O cardeal pega no papel e, em poucos segundos, lê o seu conteúdo.

À medida que o papa ia interiorizando o que acabou de ler, o seu coração acelera-se de tal forma que, se tal fosse anatomicamente possível, saltar-lhe-ia do peito.

— Aquele blasfemo imundo quer pôr as suas mãos nojentas em mim! Quem é que ele pensa que é para afrontar desta forma a Igreja? Capturar o papa? Onde já se viu uma loucura destas? Aquele tirano assassino só pode ser a encarnação do Demónio! Deve estar possuído, é a única explicação! Diabo!

VII

Fratelli Cardinali…

As palavras do Monsenhor Di Corneliano caem que nem uma bomba da guerra que se vai desenrolando para lá dos muros da Cidade do Vaticano e um pouco por toda a Europa. Um intenso burburinho sente-se. As testas franzidas ou os olhos mais abertos que o normal de uma boa parte dos cardeais presentes transparecem muito bem o espanto e a surpresa que se instalara logo após a leitura da carta. Por esta ser simples e direta, não deixa qualquer tipo de dúvida quanto ao seu conteúdo ou significado.

Dominioni é o primeiro dos cardeais a reagir. O exibicionismo e a ostentação com que anunciou Pacelli como novo papa, perante toda a Praça de São Pedro, há quatro anos, parecem ter-se perdido. O desespero causado pela carta lida há instantes nota-se na sua voz trémula.

— Meu Deus, que horror! É o fi m! O que será de mim? De nós? Da Igreja?

As suas perguntas revelam-se meramente retóricas. Ninguém se preocupa em responder-lhe. Talvez porque também ninguém tenha respostas para lhe dar.

— O quão verdadeira é essa informação? — atira um dos cardeais.

— Como sabemos que essa carta não passa de uma mera brincadeira de péssimo gosto? — acrescenta um segundo.

— Sim, quem foi o autor da carta? Quem poderia ter acesso a tal informação? E porque haveria essa pessoa de avisar-nos? — questiona um terceiro.

As perguntas vão sucedendo-se em catadupa, uma após outra, sem deixarem espaço de resposta. O Cardeal Maglione, fazendo valer-se da sua condição de secretário de Estado, acha por bem tomar as rédeas da situação.

— Vossas eminências, como devem compreender, eu já estou ciente deste enorme problema que se apresentou nos nossos caminhos há alguns dias. Uns quantos pares de olhos reviram-se num claro sinal de desprezo pela prepotência na fala de Maglione.

— Na minha condição de cardeal secretário de Estado da Cidade do Vaticano, posição que muito me orgulho de ocupar, fui informado desta enorme calamidade ao mesmo tempo que o Santo Padre, evidentemente.

Pio XII, que se tem mantido em silêncio praticamente desde o início do encontro, dá consigo a constatar que, mesmo convivendo com uma pessoa por anos e anos, é impossível conhecer a sua verdadeira índole e as suas verdadeiras intenções.

Maglione prossegue com o seu discurso de autoexaltação.

— A dita carta terá chegado há uns dias pelo correio. O camareiro do Santo Padre não fez mais do que a sua obrigação e alertou-nos de imediato para o caráter preocupante do seu conteúdo. Realmente, a mensagem merece a nossa maior atenção, vossas eminências.

Ainda sentado junto de Pio XII, Di Corneliano não consegue deixar de reparar no tom de menosprezo e desdém que, mais uma vez, Maglione usa para se referir a si.

— Todos temos visto as crueldades que o regime de Hitler tem praticado pela Europa fora e também é sabido que este homem não se fica por meras ameaças. A nossa querida Itália, por exemplo, tem sofrido bastante, não é assim Cardeal Selvaggiani?

Como seria de se esperar, o cardeal-vigário de Roma apressa-se a confirmar as palavras do seu mais próximo aliado.

— Assim é, vossa eminência. De facto, Hitler tem vindo a aproximar as suas tropas de Roma e tem conquistado cidade atrás de cidade. São já milhares os mortos inocentes e…

Selvaggiani mal consegue terminar a frase. Maglione continua o seu discurso do alto de um púlpito fictício que se desenha na sua mente. Sente-se como um verdadeiro maestro a reger toda uma orquestra.

— Mas mantenham-se calmos, caros irmãos cardeais. Como devem entender, importantes decisões já foram discutidas e tomadas. Nem eu permitiria que fosse de outra forma. Nesse momento, uma falsa gargalhada ecoa por toda a Capela Sistina. Os presentes facilmente percebem que o riso vem de uma pessoa, Faulhaber.

— Não seja presunçoso, Cardeal Maglione! Não fique com méritos que não lhe pertencem! Já se esqueceu de que houve mais pessoas presentes na reunião a que se refere e que podem facilmente revelar o seu real contributo para o assunto?

Maglione, mirando os seus dois aliados mais próximos, Selvaggiani e Fossati, não deixa o cardeal alemão sem resposta.

— Perdoem-me o esquecimento, vossas eminências. O cardeal judeu também esteve lá. Fez um papel de figurante tão bom que eu até me esqueci da sua presença.

A raiva apodera-se de Faulhaber. Mais uma vez, Maglione usa contra si aquilo que mais o afeta emocionalmente. Ser tratado pela alcunha maliciosamente colocada pelos nazis é algo que enfurece Faulhaber a um nível inimaginável.

Antes de conseguir retorquir, alguns outros cardeais saem em defesa de Faulhaber.

— Não seja insensível, eminência! A voz de Hlond é das primeiras a fazerem-se ouvir e a insurgirem-se contra o Cardeal Maglione.

Livro: "Quando o Vaticano caiu"

Autor: Pedro Catalão Moura

Editora: Saída de Emergência

Data de Lançamento: 11 de janeiro de 2024

Preço: € 18,80

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— Tem noção a quantos milhares de mortes de judeus a Europa tem assistido nos últimos tempos? Tem noção de como tem sofrido, por exemplo, a Polónia?! O meu e outros países estão a ser completamente destruídos pelas mãos dos nazis e vossa eminência ainda faz graças com tudo isso?

Lavitrano achou por bem entrar na discussão.

— E é precisamente por causa dessa sua mania de proteger os pobrezinhos e de se armar em alma caridosa que não foi eleito papa no último conclave, Cardeal Hlond. Um papa polaco, que desgraça seria! Hoje um papa polaco, amanhã mulheres a rezar missa! Onde já se viu? O mundo está mesmo perdido…

Por mais escabrosas e repudiáveis que as palavras do cardeal tenham soado, ainda há quem se coloque ao lado de Lavitrano.

— É bem verdade, eminências. Serão estes novos costumes e modernices os culpados pela destruição da religião e que acabarão por ditar o fim da Igreja! Uma verdadeira vergonha!

O Cardeal Ascalesi não perde uma oportunidade para se humilhar ainda mais.

— Obrigado por concordar comigo, eminência. E, se me é permitido, não creio que Hitler tenha intenções negativas para com o Vaticano. Talvez até seja bom termos Hitler como aliado.

As intenções de Lavitrano são claras. Ao apoiar os diversos regimes autocráticos europeus tem esperança em que, se algum deles vier a controlar o Vaticano, o coloque a si como Sumo Pontífice da Igreja Católica universal. Nada mais que um fantoche, é certo, mas seria um fantoche vestido de branco e venerado pelas massas.

As falas repletas de repugnância, escabrosidade e preconceito do Cardeal Lavitrano e do Cardeal Ascalesi desagradam a muitos dos presentes. Uma pessoa em particular, o arcebispo de Florença, Dalla Costa, não consegue conter-se e parte para o insulto contra Lavitrano.

— Energúmeno, acéfalo, fascista e preconceituoso! Adjetivos que lhe assentam que nem uma luva, Cardeal Lavitrano. Como pode um príncipe da Igreja ser alguém tão execrável? Ser alguém tão mentalmente inapto e incapaz? Ser alguém tão repugnante, insensível e alheio da realidade?

Acusações vão sendo trocadas entre os vários cardeais. Os grupos vão ideologicamente distanciando-se entre si. A crispação no interior do Colégio Cardinalício faz até lembrar os jogos políticos de bastidores aquando da eleição de um novo papa.

O cardeal-decano pondera seriamente intervir e terminar com toda a confusão que acabara de se instalar mas não se atreve a fazê-lo. Afinal, não lhe cabe a si a posição de máxima autoridade da sala. Resta ao papa tomar as rédeas e prosseguir. E assim é. Pio XII interrompe finalmente o seu silêncio e tenta serenar os ânimos.

Fratelli cardinali, este não é o momento certo para discórdias entre nós. Já existem conflitos e guerras sufi cientes no lado de fora dos muros do Vaticano. Não permitam que proliferem também no seu interior.

Com estas palavras calmas e instigadoras de paz, o Sumo Pontífice consegue repor alguma ordem, ainda que momentânea.

— O Cardeal Maglione tem razão. De facto, já algumas decisões foram tomadas e é precisamente para comunicá-las a todos vós que pedi que aqui viessem.

Os cardeais parecem, agora, escutar com mais atenção o que o Santo Padre tem para partilhar com eles.

— Embora anónima, a carta merece a nossa maior atenção. Realmente pode ser uma brincadeira de mau gosto, mas a Santa Sé não pode correr o risco de ignorá-la. É conhecido o sentimento de impunidade de Hitler. E todos conhecem também o facto de eu e o Cardeal Faulhaber, a pedido do meu antecessor, termos sido responsáveis pela condenação do regime nazi. Hitler vê em mim um alvo a abater, mas ainda assim jamais permitirei que a Igreja que eu hoje lidero seja capturada e destruída por este sanguinário. O controlo da cúria por parte das forças nazis seria sinónimo do fim da Igreja Católica. E não permitirei que isso aconteça.

Um dos cardeais interrompe Pio XII.

— Palavras bonitas, Santo Padre, mas o que tenciona fazer em concreto? — questiona o cardeal que, talvez de entre todos os «papáveis», mais sofria por não ter sido ainda eleito papa.

O Cardeal Fossati nunca aceitou verdadeiramente ter perdido a eleição no conclave de 1939. Embora tudo não tenha passado de um conluio entre os dois mais fortes grupos de cardeais, para eleger Pacelli como papa na condição de Maglione ser escolhido para secretário de Estado, Fossati preferia um acordo inverso. O cardeal acha que ele deveria ter sido eleito papa e um qualquer cardeal do outro grupo ser selecionado para secretário de Estado. Sente até um ligeiro rancor pela, como ele próprio classifica, traição de Maglione e Selvaggiani, os seus mais próximos aliados. Apesar de tudo, mantém uma relação próxima e de cordialidade com ambos porque, afi nal, os papas são homens velhos, fi cam doentes, morrem e têm de ser substituídos. Ninguém sabe quando poderá ser o próximo conclave, por isso há que manter os aliados próximos. Em Pio XII, Fossati vê um usurpador do trono de Pedro e não perde uma oportunidade de o confrontar e de questionar as suas decisões.

— E porque não pergunta isso ao seu caro amigo secretário de Estado, eminência? Afi nal, acabou de dizer à frente de todos nós que sabe de tudo o que foi decidido.

O Cardeal Dalla Costa sai em defesa de Pio XII. Sentindo-se diretamente interpelado, Maglione riposta com alguma ironia.

— Caro Cardeal Dalla Costa, não me diga que sente ciúmes por só agora estar a ser informado. Já devia saber que o ciúme e a inveja são dois pecados bastante graves. Não sente vergonha por ser um pecador, vossa eminência? Tem de confessar os seus pecados!…

O cardeal-vigário de Roma apressa-se a contribuir para o argumento de Maglione.

— Cá para mim, parece-me que toda esta situação foi causada pela maldita encíclica. Sabemos todos muito bem que Pio XI nunca teve uma verdadeira intenção de condenar os nazis, mas foi persuadido a tal pelo Cardeal Faulhaber e pelo então Cardeal Pacelli!

Um outro qualquer cardeal junta-se a Selvaggiani nas críticas a Pio XII.

— É bem verdade. O Santo Padre vem para aqui com conversas bonitas, mas é o verdadeiro culpado de toda esta situação. Quando era cardeal secretário de Estado de Pio XI resolveu dar um tiro para o ar e, agora que é papa, esse tiro regressou para lhe cair na cabeça! A culpa é toda sua, santidade!

Neste momento, Pio XII perde novamente a força para responder aos ataques diretos de que estava a ser alvo por parte de membros do Colégio Cardinalício. Fecha-se em si mesmo quase como uma tartaruga que se refugia dentro da carapaça. A confusão e a balbúrdia tomam de novo conta da sala. Os gritos e as acusações entre os diversos cardeais regressam.

É Hlond quem mais se insurge contra as críticas feitas à encíclica de Pio XI e a Pio XII.

— Como pode dizer tal coisa, eminência?! Como pode criticar o facto de se ter condenado publicamente as atrocidades do regime nazi? Não me diga que se está a aproximar do Cardeal Lavitrano! Não me diga que temos um novo fascista xenófobo na sala! Roma está prestes a ser invadida e vossa eminência, cardeal-vigário da cidade, ainda critica que se tenha condenado estes atos tão vis e repugnantes?

Realmente, as acusações de Selvaggiani não fazem grande sentido. Parece que ele está mais preocupado em seguir na mesma carruagem do Cardeal Maglione do que com o que realmente importa.

— Polaco de treta — balbucia Lavitrano na direção do Cardeal Ascalesi, que reage com uma gargalhada sonora.

As acusações sucedem-se. O caos está instalado. Quem visse de fora e não reconhecesse as vestes de príncipe da Igreja, juraria estar a assistir a uma discussão futebolística regada a álcool no interior de um qualquer bar.

Pio XII tem as mãos sobre o rosto como quem tenta esconder-se da confusão e de todos os recentes problemas. Monsenhor Di Corneliano tenta acalmar o papa. Os cardeais deitam culpas uns aos outros. Maglione e os seus aliados acusam Faulhaber, Hlond e Dalla Costa, que respondem com igual veemência. Uns quantos palavrões vão sendo soltados. Villeneuve, o único cardeal presente oriundo da América do Norte, vai também lançando umas acusações, embora sem grande energia. Sente-se um pouco desamparado por não ter consigo os seus habituais aliados, o Cardeal Dougherty e o Cardeal O’Connell, norte-americanos e ambos ausentes. O Cardeal Dominioni, debruçado sobre a mesa, chora como uma criança. Um verdadeiro e infindável caos.

Fratelli cardinali, por favor, deixem o Santo Padre continuar! Haverá tempo para dizerem tudo o que pensam.

Incrivelmente, o Cardeal Vidal y Barraquer, embora bastante combalido pelas doenças que o têm assolado e pela enorme tristeza de ver-se exilado, consegue impor alguns segundos de silêncio. Ele sabe bem que o papa tem algo mais a dizer.

— Há mais?! Então diga de uma vez, Santo Padre — exige um dos cardeais.

A voz de Pio XII, enfraquecida pelos ataques de que está a ser alvo, lá consegue fazer-se ouvir.

— A Santa Sé mudará de lugar. A cúria será transferida para outro país.

VIII

Servus Servorum Dei…

A maior parte dos elementos do Colégio Cardinalício acaba de saber das mais recentes novidades. Mal podem acreditar que a Igreja tem obstáculos de tal magnitude no seu caminho e a reação a essa incredulidade é explosiva. Os cardeais insultam-se entre si, gritam, barafustam, praguejam, tudo o que não deveria ser feito por um príncipe da Igreja.

A frase acabada de ser dita por Pio XII deixa todos os presentes em estado de pânico. Se a leitura da carta recebida anonimamente no Vaticano já havia sido um choque imenso, a revelação que o papa acaba de fazer é um choque em dobro, talvez em triplo. Excluindo os que já sabiam, não há quem não tenha esbugalhado os olhos ao ouvir Pio XII.

— O que está a acontecer, meu Deus?! Como é possível tudo isto? O que será da Igreja? O que será de mim?

Dominioni é um dos mais desesperados de entre todos os cardeais presentes, e isso é visível não só na sua voz completamente alterada e nos seus gritos de desespero, como também no seu semblante tão vermelho quanto os paramentos cardinalícios.

— Não devo ter ouvido bem! Porque não nos disse antes, Maglione? Pensava que confi ava em nós! — procura saber Selvaggiani.

— O papa está louco! Maglione, faça alguma coisa! — exige o Cardeal Piazza.

Embora prefira manter-se um pouco mais discreto que os demais, o Cardeal Adeodato Piazza, patriarca de Veneza, encontra em Maglione, Selvaggiani e Fossati os seus mais próximos amigos. Outros dirão que tudo não passa de interesse do outrora frade, já que Maglione ter-lhe-á prometido que, um dia, a secretaria da Sagrada Congregação Consistorial seria sua. Em tempos frade da Ordem dos Carmelitas Descalços a viver num mísero convento, hoje é príncipe da Igreja com um luxuosíssimo apartamento em Roma. Como a vida é curiosa…!

Tal como qualquer outro cardeal, também Hlond, Dalla Costa e Marmaggi se sentem arrebatados pela informação que acabam de ouvir. Dúvidas e mais dúvidas brotam nas suas mentes. Olham de imediato para Faulhaber em busca de respostas. Já que o alemão esteve na dita reunião com Pio XII, poderá confi rmar de imediato se aquilo é mesmo verdade. Um leve aceno vertical de cabeça é tudo o que recebem do cardeal e basta para perceberem que esta foi mesmo a decisão tomada por Pio XII.

Lavitrano aproxima-se ainda mais de Ascalesi e os dois começam a balbuciar algo impercetível entre si. A eles vem juntar-se um ou outro cardeal, também eles mais conservadores.

Os gritos de acusação regressam.

— Como pode tal decisão ser tomada desta forma? O que será das igrejas? — grita um dos cardeais.

— E os cofres?! E as peças de arte? — acrescenta um segundo.

— E os livros? Os arquivos? — diz ainda outro.

— Herege!

— Pio XII e Hitler, os responsáveis pelo fim da Igreja Católica…!

— Maldito seja o papa! Vai destruir a Igreja!

— Um novo cisma da Igreja! Isto não passa de um novo cisma!

— Ele que fuja, nós ficaremos!

A maioria dos bramidos é dirigida a Pio XII. O papa é acusado de heresia, de querer destruir a Igreja tanto quanto o próprio Hitler, e é acusado de fazer exercer excessivamente a supremacia, a infalibilidade e a primazia papais.

No meio de tamanhas diatribes e insultos, gritos de revolta e cardeais amotinados contra Pio XII, há uma pessoa que se tem mantido totalmente em silêncio desde a sua chegada à Capela Sistina. Belmonte optou por assistir a todo aquele teatro sem interferir. Conservou-se abstraído, distante, a julgar de longe a reação e os comentários de cada um dos elementos do Colégio Cardinalício ao qual ele preside. Havia decidido manter-se assim ao longo de todo o encontro, mas as palavras que foram entretanto ditas, as acusações injustas entre cardeais e os ataques vis a Pio XII levam-no a quebrar o silêncio.

— Basta!

Belmonte sabe que se não for ele mais ninguém conseguirá repor a ordem. Ergue-se da sua cadeira de supetão e, sem precisar de erguer muito a sua voz, dirige-se aos cardeais amotinados.

— Vossas eminências, basta! Exijo silêncio imediato ou serei obrigado a tomar medidas!

Alguns dos cardeais parecem ter-se apercebido somente agora da presença de Belmonte. Habitualmente é ele, enquanto decano do Colégio Cardinalício, que comanda as intervenções dos demais e não ouvir a sua voz por tão longo período é estranho para os cardeais. Ainda assim, mal o decano emite o mais pequeno dos sons, nenhum dos cardeais se atreve a não cumprir as suas ordens. É este o fruto da experiência. Não adianta ser-se temido se não se for respeitado.

— Quem é que vossas eminências pensam que são?! Onde raio pensam estar? Com quem acham que estão a falar? Como ousam dirigir-se dessa forma e nesses termos a Sua Sanctitate Papa Pio XII, Sancte Pater, Episcopus Romanus, Vicarius Iesu Christi, Successor Principis Apostolorum, Summus Pontifex Ecclesiae Universalis, Patriarcha Occidentalis, Primatus Italiae, Archiepiscopus Metropolitanus Provinciae Romanae, Superanus Sui Iuris Civitatis Vaticanae e Servus Servorum Dei [Sua Santidade Papa Pio XII, Santo Padre, Bispo de Roma, Vigário de Jesus Cristo, Sucessor de São Pedro Príncipe dos Apóstolos, Sumo Pontífi ce da Igreja Universal, Patriarca do Ocidente, Primaz da Itália, Arcebispo Metropolitano da Província Romana, Soberano do Estado da Cidade do Vaticano e Servo dos Servos de Deus]? Como ousam pecar dessa forma?

— Mas, vossa eminência, esta é uma situação de…

— Silêncio, cardeal!

A sua voz sai forte, grave e assertiva, e chega quase a ser desrespeitosa para os seus irmãos cardeais. Nem nos momentos mais calorosos da eleição papal no conclave de 1939 precisou de fazer ouvir-se desta forma.

— Intitulam-se príncipes da Igreja, eminências? A mim parecem-me mais príncipes sem reino! Parecem-me homens sem discernimento ou bom senso! Parecem-me meros cães esfomeados que se digladiam por um resto de carne! Parecem-me o vazio, o nada!

As palavras de Belmonte parecem ter atingido diretamente o orgulho da grande maioria dos presentes. Sentem-se ultrajados, desafiados e insultados. E vindas do cardeal-decano, as palavras têm um peso ainda maior.

— Eu sinto vergonha de fazer parte do mesmo colégio que vossas eminências. Sinto vergonha por ver os príncipes da Igreja transformados nuns verdadeiros pagãos hereges que ousam desafiar o representante máximo de Deus sobre a Terra!

Dominioni, por ser cardeal-diácono, e talvez por ter o discernimento toldado pelos nervos, decide fazer algo a que nem os cardeais mais experientes se atreveriam, confrontar Belmonte.

— Devia ter mais respeito pelos cardeais e por toda a nossa preocupação e frustração! Vossa eminência deve estar tão louco quanto o Santo Padre! Vem para aqui exigir respeito e acusar-nos de mundos e fundos, mas é tão herege quanto Pio XII. Está mais que na hora de escolher um novo cardeal para ocupar o decanato do Colégio Cardinalício! E, já agora, que se escolha também um novo papa, o atual já não serve os propósitos da Igreja!

O silêncio instala-se e prolonga-se por alguns longos segundos, tão longos que mais parecem horas. Nunca ninguém se dirigira ao Cardeal Belmonte em tal tom. Ninguém ousara afrontá-lo desta forma por respeito ao decanato e, também, ao homem mais experiente de entre todos eles. É evidente que esta foi uma muito má ideia de Dominioni.

Perante o comentário do cardeal-diácono, Belmonte começa por esboçar um ligeiro sorriso com o lado direito da boca e, de seguida, semicerra os olhos. É percetível que o cardeal está a pensar muito bem nas palavras a usar como resposta.

— Pois que assim seja, eminência. Que seja feita a vontade de Deus. Se for esse o desígnio de Deus para a Igreja, pois então que se troque o papa e que se troque o cardeal-decano.

Belmonte responde de forma inesperadamente calma.

— Mas, antes de avançarmos com essa sua ideia peregrina, diga-nos uma coisa a todos. A sua frustração é, de facto, Cardeal-diácono Dominioni, com a Igreja e com a cúria? É, de facto, medo de ver a Igreja capturada e subjugada por Hitler e pelo seu regime sanguinário? Ou será que vossa eminência está mais preocupado com os jovens rapazes que terá de deixar em Roma? Será que vossa eminência está antes receoso de não encontrar semelhantes jovens rapazinhos no país de destino para satisfazer os seus caprichos e desejos pecaminosos? Diga-nos lá, eminência, é esse o seu real transtorno, não é?

A boca de Dominioni abre-se por completo e é nítido o seu arrependimento por ter confrontado Belmonte. O sentimento de ver exposto o seu maior segredo, perante os seus iguais e perante o Santo Padre, é destruidor. Embora já todos o soubessem, Dominioni jamais sonhara que alguém conhecesse este seu pecado e muito menos que ele fosse exposto desta forma na praça pública. Nunca pensara que o Colégio dos Cardeais e o papa soubessem das suas aventuras criminosas com jovens rapazes menores de idade, e isso é de tal maneira angustiante e desesperador que Dominioni só pensa em fugir dali, em meter-se num qualquer buraco.

— Se é esse o seu verdadeiro medo, Cardeal Dominioni, não vale a pena sofrer mais. Tenho a certeza de que conseguirá encontrar bastantes jovens para se divertir, e bem novos, como vossa eminência tanto parece gostar, não é assim?

Dominioni não suporta mais ouvir o que Belmonte diz. Corre em direção à saída da capela aos gritos. Grita por Deus, por perdão e por misericórdia. Com a mão esquerda agarra no solidéu para que este não caia no chão e com a direita empurra a porta com uma força inesperada. Os seus gritos vão ficando mais fracos à medida que se afasta, até que deixam de se ouvir por completo.

Embora quase surdo, Vidal y Barraquer mantém-se atento a tudo e não perde a oportunidade de fazer uma graça.

— Lá se vai o pederasta. Deixá-lo ir. Pouca falta fará.

— Lá vai quem, vossa eminência? — pergunta um dos cardeais, sentado próximo de si.

— O pederasta. Pederasta, pedófilo, é tudo a mesma coisa. Tem de ler mais, cardeal! Vou oferecer-lhe um dicionário.

Parece que alguém teve finalmente coragem de dizer aquilo que há muito deveria ter sido dito e, de facto, os demais cardeais pouca importância parecem dar à saída do cardeal-diácono. Apesar de ligeiramente admirados com a força das palavras do cardeal-decano, não sentem qualquer remorso ou pena por Dominioni.

— Mais alguém tem algum comentário a fazer ou podemos prosseguir com o encontro?

A este ultimato travestido de pergunta segue-se o silêncio total na sala. Os cardeais parecem agora ter receio de intervir e levar um tratamento semelhante ao de Dominioni. Nem mesmo Maglione teve coragem para soltar uma mera palavra neste momento tão tenso.

— Grato, vossas eminências. Vossa santidade, por favor, continue a falar- -nos das suas decisões.

— Continue, vossa eminência, por favor. As minhas forças estão mais do que esgotadas…

Todos os acontecimentos dos últimos dias, e em especial destes últimos momentos, estão a levar Pio XII até um ponto de quase rutura. O papa está a acusar um enorme desgaste mental e físico, e isso é claro aos olhos de todos.

Sem deixar abalar-se, Belmonte prossegue.

— Com certeza, vossa santidade. Vossas eminências, a importante decisão de deslocar a cúria foi ponderada e aprovada pelo Santo Padre após ouvir os conselhos e opiniões de quem de direito. Nada mais há a tratar do que informar-vos a todos disso mesmo. É desnecessário lançarem perguntas e mais perguntas para o ar, porque agora não é oportuno responder-lhes. Limitem-se a aceitar a decisão que o Santo Padre fez, atendendo à supremacia papal de que goza por direito canónico. Se não o quiserem fazer, o caminho é simples: apresentam as vossas cartas de renúncia ao cardinalato e eu garanto-vos que o Santo Padre aceitá-las-á de imediato!

Com o cardeal-decano ao comando do encontro, a calmaria parece ter finalmente substituído o caos dos momentos anteriores.

— A nossa função agora, enquanto cardeais, é simples: devemos informar os que não puderam estar presentes. Refiro-me ao episcopado e sacerdotes que cada um tem sob a sua dependência direta. Os bispos e demais membros da cúria que se justifi que saberem desta mudança devem ser informados por vossas eminências. Mantenham, no entanto, esta informação o mais secreta possível. Repito, só deve ser transmitida a terceiros em casos estritamente necessários.

Neste momento, o olhar do Cardeal Belmonte fixa-se diretamente em Lavitrano.

— Faço-me entender completamente, Cardeal Lavitrano? Espero que os seus amigos fascistas não sejam informados do que se está hoje aqui a tratar. Eu juro pelo meu anel cardinalício que, caso o plano com que se pretende salvar a Igreja Católica falhe por eventuais fugas de informação provocadas por vossa eminência, não descansarei um único segundo até o ver excomungado, despido de todo e qualquer título e exilado para o ponto mais recôndito do planeta! Espero ter sido suficientemente claro!

Um sorriso rasga-se no rosto do Cardeal Dalla Costa. Nada lhe dá maior prazer do que ver Lavitrano ser encostado a uma parede. Já o cardeal-arcebispo de Palermo, por sua vez, não tem motivo para sorrir. Com esta interpelação direta de Belmonte, a sua vontade era de fugir como Dominioni. Ainda assim, é demasiado vaidoso para se escapulir dali que nem um cão assustado. Opta por manter-se em silêncio e não ripostar.

— Quanto aos cardeais que não puderam estar hoje presentes, eu próprio tratarei de informá-los do que se está a passar e, se for caso disso, convocá-los-ei para se juntarem a nós no país de destino.

Neste momento é a vez de o Cardeal Di Corneliano, tio do Monsenhor Di Corneliano, intervir. Também ele se tem mantido bastante silencioso. Talvez ainda não tenha conseguido digerir toda a informação que recebeu em catadupa.

— E afinal, vossa eminência, que destino é esse? — Portugal, Cardeal Di Corneliano.

IX

Um jardim à beira-mar plantado…

O caos que há instantes reinava no interior da Capela Sistina deu lugar à calmaria. Os ânimos estão mais serenos e as acusações parecem ter sido substituídas pela cordialidade. O Cardeal Belmonte consegue manter a ordem e a atenção dos demais cardeais. É certo que um cardeal fugiu, outro foi ameaçado de excomunhão e aos demais abriu-se a porta da renúncia ao cardinalato. Ainda assim, o encontro pode finalmente prosseguir com alguma normalidade.

O cardeal-decano anuncia finalmente o destino para o qual a cúria se mudará. Portugal é o país escolhido. Uma gargalhada ecoa nos frescos que cobrem as paredes da capela. Mesmo sem o apoio dos seus habituais aliados, o Cardeal canadiano Villeneuve não perde a ocasião para expor, perante os demais cardeais, os ideais em que acredita.

— Peço imensa desculpa, vossa eminência, mas dá mesmo vontade de rir. Não se entende a teimosia de muitos de vós com a velha e cansada Europa. O mundo inteiro já percebeu que o futuro está na jovem e moderna América. A Europa está tomada por regimes totalitários, retrógrados, antiquados e assassinos, enquanto na América reina a liberdade, a paz e a justiça.

Villeneuve arrisca-se a levar com uma das impiedosas respostas de Belmonte, mas não deixa de ter alguma razão. A Europa atravessa, sem dúvida, um dos mais horríveis períodos de toda a sua História.

— Já que pretendem ir mesmo para a frente com a mudança da cúria para um novo país, então a América deve ser a escolha a fazer-se. E tenho absoluta certeza de que alguns dos cardeais concordarão comigo. O Cardeal Dougherty, se aqui estivesse, concordaria de certeza, eminências.

Contrariamente ao esperado por Villeneuve, quase nenhum dos cardeais aprecia tal sugestão.

— A América é longe, vossa eminência.

Muitos dos elementos da cúria, incluindo os próprios cardeais, são homens velhos e cansados, tal como a própria Europa. Atravessarem um oceano inteiro e mudarem-se de malas e bagagens para um outro continente é tudo menos apelativo. É precisamente este o argumento utilizado pelo cardeal-decano para justificar o motivo de a América não ter sido a opção escolhida.

— E porque não pedimos auxílio aos Aliados? Talvez devêssemos tomar um dos lados do conflito, oficializar o nosso apoio às forças aliadas e esperar que elas venham em nosso auxílio.

Selvaggiani propõe exatamente o mesmo que Maglione havia sugerido logo na primeira reunião.

— Foi precisamente isso que eu defendi! — nota Maglione.

— E seria precisamente isso que eu faria, caso tivesse sido eleito papa há quatro anos — apressa-se a acrescentar Fossati.

— Pois, mas esta nossa ideia parece não agradar a todos, Cardeal Fossati.

Até então, Hitler e as suas tropas têm passeado pela Europa sem que alguém tenha sido capaz de o deter ou sequer abrandar. As forças aliadas têm revelado algumas fraquezas, pouca coesão e mal têm conseguido manter-se a si próprias, imagine-se ainda protegerem quem nada lhes pode oferecer a não ser umas quantas orações e missas. Algum ouro também, certamente, mas quem se preocupa com riquezas no meio de um conflito armado mundial?

— Como eu disse há instantes, eminências, todas essas questões e sugestões foram já discutidas e ponderadas. Não percamos mais tempo com elas.

Uma vez justificada a razão de não se pedir auxílio aos Aliados, Belmonte prossegue a sua intervenção.

— Como sabem, para lá dos Estados Unidos da América, dois outros países fizeram chegar convites ao Vaticano. Ambos se disponibilizaram a receber a cúria caso o confl ito evoluísse até esse ponto. Evidentemente, nenhum de nós esperava que viesse a ser realmente preciso aceitar um desses convites, mas, infelizmente, não nos resta alternativa.

— Espanha nem pensar, eminências! Franco es un hijo de puta!

Vidal y Barraquer vira-se para o cardeal que, até há alguns minutos, desconhecia o significado de pederasta.

— Estas palavras não precisa de aprender, cardeal.

Nem os vários problemas de saúde impedem o Cardeal Vidal y Barraquer de se fazer ouvir e de lançar uma ou outra laracha. Sendo ele um exilado do próprio país, o cardeal usa todas as suas poucas forças para se opor à ida da cúria para terras espanholas. Afinal, se nem ele pode entrar no seu país, imagine-se o que poderia Franco ser capaz de fazer assim que a Santa Sé se instalasse sob o seu domínio.

— Bom, o Cardeal Vidal y Barraquer acabou de nos explicar a todos, com palavras bem simples e claras, porque o seu país também não é a melhor das opções.

A expressão genuína usada pelo cardeal espanhol, seguida pela graçola do cardeal-decano, vem ajudar a eliminar um pouco da tensão que se vive no interior da capela. Ouvem-se até alguns risos relaxados.

— Assim sendo, eminências, resta-nos a última opção, resta-nos Portugal. Sua santidade pediu ao Cardeal Cerejeira que abordasse o presidente do governo português sobre a veracidade e fi dedignidade do convite endereçado ao Vaticano há já largos meses.

— Presidente esse que, segundo sei, de democrático tem muito pouco. Como seria de se esperar, o Cardeal Dalla Costa, profundo crítico de qualquer tipo de regime autocrático e fascista, depressa expõe as suas preocupações relativamente ao destino escolhido.

— Esse tal Salazar não passa de um Hitler em proporções menores! São todos farinha do mesmo saco!

— Está coberto de razão, eminência.

De facto, está.

— Salazar é um ditador fascista, um tirano e um assassino. Ainda assim, parece-nos ser a melhor opção no meio de tantas más. É o melhor no meio dos piores cenários. Além disso, não podemos esquecer que as relações entre a Santa Sé e Portugal têm melhorado substancialmente desde a assinatura da concordata entre os dois Estados. Neste momento, a ligação e o diálogo com Portugal estão num dos seus expoentes máximos, eminências.

A concordata entre a Santa Sé e Portugal, assinada pelo próprio Papa Pio XII e por Salazar em maio de 1940, veio pôr fim a uma relação tensa e pouco cordial entre os dois Estados soberanos. Com a implementação da primeira república portuguesa, em 1910, houve um consequente afastamento entre Estado e Igreja. Esta era fortemente associada à monarquia pelos novos dirigentes, que por isso impuseram a laicidade ao Estado português. Tal perda de influência não caiu bem para os lados do Vaticano e, desde então, a relação entre ambos os Estados foi tudo menos cordial. A concordata de 1940 veio acabar com essa antiga quezília e selar a paz entre ambos os lados.

Belmonte, virando-se agora para o camareiro pessoal de Pio XII, prossegue.

— Monsenhor Di Corneliano, tem consigo as cartas enviadas pelo Cardeal Cerejeira? Poderia fazer-me o favor de as resumir para todos?

— Claro que sim, vossa eminência. O Presidente Salazar enviou uma carta dirigida a sua santidade após o Cardeal Cerejeira se ter reunido com ele em Lisboa. Na carta assegura que providenciará todos os recursos de que a cúria possa precisar para a mudança e a instalação na cidade. Promete manter a neutralidade do país em relação ao atual conflito armado. Refere, ainda, que o povo português é profundamente católico e que tudo fará para bem receber sua santidade e suas eminências. Garante que está pronto para receber a cúria em Lisboa. Em suma, vossas eminências, o Presidente Salazar mantém o convite à Santa Sé e assegura cumprir todas as obrigações que se entenda serem necessárias.

Os cardeais ouvem com atenção Di Corneliano. Atendendo à importância da situação, não houve espaço para as habituais piadas. Não que ele dê importância ao título jocoso de cardeal-sobrinho, mas acha que o seu tio, embora o tente esconder, sofre bastante com tais insinuações. Em boa verdade, tanto tio como sobrinho sofrem mais por acharem que o outro se incomoda com os comentários do que sofrem com os comentários propriamente ditos.

— Pessoas como ele não têm escrúpulos e muito menos têm problemas em quebrar compromissos. Provavelmente, tudo o que ele quer é apanhar a cúria no país dele e, depois disso, vai tentar controlar-nos a todos e à Igreja. Como podemos ter a certeza de que ele cumprirá todas essas promessas?

Os presentes parecem reconhecer que o Cardeal Dalla Costa tem, de facto, um bom ponto e voltam-se para o cardeal-decano em busca de novas respostas.

— Não temos, eminência. Infelizmente, é impossível garantir que Salazar vá manter a sua palavra. Nem ele próprio saberá, diria eu. Ainda assim, vossas eminências, creio ter uma sugestão que pode ajudar-nos a reduzir as possibilidades de acontecerem aproveitamentos políticos e que amenizará a forma como o mundo vai ver esta nossa mudança.

Os olhos de Maglione cerram-se como os de uma ave de rapina pronta a atacar a sua presa. Esta tal sugestão é algo que ele desconhece, é algo para o qual não foi tido nem achado. Questiona-se se será somente uma ideia irrelevante de Belmonte ou se o cardeal-decano e o papa andaram a falar e a tomar decisões nas suas costas. Tal possibilidade, por mais mínima e insignificante que possa parecer, deixa-o a fervilhar de fúria.

— E que sugestão é essa, cardeal-decano?

— Bom, sugiro que a Santa Sé não se mude para Lisboa.

Pio XII estranha as falas de Belmonte. Apesar de o cardeal se ter mostrado uma pessoa de confiança e bom senso nos últimos dias, o papa admira-se por Belmonte estar a propor algo sem ter falado com ele primeiro. Ainda por cima tiveram oportunidade para isso, já que estiveram juntos e sozinhos na capela papal bem recentemente.

Fossati não se coíbe de criticar as falas ilógicas e sem sentido aparente do cardeal.

— Começo a achar que o pedófilo tem alguma razão no que diz. Vossa eminência está a brincar connosco? Então não acabou de dizer que foi decidido mudar-se a cúria para Portugal? Em que ficamos, afinal?

— Assim é, vossa eminência. Essa é a vontade do Santo Padre e tem todo o meu apoio. A minha sugestão é que não se escolha a cidade de Lisboa como destino.

— Não?! Então o que sugere, cardeal-decano? Explique-se de uma vez por todas!

— Fátima.