PRÓLOGO
JUNHO–SETEMBRO DE 1963
Colónia Penal Disciplinar VorkutLag 51, República Socialista Soviética Autónoma de Komi, URSS, junho de 1963
No crepúsculo pálido da noite estival do Ártico, três homens corriam a toda a velocidade no meio de um mar de arbustos e ervas até ao joelho. Muito atrás deles, o aglomerado de edifícios prisionais, cercado de arame farpado, parecia uma ilha iluminada no meio da penumbra. Um foguete de sinalização subiu como uma flecha e desceu lentamente, lançando sombras na meia-luz.
Numa torre de vigia, o comandante da colónia penal apontou os binóculos às figuras dos fugitivos, ignorando as nuvens de mosquitos que o rodeavam. A seu lado, o subcomandante protegeu os olhos do clarão do foguete e olhou para os três homens.
— Uma troika. Clássico. — A voz do corpulento oficial arranhava como pregos ferrugentos num balde. — Dois velhos e um garoto. A vaca.
O comandante baixou os binóculos e olhou para o seu número dois com desagrado.
— A vaca, major Chemizov?
— Se nos próximos dois dias não encontrarem comida, esmagam a cabeça do miúdo e comem-no. É a vaca.
— E onde iriam eles encontrar comida na tundra?
Chemizov encolheu os ombros.
— Talvez encontrem alguns pastores indígenas. Cortam-lhes a garganta e roubam-lhes a comida. Foi o que aconteceu há dois anos. — E conseguiram fugir?
— Fugir? As famílias dos pastores apanharam-nos, despiram-nos, ataram-lhes os braços e as pernas e deixaram-nos na tundra. Os mosquitos e os corvos comeram-nos vivos. — Chemizov olhou para as figuras indistintas dos fugitivos enquanto estas brilhavam e se arras- tavam para o crepúsculo. — Alcance seiscentos... setecentos metros, camarada coronel. Daqui a um minuto, perdemo-los nos arbustos.
O comandante virou-se com um ar aborrecido para um jovem soldado que tinha mantido a espingarda de precisão apontada aos fugitivos enquanto os seus superiores hierárquicos falavam.
— Muito bem —, disse o coronel Aleksandr Vasin. — Disparem à vontade.
2
Leninegrado, URSS, setembro de 1963
O candeeiro iluminava o toucador coberto de apontamentos escrevinhados. Andrei Fyodorov apagou o cigarro na tampa aberta da lata de pó-de-arroz e acendeu outro. Inalou profundamente, inclinou-se para a frente e examinou o seu reflexo no vidro gorduroso da janela.
Credo, pensou ele. Estás com um aspeto de merda. Mesmo para um morto.
Atrás dele, uma chave entrou numa fechadura. Fyodorov, surpreendido, pôs rapidamente os papéis num monte e virou-os ao contrário, espalhando cinzas e atirando o pó-de-arroz pelo chão.
— Quem é?
— Andrei? És tu?
Fyodorov pegou na cadeira, atravessou a sala e prendeu-a por baixo da maçaneta, abrindo ligeiramente a porta. No corredor bem iluminado, estava uma mulher alta, esguia e com olhos cinzentos. Ksenia.
Fyodorov afastou a cadeira com um pontapé, abriu a porta, puxou a mulher para dentro e fechou a porta à chave. Ksenia ia ligar o interruptor, mas ele agarrou-lhe o pulso. Ela olhou durante um bom bocado para o rosto macilento de Fyodorov, e depois libertou a mão e abraçou-o.
— Meu Deus, Andrei! O que estás aqui a fazer? Como...
Fyodorov silenciou-a com um beijo demorado e depois afastou-a suavemente.
— Seguiram-te?
Ela abanou a cabeça, mas continuou a olhar intensamente para ele.
— O que é que aconteceu? Era suposto estares na América.
— Não te posso dizer.
— Disseste que ias estar fora uns meses. Mas só passaram três semanas.
— Recebi ordens novas. Ordens que não consegui cumprir.
— O que queres dizer com isso? O que é que eles queriam que fizesses?
— Basta saberes que... não consegui.
— Não conseguiste ou não quiseste?
Fyodorov respondeu com um leve sorriso.
Ksenia recuou dois passos e sentou-se na cama coberta de roupas. Os seus olhos cintilaram à luz do candeeiro. — Recusaste cumprir ordens. Do KGB.
— Sim.
— Quanto tempo é que temos?
— Não sei, Ksenia. Mas preciso que escondas alguns documentos. Eu digo-te onde. Não os leias. Promete-me. Não os podes ler.
— Estás em perigo. — Ksenia falou numa voz cavernosa e seca. O seu olhar pálido foi como uma borrifadela de água fria. Fyodorov virou-se para a janela e passou lentamente as mãos pelo cabelo.
— Correto. Vou desaparecer durante algum tempo. Mas tenho um plano.
Ksenia levantou-se silenciosamente e abraçou Fyodorov por trás, encostando o rosto às suas costas. Da rua irrompiam os sons do trânsito. Algures no corredor, ouviu-se uma cacofonia de música marcial quando um dos vizinhos de Ksenia ligou o rádio.
— Andrei... vão matar-te?
— Vão tentar.
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