Walter Salles, que vem “de um país onde é muito mais fácil fazer documentário do que ficção”, esteve hoje à tarde à conversa com o público, no cinema Nimas, em Lisboa, depois da exibição de uma cópia restaurada de “Central do Brasil”, filme que lhe valeu um Urso de Ouro no festival de cinema de Berlim, em 1998, e um urso de prata à protagonista, a atriz Fernanda Montenegro.
“Para quem acompanha a realidade brasileira, não há país que mude tanto em dois dias e tão pouco em dois anos, quanto o nosso. O que faz com que a todo o momento se sinta que existe um tema ali que tem que ser coberto. Agora, por exemplo, tenho uma série de coisas que gostaria de fazer”, partilhou.
Em “Central do Brasil”, uma criança parte em busca do pai, acompanhado por uma ‘escrevedora de cartas’ que conheceu no Rio de Janeiro, na estação de comboios que dá nome ao filme.
“Por detrás da busca de Josué por um pai, havia uma busca por um país”, afirmou o realizador, lembrando que o filme surgiu depois de 30 anos de ditadura militar, “mais três e pouco do Collor [em referência ao antigo presidente brasileiro Fernando Collor de Melo, destituído por acusações de corrupção], mais o tempo necessário para sair daquilo [referindo-se ao estado em que o país ficou]”.
Além disso, afirmou, “é um filme sobre orfandade brasileira e essa orfandade ainda permanece muito viva, clara, reafirmada a cada dia, assim como a ausência do pai permanece também reafirmada”.
Referindo que essa orfandade “vem desde o início do colonialismo”, Walter Salles considerou que o resultado das eleições presidenciais de outubro — nas quais o vencedor foi o ultraconservador Jair Bolsonaro — “também é a busca de um pai salvacionista”. “Tal como tivemos com Collor e com Getúlio [Vargas]”, defendeu.
Questionado sobre o que une o povo brasileiro, o realizador respondeu: “Aquilo que nos une é o que jamais atingimos, a ideia que somos o país do futuro”.
“Isso é o que de alguma forma formou a argamassa que justificou tantas coisas. Somos o país do futuro e somos jamais o país do futuro. Somos o país de um futuro constantemente postergado. A cada eleição aparece a possibilidade desse futuro se concretizar e sou cada vez mais cético em relação a isso”, referiu.
Assumindo que hoje foi apanhado “num momento de muita desesperança”, Walter Salles partilhou que pensou “retomar a ideia de ‘Central do Brasil’ quando aconteceu esse terramoto recente e repensar sobre esses personagens”.
“Já acordei várias noites a tentar pensar para onde iriam”, contou.
Admitindo que hoje foi apanhado pelo público “num momento de muita desesperança”, o realizador referiu não saber “o que vem pela frente”.
“É um momento ainda difícil de falar. Estamos frente a um tipo — até tenho dificuldade de adjetivar isso — um tipo de oponente muito pouco definido e muito pouco estruturado, arquitetado. O Brasil pode ir para direções muito diferentes nos meses que aí vêm”, disse.
Walter Salles sente que está “num momento quando se é apanhado numa tempestade dentro de um barco e é preciso descer a vela e deixar passar os primeiros momentos”.
“Divido com vocês a minha dúvida em relação ao que vai acontecer. Não saberia para onde essas cartas [em referência às cartas escritas pela ‘escrevedora’ no filme] iriam hoje. Queria estar mais otimista, desculpem”, afirmou.
Walter Salles considerou ainda que o atual governo brasileiro “alinha-se cada vez menos com Trump [o presidente dos Estados Unidos] e cada vez mais o Tea Party [ala ultraconservadora da direita norte-americana] e cada vez mais com as Filipinas de Duterte [Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas] e cada vez menos com um governo de direita tradicional”.
“Como reagir a isso não sei dizer ainda”, reiterou, sublinhando que este é um momento “para estar atento e filmar, gravar”.
“Houve reações extraordinárias durante estes meses. Um poema do Arnaldo Antunes [músico brasileiro] foi das coisas mais geniais da cultura brasileira nos últimos tempos. A cultura brasileira mostrou-se viva nesse momento. Espero que de um lado a cultura se mantenha viva e que, do outro, as instituições consigam funcionar como contrapeso ao que se aproxima”, defendeu.
A dada altura da conversa, Walter Salles partilhou que tem “uma fé, talvez um pouco cega, no cinema, na necessidade do cinema”. “De conseguir pensar em formas de desvendamento do mundo, do cinema como forma de desvendar o que ainda não se viu, como instrumento de conhecimento, mas também de entretenimento ou o que for”, disse.
Walter Salles é um dos homenageados da 12.ª edição do LEFFEST (Lisbon & Sintra Film Festival), que decorre até 25 de novembro em vários locais de Sintra e Lisboa.
Comentários