Temos uma produtora de queijo aprendeu a gostar do dito, uma mãe e um filho, ele ex-paraquedista, que produzem enchidos com urtigas, há ainda castas ancestrais que ganham vida pela mão de um produtor que é também empresário têxtil e cujos fios vestem o Benfica. Para rematar, sai um peixe do rio em conversa. Esta é uma viagem aos sabores do mundo rural, à boleia das histórias de quatro empresas familiares de Celorico da Beira, Fornos de Algodres, Belmonte e Castelo Branco.

O périplo arranca na Guarda, no Teatro Municipal, com algo que une estas quatro empresas: a apresentação do projeto CRECEER, que visa a cooperação transfronteiriça empresarial entre entidades nos setores agroalimentares e turismo. Seguiu-se o repouso no Colmeal Countryside Hotel, em terras de Pedro Álvares Cabral. Ao pequeno-almoço, o queijo foi o rei da mesa em Celorico da Beira. Já em Seia, deu-se a conhecer e provou-se o que Fornos de Algodres tem para oferecer. Atravessou-se depois a Serra da Estrela, desceu-se até Belmonte para provar vinho, dormiu-se no Fundão e desaguou-se em Castelo Branco, com peixe do rio à mesa — isto depois de abrir o apetite no Parque do Barrocal.

A queijeira que não gostava de queijo

À beira da estrada municipal M533, que atravessa Vide Entre Vinhas, aldeia de montanha pertencente à União das Freguesias de Cortiçô da Serra, uma queijaria artesanal coloca no mapa este pequeno povoado, de 165 pessoas, de acordo com os Censos 2011, que compõem o universo de 362 habitantes dispersos na junção municipal (INE, 2021).

Célia Silva apresenta-se: mudou de vida, deixou um emprego numa cooperativa, pegou no negócio de família que ameaçava findar e ergueu a Casa Agrícola dos Arais.

Casa Agrícola dos Arais
Casa Agrícola dos Arais créditos: Fotos Turismo do Centro / Pedro Cerqueira

A empresa agropecuária eleva-se no exato local onde o avô, que “chegou a ter 100 ovelhas”, se instalou como produtor de queijo. “Ou fechava ou agarrava e continuava”, explica, de forma sintética, o regresso às origens, aos 28 anos.

Apesar de viver, desde pequena, entre queijos, “não gostava” da iguaria, confidencia a engenheira zootécnica. “Não comia queijo, mas tive de começar a provar o nosso para controlo de qualidade”, deixa escapar numa envergonhada gargalhada.

Em plena natureza, uma pequena mostra de degustação, em cima de uma toalha branca com letras bordadas a deixar adivinhar a marca do queijo. Há pão, compota e vinho para acompanhar. Mas há um queijo destaca-se, concentra o cheiro pronto a explodir numa textura amanteigada milésimos de segundos após a primeira fissura.

O queijo e requeijão Serra da Estrela DOP (Denominação de Origem Protegida) são feitos com leite de ovelhas da raça bordaleira Serra da Estrela (raça autóctone) da própria exploração. “Temos 250 ovelhas” quantifica. Um número insuficiente para abastecer as necessidades de produção: “5 litros de leite dá um queijo de 1kg”, exemplifica.

A família está presente em cada canto. “Trato da parte animal, queijaria e papéis”, diz. “O meu pai é o braço direito na parte agrícola. A minha mãe faz a ordenha”, processo, hoje em dia, mecanizado. O avô vive na casa paredes-meias com todo o processo de produção. “Temos ainda quatro pessoas a tempo inteiro a colaborar”, acrescenta.

Entre uma prova de requeijão e as resistências de fazê-la acompanhar com um vinho (eram 10h30), há algo mais a apresentar no menu das intenções: pensam avançar para “compotas, queijo conservado em azeite (experiência), alecrim e bagas de pimento”, refere. “E experimentar malagueta”.

Degustação feita, é tempo de visitar a sala de fabrico do queijo Casa Agrícola de Arrais.  O tipo de pastagem “tem influência” e depois “cada queijaria faz o queijo à sua maneira”, sublinha Célia Silva, vestida de uniforme branco dos pés à cabeça. “Não sei se é mito isto das mãos frias, mas a temperatura da coalhada tem influência”, desvenda, enquanto se debruça sobre a pasta láctea enrolada num pano branco amassada numa superfície de alumínio que serve também de escorredor.

A câmara seguinte está a um passo de distância. Abre-se uma porta de meio palmo de espessura. Nestes pouco mais de 10 m2 é colocado “o cartão cidadão do queijo”, onde fica a refrigerar. “Um queijo amanteigado DOP demora um ano a ficar duro”, finaliza.

Não procurei comprovar. O que levei, nem dois dias durou na mesa.

Mãe e filho ex-paraquedista lançam urtigas aos enchidos

Paragem seguinte: Museu do Pão, em Seia. Fernanda Amaral Silva e o filho, João, teletransportam-nos para a história do Fumeiro d’Amaral, empresa de enchidos localizada em Fornes de Algores, onde têm duas lojas.

“Enquanto a minha mãe era viva, ajudava o meu marido na empresa de espaços verdes e ainda trabalhei num lar de idosos”, recorda Fernanda Silva. “O pai da minha mãe é que estava ligado a agricultura. A minha mãe e o meu marido tinham boas mãos para os enchidos”, prossegue nas memórias.

Fumeiro d’Amaral
Fumeiro d’Amaral créditos: Fotos Turismo do Centro / Pedro Cerqueira

O “bichinho” já estava lá, reconhece. A arte, por sua vez, “passa de geração em geração” e, talvez por isso, a lógica da continuidade imperou sem grandes hesitações nem medos. A figura materna era a matriarca. “Acho que fiquei com essa veia”, garante esta força da natureza multifacetada.

A decisão foi tomada em 2015: “Havia clientes, havia gosto, então decidi abri a porta a 21 março”, conta. “Morcela, farinheira, chouriça de carne picante e a urtigueira, que é uma criação minha (folha de urtiga e alheira)”, é o cardápio de produção feita com carne de fêmea.

A urtiga faz saltar uma interrogação cuja resposta, em parte, está na própria localidade de Fornos de Algodres, “Capital da Urtiga". A outra parte da resposta está na criação da Confraria da Urtiga, da qual Fernanda Silva faz parte. “Basta calçar galochas e as luvas” e esta planta nutritiva e selvagem — mais fácil de cozinhar do que apanhar — está pronta a conferir um formigar na boca quando embrulhada na alheira. “Ponha lá que a urtiga é um alimento”, desafia com um sorriso largo, à mesa do restaurante do Museu do Pão.

Fernanda divide os louros da empresa com o filho. “Eu e o meu filho fazemos tudo”, acentua. Depois de “quatro anos como paraquedista” e outros tantos como “assistente e chefe cabine na Ryanair”, em “Londres e Charleroi”, João Silva regressa a Portugal, no início de 2020. “Dos aviões aterrei nas chouriças”, verbaliza numa risada escondida.

“Aprendi a ver a mãe e a avó”, conta. A seu cargo está a gestão da parte comercial. A mulher ajuda na faturação e o pai ajuda na secagem. “Lenhas específicas. Se ponho só eucalipto fica a cheirar...”. A frase fica a meio. “Se não meter dentro da tripa produto de qualidade não é o fumo que lhe vai dar”, interrompe Fernanda Silva. Fala quem sabe.

Por fim, atira para a mesa uma confissão: “Não quero ir para os supermercados”, diz, “mas estamos a ter procura alta para a produção”, assume. A sua maior preocupação é preservar as raízes familiares. E há falta de planos para um qualquer fim de semana de verão, deixa a nota: “fazemos aos fins de semana workshops, como o domingo das filhoses”.

Dos fios da malha do Benfica à recuperação de castas autóctones

A digestão é serpenteada estrada de montanha acima (pela N339) até à Torre e Penhas Douradas e, depois, serra a abaixo pela Covilhã. Destino: Belmonte.

O pôr-do-sol que as nuvens destapam por fim e a temperatura amena convidam a uma prova de vinhos em Carvalhal Formoso. A Quinta dos Termos, encaixada num vale entre a Serra da Estrela e da Malcata, é um espaço arejado, com um microclima onde as chuvas não são abundantes.

As vinhas nascem em solos graníticos e a exposição solar desliza sobre as castas em declive, provocando diferenças de temperatura no terreno onde se vislumbram testemunhos da passagem romana entre Bracara Augusta e Mérida. “Três zonas de Touriga Nacional a pouca distância tem comportamentos diferentes”, diz João Carvalho, produtor. “O terroir não é uma treta”, assegura o também empresário têxtil que se rendeu à viticultura, sem deixar todavia os fios de lã que compõem os fatos que vestem o Benfica e voam com as fardas da Qatar Airlines.

Quinta dos Termos
Quinta dos Termos créditos: Fotos Turismo do Centro / Pedro Cerqueira

Desde 1993 que tem vindo a recuperar e ampliar a propriedade dos seus antepassados. Renova vinhas centenárias e desenvolve outras de pouca idade. “A vinha veio dos meus pais. Faziam 70 mil litros de vinho. Hoje fazemos 10 vezes mais”, garante o proprietário, que diz ter “entre 200 a 400 mil garrafas” a pousar na adega.

Começou com oito hectares. Aos 65 da Quinta dos Termos, soma mais 30 em Castelo Branco, na Herdade do Lousial, investimento datado de 2015. Em ambas, as idades das parcelas variam desde plantações recentes e vinhas quase centenárias.

Um desvio de atenções leva-nos até ao campo albicastrense, na transição das montanhas (serra da Gardunha) para a planície (à porta do Alentejo). Ali foram instalados os únicos campos de investigação dedicados à recuperação e valorização das castas regionais Callum e Rufete, em parceria com a PORVID, informa a empresa.

A aposta em castas autóctones toldou de início o pensamento do empresário dividido entre feiras de moda e as provas de vinho. Em 1993, “chateie toda a gente sobre que castas deveria por aqui. Não sabiam, comecei com experimentação”, relembra. “Encontrei em vinhas velhas a casta Fonte Cal. Nunca tinha ouvido falar”, reconhece. “A vinha começa em 1997 com as castas habituais da Beira”, continua.

Mas nem só de castas ancestrais, Síria, Marufo e Rufete, vive o vinho. Escorrem as nacionais Touriga Nacional, Tinta Roriz, Baga, Tinto Cão e as “estrangeiras”, Syrah, Sangiovese, Nebbiolo e Riesling, entre outras. A produção é certificada em Produção Integrada, contribuindo para a preservação da sustentabilidade.

“Temos um portfólio de trinta e tal castas. Temos parcerias com a universidade para experimentar”, assegura João Carvalho, um apaixonado pela videira local. Talvez por isso tenha chamado “Pecado” ao néctar topo de gama, um monocasta (Sangiovese).

Finda a visita à adega, a prova. João Carvalho diz ser avesso as metáforas: “ O vinho sabe a chão de floresta”, abre a boca de espanto antes de fazer a prova dos rótulos produzidos. Bebemos. Não mais do que alguns goles, porque era tempo de nos fazermos à estrada quase em linha reta, até ao Fundão onde viríamos a recuperar forças no Convento do Seixo, Boutique Hotel & Spa.

Um peixe do rio que vai para a lata

O Parque do Barrocal, em Castelo Branco, um maciço granítico de 300 milhões de anos disperso em 40 hectares (11 dos quais visitáveis) está a meia hora de distância.

A caminhada entre pedras e miradouros abre o apetite para uma experiência gastronómica: Peixe do rio em conserva.

A história remonta a 2007, em Janeiro de Cima, uma Aldeia de Xisto com o Zêzere a seus pés. O chef Leonel Barata, de 43 anos, nasceu em solo francês, mas nunca a aldeia da família lhe saiu do sangue. Abriu o “Fiado”, com uma carta gastronómica do Pinhal Interior, na qual constatou "hábitos de consumo vincados de peixe do rio (produtos autóctones)". Um hotel, Santa Margarida, em Oleiros e o Restaurante, “O Cais”, em Vila Velha Rodão, foram outros dos projetos que abraçou.

Enumera peixes que nascem no rio: “o barbo, as bogas, o achigã, lúcio perca, carpa, a lampreia e o sável, cujas migrações foram alteradas pelas barragens e por espécies invasoras, como o lagostim”. “Nos últimos 10 anos, pesquisei peixes do rio, participei em festivais, fui a restaurantes, de Mértola a Torre de Moncorvo, e vi um consumo maior do que julgava. Só não está registado na balança comercial, não vai à lota. Somos um país com frota marítima e peixe rio passa ao lado”, esclarece.

Assim sendo, Leonel Barata quer por o peixe do rio à mesa. Tentou fazer um levantamento do receituário e das formas ancestrais de tratar o peixe, receitas antigas, frito, cozido, grelhado ou assado. “O que existe está espalhado por vários livros”, conta.

Bem Amanhado
Bem Amanhado créditos: Fotos Turismo do Centro / Pedro Cerqueira

Partilha uma receita de Janeiro de Cima: escabeche de lúcio-perca: “é frito em azeite virgem extra, toque de cebola e alho, pimento vermelho, colorau e vinagre (conserva o peixe)”, descreve. Não resiste à tentação e desvenda mais outra: caldeta de barbo. “É inspirado no Alandroal, na Juromenha. O consumo das populações das zonas ribeirinhas, a componente social à volta dos Moinhos, esperavam cinco horas para moer a farinha, apanhavam o peixe autóctone e com o que a natureza oferecia, ervas, hortelã da ribeira ou poejo, o nome muda de zona para zona, cozem em panela de ferro e ao lume das brasas, depois acrescenta-se alho, cebola e pão de três dias”, descreve.

Da pesquisa nasceu o projeto: conservas Bem Amanhado. O produto começou por ser embalado “em frasco de vidro” para dar resposta a uma “capacidade de produção de proximidade”, informa. “Agora, temos a hipótese de colocar em lata”, divulga. “Não é produto para comércio de escala e não concorre com atum”, garante. “A conserva é uma forma primária de levar o consumo às pessoas que não vivem no leito de rios”, explica.

Volta atrás para falar de sustentabilidade. “A pesca é feita entre outubro e maio, altura em que o peixe tem mais sabor, as águas são frias e correntes”, atesta. “Trabalhamos com espécies invasoras, promovemos o equilíbrio do ecossistema”, um equilíbrio no qual entra o “respeito e o espaço dado à pesca desportiva”, acentua Leonel Barata.

Para quem ainda tem dúvidas sobre o peixe do rio, deixa uma nota. “A nível nutricional é interessante. Selvagem, magro, tem ácidos gordos, ómega 3 e 5”, revela. “Agora é dar o passo seguinte: se temos o melhor peixe do mundo e as melhores conservas, porque não termos o melhor peixe do rio do mundo em conserva?”, remata.
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*O SAPO24 viajou a convite do Turismo do Centro de Portugal