"Mijam uns nos outros e assim, quando crescem. Se não os tiver em dez gaiolas diferentes, põem-se à bulha. Depois, os machos castram outros machos. A sério. Arrancam os tintins dos outros à dentada. É sangue por todo o lado, uma confusão". Estas palavras, ouvidas em "Roger e Eu", documentário de estreia de Michael Moore, não são apenas o tipo de observação colorida que tornar-se-ia parte integral do tipo de obras do polémico cineasta.
A descrição deste nível de violência grotesca foi feita em 1989 por Rhonda Britton, uma vendedora de coelhos em Flint, Michigan. Esta é só mais uma das milhentas cidades atiradas para o inferno pós-industrial de pobreza e destituição quando as grandes empresas começaram a fechar as suas fábricas e o "Steel Belt" — outrora pujante centro produtivo dos Estados Unidos da América — enferrujou no "Rust Belt".
O facto de tal citação ser a primeira coisa que se lê em "O contrário de nada", de Tess Gunty, surgindo como epígrafe, é como um aviso para as 400 páginas que se seguem. É que o título em inglês — "The Rabbit Hutch" — traduz-se para "A Coelheira", e não é mais do que o complexo habitacional onde as personagens desta história habitam, como os já mencionados coelhos enjaulados de Rhonda Britton. E que, tal como o que acontece com os diminutos mamíferos, as pessoas também podem tender para comportamentos extremos quando encurraladas.
"A pressão da mundanidade, a pressão da falta de beleza, a falta de oportunidades, a falta de imaginação num lugar assim acaba por produzir experiências extremas. As pessoas procuram uma fuga de uma forma ou de outra", conta Gunty ao SAPO24. Em "O contrário de nada", Tess Gunty — que esteve em Portugal a convite da Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento para uma sessão "Meet the Author" — pinta um fresco dessa pequena cidade americana deixada para trás pelas empresas e às portas da gentrificação benevolente dos altruístas efetivos. Um local que, apesar de ficcional nestas páginas, existe um pouco por todo o Midwest de onde a autora norte-americana é natural. Se a General Motors tirou o tapete debaixo dos pés de Flint e outras cidades do Michigan, a Studebaker Automobiles fez o mesmo a South Bend, cidade natal da escritora de 31 anos.
Sentada num cadeirão na sala da FLAD onde decorreu esta conversa, Tess Gunty demonstra uma atitude descontraída, sem artifícios nem pose exagerada — algo que poderia ser o caso quando se venceu o prestigiado National Book Award com apenas 29 anos e numa obra de estreia. A conquista "foi tão enorme que é difícil de compreender", diz, afirmando de seguida entre risos que ao menos trouxe "alguns benefícios práticos de imediato", como conseguir uma extensão de tempo para o seu próximo romance, "Honeydew".
Mas é em "O contrário de nada" que a entrevista se centra, livro que segue várias personagens nesta cidade "purgatório", a mais intrigante das quais Blandine Watkins, uma jovem vive obcecada com cristãs místicas da Europa medieval, saída do complexo de institucionalização onde tantas outras crianças e adolescentes entorpecem. Este é apenas um dos temas duros — políticos, dir-se-á — em que o romance toca, apesar de Gunty afirmar nunca escrever "com qualquer tipo de esboço ou agenda ou mesmo com um conjunto de ideias ou temas".
Mais á frente, Gunty admitirá que, apesar de não ser movida por um programa ou um conjunto de intenções, a sua escrita gira à volta de estruturas de poder — fruto, talvez, de ter um pai sociólogo. "Penso que um romance é uma espécie de laboratório para experiências sociais e, sempre que se faz exercícios com dinâmicas assim, é-se inevitavelmente levado para questões de poder a nível macro e micro", afirma. Ao mesmo tempo, declara que "há muitas, muitas decisões eticamente complexas que um romancista toma" — que personagens escolhe e o que lhes faz é só a ponta do icebergue.
Olhando para o seu país, a escritora assume a preocupação com que encara a radicalização política, em particular à direita e à forma como esta se tem multiplicado em tentativas de banir livros e controlar currículos escolares. No entanto, afirma que isso não só é prova da força da literatura, como até tem tido o efeito oposto. "Acho que, estranhamente, as proibições de livros tornaram a literatura mais apelativa para certos jovens. Do estilo, agora que é proibida, é fixe, é interessante, é um pouco ilícita. Não acho que isto seja uma coisa boa, de todo, mas o que fica claro é que não teriam medo da literatura se ela não fosse tão poderosa".
Vacca Vale, a cidade fictícia onde se desenrola a maior parte da história, parece ser uma representação do declínio das cidades da região conhecida como “Rust Belt”. “O contrário de nada” passa-se no Indiana, um estado cujo lema é “Crossroads of America” [“Encruzilhada da América”]. Não o leio apenas num sentido geográfico, mas também existencial: esta zona parece ter tanto a ver com o passado como com o presente e o futuro dos Estados Unidos, como que uma espécie de laboratório para o país. Considera que esta é uma avaliação correcta?
Penso que sim. Quero dizer, a América é tão vasta que seria irresponsável afirmar que qualquer estado é representativo do todo, mas penso que o Indiana sempre conteve todos os extremos da América. Por exemplo, durante a Guerra Civil, era tecnicamente um estado da União e, por isso, Abraham Lincoln, na altura, penso que enviou para lá alguns exércitos que estavam a lutar pelo Norte. Mas se a parte norte do Indiana tinha uma cultura mais “nortenha”, a parte sul tinha uma cultura muito mais “sulista”. Por isso, algumas das leis mais racistas [dos EUA] surgiram no Indiana, penso que em resposta ao facto de haver este choque extremo de ideologias. E, de facto, nos anos 20, foi o epicentro do ressurgimento do Ku Klux Klan. Há um livro fantástico sobre isso que estou a ler neste momento, chamado “A Fever in the Heartland”.
Hoje, tecnicamente, é um "swing state", embora agora pareça estar a caminhar para tornar-se um estado permanentemente vermelho. Demos a conhecer Pence [Mike Pence, ex-Vice-Presidente dos EUA], mas também votámos em Obama. E há outro político chamado Pete Buttigieg, que se candidatou à presidência, é democrata e, na verdade, é o presidente da câmara da minha cidade natal. Por isso, só no meu condado, há provavelmente uma divisão ao meio em termos de tendências políticas. Mas sim, se por um lado acho que não é possível resumir a América, por outro penso que quase todas as suas contradições, os seus problemas, os seus confrontos ideológicos, são muito visíveis no Indiana, de uma forma que talvez esteja mais escondida noutros locais.
"Nunca se está totalmente vacinado contra o snobismo, mas estou grata por ter sido criada num contexto que me expôs a um enorme espectro de privilégios e rendimentos."
Há uma frase no livro que parece resumir isso, quando uma das personagens visita Vacca Vale: “A fé, a raiva e a geometria. Tudo autoestradas e Deus. Moses só entende a política contemporânea quando está no Midwest”.
Eu estava a viver em Nova Iorque quando Trump foi eleito e reparei que muitos dos meus amigos que nunca tinham saído das cidades costeiras da América pensavam que era impossível ele ser eleito, ao passo que todos os meus amigos que tinham vivido no Sul ou no Midwest ou noutros locais mais rurais da América estavam convencidos de que ele ia ganhar. Por isso, penso que se pode viver uma vida muito, muito diferente numa grande cidade que não tem nada em comum com a forma como a maioria dos americanos provavelmente vive. E acontece o mesmo em todos os países. As grandes cidades não são representativas do todo.
Mas a América é como se fosse um continente em si mesmo, certo? Portanto, esse tipo de dualidade ocorre numa escala maior.
Exatamente. E acho que outra coisa que me surpreendeu foi — esta conversa está a ficar muito politizada, mas não me importo de ir por aí, se também não te importares — o facto de nas fontes noticiosas de extrema-direita se ouvir falar muitas vezes da “elite liberal”. Eu não achava que isso fosse real, mas depois, quando me mudei para Nova Iorque, descobri que havia uma espécie de snobismo resguardado entre as pessoas com quem eu concordava politicamente, mas que nunca tinham sido expostas à maior parte das condições quotidianas da América. Por isso, notei um pouco desse snobismo, de condescendência, um pouco de, na verdade, mera ignorância por parte dos liberais ricos das zonas costeiras. Portanto, isso existe.
Mas a Tess foi um pouco vacinada contra isso, certo? Porque se por um lado vem de uma família criativa e liberal de classe média, também esteve exposta à pobreza e a comunidades, digamos, "mais marginais" na sua cidade natal.
Sim, acho que isso é verdade. Nunca se está totalmente vacinado contra o snobismo, mas estou grata por ter sido criada num contexto que me expôs a um enorme espectro de privilégios e rendimentos. No meu bairro, a maior parte das pessoas vivia abaixo do limiar da pobreza, e nós andávamos em escolas católicas privadas de graça, porque a minha mãe trabalhava numa delas. A maior parte dos meus amigos vivia nos subúrbios, em condomínios fechados, em realidades completamente diferentes. E eu não sentia que pertencesse a nenhuma dessas realidades, portanto talvez isso me tenha tornado numa observadora deste tipo de disparidade de recursos na qual talvez não tivesse reparado se só tivesse estado perto de pessoas como “eu”.
O público não-americano já se habituou às representações da Costa Leste e da Costa Oeste, mesmo do Sul dos EUA, mas não tanto do Midwest [Meio-oeste], o coração dos Estados Unidos. Essa é a região de onde vem e onde se situa a história de “O contrário de nada”. Que comentário lhe ocorre sobre isso?
Bem, desde logo diria que isso também vale para o público americano, há muito pouca ficção. Não é que não exista, mas penso que o Midwest americano, sendo o lar de milhões de pessoas, está muito sub-representado no imaginário americano, e certamente no imaginário internacional. Mas eu diria que provavelmente tem os seus equivalentes em muitos países do mundo. É uma região que foi colonizada ligeiramente mais tarde do que o resto da América, o que afetou um pouco a cultura, penso eu. Por exemplo, o Indiana, de onde sou, era maioritariamente uma zona de floresta e foi habitado por povos indígenas até, basicamente, meados do século XVIII. Penso que essa é uma das razões pelas quais o Midwest americano se tornou um centro industrial, está inserido nessa região chamada “Rust Belt”, que é conhecida sobretudo pela produção automóvel, mas também por todo o tipo de produção industrial. Na minha cidade havia uma empresa chamada Studebaker Automobiles e, no seu apogeu, era a maior fábrica de automóveis da América. Funcionou durante cerca de 100 anos, proporcionou uma grande prosperidade económica à cidade, atraiu muita gente do Sul depois da Guerra Civil — porque quem fosse uma pessoa recém-emancipada [da escravatura], podia ganhar três vezes mais numa fábrica do que numa quinta. Por isso, sim, atraiu muita gente, mas depois fechou abruptamente na década de 1960, e muita gente da região ficou como que economicamente órfã a partir dessa altura.
"embora eu ache que é verdade que a tese de um romance não tem nada em comum com a de um ensaio ou de um debate num jantar ou até de um tweet, há muitas, muitas decisões eticamente complexas que um romancista toma. Quer se tenha ou não consciência delas, quer sejam ou não intencionais quando se começa, todas elas têm um peso ético"
Li que, apesar de a história do romance se centrar em diferentes personagens — em Blandine, em particular —, disse que sente que Vacca Vale é, de certa forma, a principal protagonista. Pode explicar porquê?
Bem, acho que uma forma de o explicar é fazendo referência a outros romances polifónicos que adoro. Há tantos e quase todos têm uma coisa em comum, que é o facto do seu tipo de protagonista, a força unificadora, raramente ser uma pessoa. Por vezes, é uma ideia — por exemplo, penso que em “A Piada Infinita”, de David Foster Wallace, podemos argumentar que a personagem principal é a solidão, em “A Visita do Brutamontes”, de Jennifer Egan, podemos argumentar que a personagem principal é o tempo — porque sei também que ela disse que escreveu esse livro quando estava a ler Proust e estava a pensar no tempo enquanto uma personagem. E depois há um livro chamado “A Grande Casa”, de Nicole Krauss, que segue uma secretária ao longo do tempo, pelo que o tema que une todas estas personagens que vivem em países diferentes é esta secretária. Mas o protagonista mais comum dos romances estruturados em torno de muitas histórias e vozes é normalmente um lugar, como “Middlemarch”, de George Eliot, “Ulisses”, de James Joyce e “W”, de Zadie Smith. Uma coisa que ouço repetidamente é uma peça de rádio de Dylan Thomas chamada “Sob o Bosque de Leite”, que fala de uma cidade portuária ao longo de um dia. Por isso, acho que quando afirmo que a personagem principal é uma ideia ou uma pessoa ou um objeto ou um lugar, o que quero dizer é que eu queria dar mais peso sobretudo a esta atmosfera, a esta coordenada particular. É óbvio que Blandine é a espécie de força gravitacional do livro, mas penso em todas as personagens como tendo a mesma importância na história.
Este é um romance que carrega muitas ideias. É político sem ser partidário, aborda questões sociais sem ser didático e é filosófico sem se tornar moroso. Quando é que decidiu que o livro ia acabar por ser assim?
Quase nunca escrevo com qualquer tipo de esboço ou agenda ou mesmo com um conjunto de ideias ou temas. Quero dizer, é um processo muito intuitivo. É muito mais parecido com sonhar do que com escrever um ensaio ou qualquer outro tipo de ato criativo. Por isso, quando estou a redigir o primeiro rascunho, tento confiar numa lógica subconsciente. Acho que é algo muito mais interessante e honesto e é muito mais capaz de conter verdades contraditórias. E depois, à medida que escrevemos, confiamos que esse tipo de lógica, respeitante àquilo que mais nos interessa, virá à superfície. Penso que se tornou um pouco impopular para os romancistas insistir que os seus romances são politicamente neutros ou que não contém argumentos morais. E embora eu ache que é verdade que a tese de um romance não tem nada em comum com a de um ensaio ou de um debate num jantar ou até de um tweet, há muitas, muitas decisões eticamente complexas que um romancista toma. Quer se tenha ou não consciência delas, quer sejam ou não intencionais quando se começa, todas elas têm um peso ético, sabes? Quem é que escolhemos para dedicar este tipo de atenção alquímica, quem é que escolhemos para vivificar e guiar a atenção do leitor? Essa é uma decisão muito delicada. Por isso, para mim, todas as coisas pelas quais esteja obcecada na altura, todas as coisas que me interessem, vêm naturalmente à superfície. E depois, no final, quando tenho um rascunho, a tarefa é quase como que ouvi-lo, refiná-lo, tentar fazê-lo parecer intencional — mas não conseguiria fazer isso se não confiasse nos meus instintos no primeiro rascunho.
"acho que me senti realmente voltada para a criação deste tipo de experiência transcendente, para criar uma experiência transcendente sobrenatural num lugar que é quase opressivamente mundano. Porque, na verdade, acho que é a pressão da mundanidade, a pressão da falta de beleza, a falta de oportunidades, a falta de imaginação num lugar assim que acaba por produzir experiências extremas."
Mencionou como a história quase que vai aparecendo como se fosse um sonho. Não é que seja escrita como uma espécie de fluxo de consciência, mas é interessante que tenha dito isso porque sinto que, por vezes, “O contrário de nada” tem quase o cariz de uma fábula. Embora haja alguns aspectos que são realmente palpáveis, que estão enraizados no realismo e no que sabemos sobre as condições sociais e tudo o mais da realidade, há quase um ambiente surreal. Como é que isso se proporcionou?
Fico contente por ouvir isso, porque esse é o ambiente que me atrai. Queria evocar um sítio que fosse quase mítico, folclórico, instável e ligeiramente irreal. Queria sentir que podia, a qualquer momento, entrar num reino diferente. É isso que me atrai sempre, nos livros e até nos filmes que vejo. Sinto-me atraída por obras que existem numa espécie de baldio subdesenvolvido da realidade, onde há elementos reconhecíveis, que talvez pudessem ocorrer, mas não ocorrem. E, quando estava a conjurar este lugar, uma das razões pelas quais queria que fosse um lugar fictício em vez de uma cidade real é que queria ter a liberdade de criar um tipo de energias míticas, contraditórias e improváveis. Uma certa instabilidade.
E, sendo fictício, é um lugar que podemos moldar como acharmos melhor.
E isso ensina-nos. Uma das coisas que adoro na escrita é que, enquanto escrevemos — se a coisa estiver a correr bem, pelo menos —, mesmo uma linha que nos ocorre num momento e que pensemos ser um pormenor descartável, pode levar-nos numa direção que talvez determine o resto do livro. Dizemos algo sobre um vizinho que segura um objeto no fundo de uma cena de uma fotografia e, de repente, é esse o nosso romance. Por isso, sim, estar aberta a esse tipo de descoberta é realmente crucial para o meu processo de escrita.
Apesar de ter dito em entrevistas anteriores que há alguns pequenos aspectos da sua vida que podem ser lidos no romance — a educação católica, por exemplo —, este não é, de todo, um livro autobiográfico. Ao mesmo tempo, sendo natural de uma cidade do Midwest, esta é uma história que também deve tocá-la de perto. Trata-se de uma daquelas situações do género “escreve o que sabes”?
Frequentei um curso de escrita e senti, quando ouvi esse conselho, que me estavam a dizer para escrever sobre mim e nem sempre é esse o caso. Acho que a minha escrita ganhou outra vida quando comecei a escrever sobre um contexto que me era muito familiar, ainda que estivesse a tentar concentrar as minhas energias noutras pessoas e noutros tipos de enredos. Por isso, talvez ter algum elemento que nos seja familiar seja crucial, porque mesmo quando estás a criar uma personagem, tem de haver algo nela que compreendas e que possas imaginar, do tipo “como é que ela sente raiva ou tristeza?” Ou seja, é importante ter algo que seja realmente familiar, mas não tem necessariamente de ser uma semelhança superficial; pode ser um tipo de familiaridade mais profunda e indireta.
"Penso que um romance é uma espécie de laboratório para experiências sociais e, sempre que se faz exercícios com dinâmicas assim, é-se inevitavelmente levado para questões de poder a nível macro e micro."
O início de “O contrário de nada” é tão surpreendente quanto desorientador. Contém uma explosão de ação que contrasta com o tipo de mal-estar passivo que aflige a maioria das suas personagens, que querem acordar do seu torpor. Acha que nós, enquanto sociedade, somos todos sonâmbulos, à espera desse mesmo sobressalto?
Hmm, excelente pergunta.... Sim, acho que me senti realmente voltada para a criação deste tipo de experiência transcendente, para criar uma experiência transcendente sobrenatural num lugar que é quase opressivamente mundano. Porque, na verdade, acho que é a pressão da mundanidade, a pressão da falta de beleza, a falta de oportunidades, a falta de imaginação num lugar assim que acaba por produzir experiências extremas. As pessoas procuram uma fuga de uma forma ou de outra, quer seja induzida por drogas ou por uma experiência espiritual, quer se juntem a um culto ou se apaixonem. Penso que quando o nosso contexto é tão opressivo ou simplesmente tão pouco estimulante, procuramos uma fuga noutro lugar.
Estive a ler um livro sobre sete esforços utópicos que ocorreram entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e segue estes projetos que tiveram lugar em todo o mundo, a maior parte deles em pequena escala. Num deles, o líder de uma comuna fazia estas coisas… Não me lembro bem da palavra usada para descrevê-lo, mas acho que ele diz “sacudidelas”. Ele estava sempre a tentar arrancar as pessoas dos seus padrões de pensamento familiares. Por isso, de repente, começava a gritar com alguém, ou obrigava-os a fazer uma tarefa como cavar uma vala e depois enchê-la na semana seguinte. Ou obrigava as pessoas a memorizar palavras estrangeiras aleatórias. Fazia estas práticas muito erráticas, surpreendentes, muitas vezes bastante alarmantes, e imensas pessoas que estiveram na comuna escreveram sobre como isso foi transformador. Claro que alguns não ficaram convencidos, mas é engraçado como até mesmo esta prática realmente excêntrica de um homem que provavelmente tinha um parafuso a menos, de certa forma, foi eficaz. De repente, todas estas pessoas estavam a questionar as estruturas da sociedade, porque tudo parecia desfamiliarizado.
Então, mesmo os mais cépticos foram arrastados para fora da sua normalidade, mudando a sua visão do mundo?
Sim, penso que não é coincidência o facto de tantos movimentos utópicos florescerem na sequência de guerras mundiais, porque uma guerra mundial é a derradeira sacudidela das práticas quotidianas. Quero dizer, todo o sistema geopolítico é lançado no caos e penso que há um breve período após uma guerra mundial em que as pessoas em todo o mundo questionam os princípios organizacionais fundamentais e depois propõem alternativas. E, por vezes, essas sugestões podem ser totalmente distópicas para nós. Penso que, de certa forma, a Alemanha Nazi começou nestes pequenos movimentos porque as pessoas dessas comunidades pensavam nela como uma alternativa utópica. Claro que nós nunca, nunca, nunca encararíamos isso dessa forma, mas era assim que eles pensavam. Na verdade, foi o mesmo que aconteceu com o ressurgimento do KKK no Indiana, nos anos 20, logo a seguir à Primeira Guerra Mundial. Portanto, quer seja positivo ou extraordinariamente negativo, há este período de maleabilidade depois de um grande abanão global.
Dá o mote para este livro com uma epígrafe do documentário de Michael Moore, “Roger e Eu”, sobre a forma como os coelhos tendem a agir violentamente quando estão enjaulados em espaços minúsculos — e vemos no romance como isso se relaciona com os seres humanos. Noutra passagem, escreve como, na variável das relações humanas, “Y” é sempre o poderoso e “X” o explorado — e uma das personagens descobre que “um dos mais determinantes acontecimentos da sua vida não passou de uma solução para uma equação estafada”. Em que medida é que a ideia de estruturas de poder influenciou “O contrário de nada”?
Julgo que a questão de como o poder é abusado e distribuído foi central para este romance, mas penso que é provavelmente central para quase tudo o que escrevo. É quase uma questão motriz na minha ficção. E, mais uma vez, nunca é algo a que me proponha responder ou concretizar. Penso que um romance é uma espécie de laboratório para experiências sociais e, sempre que se faz exercícios com dinâmicas assim, é-se inevitavelmente levado para questões de poder a nível macro e micro. Por isso, neste livro, uma das questões orientadoras é algo que me assombrava desde criança. O meu pai era sociólogo e, por isso, estava sempre a orientar-nos para pensarmos em sistemas: como é que as decisões estruturais, as leis, as práticas e as histórias de opressão influenciam as micro-ocorrências que estão a acontecer na casa ao lado ou na nossa própria casa? Por isso, acho que fui assombrada pela pergunta “como é isso acontece exatamente?”. Queria muito ser capaz de perceber como é que esta espécie de violência e negligência estruturais engendra esta violência e negligência interpessoais. E este romance estava realmente empenhado nessa questão.
"este modelo extrativo altamente dominador, que vê tudo — pessoas, plantas, animais — como recursos que aqueles que têm poder têm o direito de explorar desde que façam dinheiro, é claramente insustentável e catastrófico para quase toda a gente. Por isso, ao tentar conceber soluções para este modelo, como imaginar um ecossistema regenerativo e de cuidado mútuo, algo que seja um antídoto para este modelo extrativo de preocupações individuais, comecei a pensar muito sobre a morte do ego que quase todos os místicos descrevem."
Sinto que há dois pólos no romance. Como estava a dizer, por um lado, temos a natureza opressiva do lugar, da dinâmica social entre as personagens, e, ao mesmo tempo, há este desejo de fugir, de irromper. Outra das protagonistas, Joan, tem este trabalho desumanizador de moderar comentários online e também ela quer acordar desta realidade.
Acho que os tipos de cenários que me atraem são aqueles em que as pessoas estão muito pressionadas, de uma forma ou de outra. Porque acho que isso leva a este tipo de revelação. Andava a pensar muito sobre a conceção católica do “purgatório” quando estava a escrever este livro. Lá está, andei em escolas católicas, e quando me foi apresentado o termo pela primeira vez, o nosso professor descreveu-o como uma terra de espera indefinida e sede infinita, e nunca se sabia quando se ia sair dela. E parecia-me tão familiar, parecia que já lá vivíamos. Por isso, estava a pensar nisto como uma espécie de purgatório terrestre contemporâneo e, claro, a etimologia do purgatório, “purgar”, é uma espécie de purificação e preparação para a vida depois da morte, na doutrina católica. Mas isso também significa que tudo está à superfície, tudo está a subir à superfície e a tornar-se visível à medida que se é um exorcizado. Portanto, esse contexto é muito dinâmico para um romance.
Quanto a esses conceitos cristãos, a personagem à qual dedica mais atenção, Blandine Watkins, tem uma fixação por místicas cristãs e santas mártires. Tal como elas, quer atingir um objetivo superior, deixar o seu corpo físico para trás. O nome deste romance na tradução portuguesa é “o contrário de nada”. Porque é que é isso que ela está a tentar ser?
Bem, uma forma de responder a isso é que o meu irmão diz sempre em jeito de brincadeira, que o vilão deste romance é o capitalismo desregulado, e eu acho que é de facto uma espécie de vilão na vida americana contemporânea e certamente também para além da América. No meu entender, este modelo extrativo altamente dominador, que vê tudo — pessoas, plantas, animais — como recursos que aqueles que têm poder têm o direito de explorar desde que façam dinheiro, é claramente insustentável e catastrófico para quase toda a gente. Por isso, ao tentar conceber soluções para este modelo, como imaginar um ecossistema regenerativo e de cuidado mútuo, algo que seja um antídoto para este modelo extrativo de preocupações individuais, comecei a pensar muito sobre a morte do ego que quase todos os místicos descrevem. Existe em quase todas as tradições religiosas e espirituais e, como é óbvio, as pessoas têm também esta experiência quando consomem substâncias psicadélicas. É como se houvesse algo que unisse tantas experiências transcendentes — e, de facto, isto é ilustrado por exames cerebrais de pessoas que atingem uma espécie de êxtase divino, a parte do cérebro que processa as narrativas do eu, que também processa as memórias e outras coisas, fica dormente. E penso que, se acreditássemos vividamente numa espécie de destino partilhado, em que tudo é interdependente, em que somos verdadeiramente parte de um todo que está para além e antes do nosso tempo, para além e antes do nosso contexto e certamente para além e antes do nosso corpo… Bem, não sei como seria o modelo, mas penso que esse tipo de experiência nos levaria a um. Por isso, estava a pensar que talvez pudesse pensar nesta experiência espiritual como um ponto de partida.
"Estamos todos a viver em câmaras de eco e o tipo de conteúdo que é amplificado é sempre incendiário e, por isso, penso que as pessoas, de forma bizarra, tanto na extrema-direita como na extrema-esquerda do espetro político americano, chegaram à mesma conclusão: é demasiado perigoso tentar imaginar como é ser outra pessoa, por isso nem sequer tentam."
Embora este possa parecer um livro sério que aborda questões sérias, por vezes é também muito engraçado. Tragicamente engraçado, diria. Como é que se doseia o humor num ambiente sem graça?
A meu ver, são coisas indissociavelmente ligadas. Penso que alguns dos escritores mais divertidos são frequentemente aqueles que viveram em contextos históricos extremamente difíceis, como Kafka, sem dúvida. São muitas vezes pessoas bastante torturadas. Joy Williams é uma escritora americana que adoro e que, na minha opinião, é uma das autoras mais engraçadas. Escreve frequentemente sobre coisas que são muito angustiantes, escreve muito sobre a morte e a destruição ambiental, a toxicodependência. O mesmo acontece com George Saunders, outro escritor americano. E penso que, na verdade, David Foster Wallace é muito engraçado e não lhe é dado o devido crédito por isso. Diria que muitos dos autores de que mais gosto são engraçados precisamente porque abraçam totalmente esta espécie de matéria negra da vida, abraçam os absurdos. Quando nos sentamos com a tragédia e olhamos para ela durante tempo suficiente, começa a parecer absurda. Por isso, sim, essas qualidades estão muito ligadas e penso que não é coincidência que a maior parte dos comediantes que conheço sejam frequentemente pessoas muito perturbadas — e não apenas porque o humor é um mecanismo de sobrevivência, mas porque a dor talvez nos torne atentos ao absurdo e nos prepare para encontrar alívio.
É como se medissem essa matéria negra específica que mencionou e soubessem como torcer a faca com precisão.
Exato. E alterar apenas alguns graus de familiaridade de algo pode torná-lo também muito engraçado ou muito assustador ou muito angustiante. Acredito que a desfamiliarização é algo que procuro sempre no que estou a ler ou a escrever, como se estivesse a tentar fazer com que pareça novo e, por isso, às vezes, isso significa que o resultado é muito inquietante. A Inteligência Artificial é um ótimo exemplo disto, como os geradores de imagens do Chat GPT. Alguns dos seus erros são tão engraçados e ao mesmo tempo tão assustadores e tão estranhos, e isso deve-se ao facto de acertarem mesmo ao lado, sabes? Isso é algo que me atrai no humor.
Recorrendo a uma citação que usa no livro, quando Blandine está a falar com Joan e diz: "É como o que Simone Weil diz: 'Saber que este homem que sente fome e sede existe realmente, tanto como eu, é o suficiente, o resto virá por acréscimo'". Será o mero ato de empatia um pensamento radical no atual clima político?
Acredito que provavelmente sempre foi bastante radical. Não quero parecer uma ludita, mas penso que as redes sociais e o seu domínio na vida da maioria das pessoas tornaram a experiência das notícias e da informação radicalmente diferente do que era, do que sempre foi. E não é que alguma vez tenham existido fontes de notícias ou de informação neutras, toda a gente estava sempre a obter fontes filtradas destas coisas, mas agora esse tipo de curadoria é muito mais extremo. Estamos todos a viver em câmaras de eco e o tipo de conteúdo que é amplificado é sempre incendiário e, por isso, penso que as pessoas, de forma bizarra, tanto na extrema-direita como na extrema-esquerda do espetro político americano, chegaram à mesma conclusão: é demasiado perigoso tentar imaginar como é ser outra pessoa, por isso nem sequer tentam. Por exemplo, na extrema-esquerda, por vezes, isso vê-se numa certa intolerância em relação a uma tentativa de habitar uma perspetiva que não é a nossa na ficção, no cinema ou em qualquer outra coisa, há uma intolerância automática em relação a isso. E à direita, obviamente, isso manifesta-se com proibições de livros e tentativas de controlar os currículos, tentando criar políticas que tornem o mundo ainda mais hostil e excludente para as pessoas nas margens. Por isso, sim, é um efeito estranho pelo qual as redes sociais, penso eu, não foram exclusivamente responsáveis, mas alimentaram tremendamente.
A propósito disso, um dos temas quentes nos EUA continua a ser a pressão política e cívica de alguns grupos para banir certos livros das escolas e bibliotecas, para restringir o seu acesso aos jovens. Como é que este clima atual a faz sentir-se enquanto escritora?
Bem, por um lado, é obviamente muito angustiante e penso que muitas pessoas ficarão intelectualmente e culturalmente desnutridas por causa disso. Por outro, é uma espécie de prova do poder da literatura. Dizem-nos vezes sem conta que a ficção literária, em especial, é irrelevante, que não tem poder cultural e é muito fácil tornarmo-nos cínicos sobre o estado do mundo e o lugar da arte nele, em particular a arte que tenta desafiar ao invés de apenas entreter. Mas é claro que se a literatura não tivesse o poder de afetar o curso da história, se não tivesse o poder de incitar à mudança, as pessoas não teriam medo dela. Por isso, acho que, estranhamente, as proibições de livros tornaram a literatura mais apelativa para certos jovens. Do estilo, agora que é proibida, é fixe, é interessante, é um pouco ilícita. Não acho que isto seja uma coisa boa, de todo, mas o que fica claro é que não teriam medo da literatura se ela não fosse tão poderosa. E assim a questão é: porque é que é poderosa? O que é que um livro tem de tão mais poderoso do que outras formas de media? Porque não estão a proibir filmes ou programas de televisão, tanto quanto sei ainda não o fizeram, embora estejam a tentar…
"A forma como percecionas essas histórias, a forma como imaginas cada personagem, cada lugar dessas histórias, é completamente tua. Claro que é influenciado pelo que ele está a escrever, mas a tua experiência dessas histórias é diferente da experiência de qualquer outra pessoa, e penso que isso é parte do que torna a ficção tão potencialmente transformadora."
É porque também é equiparada à educação, não é?
Há esse elo com a educação, mas acho que também tem a ver com questões de vigilância. Penso que é mais difícil controlar o que o nosso filho está a ler do que o que o nosso filho está a assistir. E acredito também que há outra coisa, acho que entramos num livro a partir de um lugar de completa identificação, é esse ato colaborativo e imaginativo entre o leitor e o escritor que é realmente radical. É isso que distingue a ficção de quase todas as outras formas de arte, a forma como se imagina... Por exemplo, qual é um dos teus livros preferidos?
Bem, não estava preparado para isto. Deixou-me perplexo, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Digamos assim à pressão que são os contos completos de Edgar Allan Poe.
A forma como percecionas essas histórias, a forma como imaginas cada personagem, cada lugar dessas histórias, é completamente tua. Claro que é influenciado pelo que ele está a escrever, mas a tua experiência dessas histórias é diferente da experiência de qualquer outra pessoa, e penso que isso é parte do que torna a ficção tão potencialmente transformadora. É como se estivéssemos a participar na sua criação.
Voltando ao tema da proibição de livros, há algo que disse sobre a literatura ser posta de lado como irrelevante nos dias de hoje, mas é revelador que a primeira coisa que um governo autoritário faz é tentar restringi-la, para que não influencie as mentes das pessoas.
Estive a pensar nisso há pouco tempo. O Partido Republicano atual não tem qualquer semelhança com o Partido Republicano da minha infância, que estava muito mais empenhado nos temas da liberdade de expressão, na liberdade em geral, e numa espécie de governo reduzido, sem controlo nem supervisão. É claro que isso nunca foi perfeito e que também havia falhas nesse modelo, mas agora o Partido Republicano gravitou tão longe em direção ao controlo extremo e a uma completa ausência de liberdade, a currículos monitorizados pelo Estado e a listas de leitura sancionadas politicamente. É tão oposto ao que eles eram. Isto é essencialmente o início do fascismo.
Quanto ao que disse sobre a proibição dos livros acabar por torná-los mais atractivos, é como se ninguém tivesse aprendido com o que aconteceu a interdição da venda de álcool na era da Proibição, apesar de os livros não serem tão maus para a saúde como as bebidas alcoólicas.
A título de exemplo, lembro-me de quando "O Código Da Vinci" foi publicado, eu era uma criança e andava na escola católica. Não foi proibido na nossa escola e, na verdade, até tivemos professores que nos sentaram e disseram "é ficção, não faz mal, é ficção", mas havia certamente uma atmosfera à volta do livro de que era talvez um pouco maligno e todos na minha turma queriam lê-lo, todos os miúdos gravitavam em torno desse livro. Por isso, sim, é apenas uma reação natural quando algo é proibido: pensamos "bem, porque é que foi proibido? Porque é que é tão especial? Porque é que têm medo dele?”
"Nunca me preocupo em soar demasiado como outra pessoa, porque considero uma tarefa de Sísifo tentar soar apenas como nós próprios. Claro que seremos sempre um reflexo das nossas leituras, elas serão sempre o nosso combustível, o nosso alimento, e estaremos sempre a escrever em reação a elas"
Provavelmente deve ser interessante, divertido até, para si e para os americanos em geral, esta forma como o resto do mundo, a Europa em particular, olha para os assuntos internos dos EUA à espera de ver o que acontece. Como é que encara isso?
Como é que eu vejo a atitude da Europa em relação à América?
E a relação de poder entre as duas, porque creio que os EUA não estão à espera de ver o que acontece na Europa para decidir os seus próximos passos, mas a Europa está sempre à espreita — como, por exemplo, quanto às próximas eleições presidenciais dos EUA.
Na verdade, uma das razões pelas quais prefiro obter notícias de fontes não americanas é que a América não faz um trabalho adequado no que diz respeito aos assuntos globais. Eu estudei em França durante um ano e, por vezes, ainda ouço a rádio pública francesa para manter a minha compreensão do francês, mas uma das coisas que adoro nela é o facto de estar tão empenhada nos assuntos globais. Todos os seus programas estão mais envolvidos com assuntos globais do que quase todos os programas nos Estados Unidos. Penso que é uma das principais fraquezas dos EUA e uma das razões pelas quais registámos um aumento tão acentuado do nacionalismo e, francamente, uma mudança extrema em prol de um demagogo idiota. É por causa da sua espécie de falta de interesse terminal em quaisquer outros assuntos. Sim, beneficiaríamos realmente de maior interesse e investimento no que se está a passar em todo o mundo.
Mas, ao mesmo tempo, é engraçado ver como o mundo consome tudo o que se passa na América, há uma espécie de relação parassocial. O seu romance é virado para dentro, em alguns aspectos, e mesmo assim encontra um público interessado que está completamente afastado da sua realidade.
Sim, e de facto descobri que, por vezes, as audiências não americanas são muito mais receptivas às críticas à América do que as americanas, por razões óbvias. Mas também acho que, em parte, é porque os outros países conseguem ver os EUA mais claramente do que nos vemos a nós próprios. É engraçado, acabei de ler "O Boneco de Neve" de Jo Nesbø, um escritor norueguês. É um thriller que se passa na Noruega, mas ele marca o tempo discutindo quem é o presidente americano. Isto foi tão surpreendente para mim. Não estava à espera, e há muito também sobre assassinos em série americanos neste livro. Lá está, presumo que é pela América ser tão grande (risos). E é uma força tão dominante em termos militares...
E tem hegemonia cultural. Penso que, hoje em dia, isso até ultrapassa o seu poderio militar.
Mas eu acredito que esse tipo de domínio cultural não é sustentável, não vai durar para sempre. Quero dizer, já vemos como este tipo de tensões extremas entre a China e a América estão a aumentar, em parte porque a China está a tornar-se um ator global. E quem sabe como é que isso se vai manifestar culturalmente. Mas sim, penso que não é sustentável. E julgo que a América, por qualquer razão, talvez apenas por ser um país relativamente novo em comparação com o resto do mundo, é vista como uma experiência ou algo do género, como um laboratório para certas ideias que, se funcionarem na América, talvez outros países estejam mais receptivos a elas ou mais dispostos a experimentá-las. Penso que o facto de não retribuirmos esse tipo de interesse global é uma perda para a América.
"Se alguém diz que não gosta de ficção contemporânea ou de arte contemporânea ou de música popular contemporânea, desconfio muito dessa pessoa porque acho que provavelmente não sabe como formar e confiar no seu próprio gosto. Como se estivesse a confiar na História para selecioná-lo."
Mencionou muitos autores durante esta conversa, mas fico com a impressão que não os está a referir apenas porque quer parecer interessante e sim porque tem um amor natural pela literatura. Existe aquela máxima de que os autores são tanto leitores como escritores. Uma vez que este foi o seu primeiro romance, para desenvolver o seu próprio estilo, quanto teve de equilibrar entre o que gosta de ler, as suas influências, tudo o que quer absorver e tentar ser uma escritora diferente?
Acho que não tenho a “angústia da influência”. Nunca me preocupo em soar demasiado como outra pessoa, porque considero uma tarefa de Sísifo tentar soar apenas como nós próprios. Claro que seremos sempre um reflexo das nossas leituras, elas serão sempre o nosso combustível, o nosso alimento, e estaremos sempre a escrever em reação a elas. E também, quando nos libertamos da perceção errada de que existe uma forma completamente única ou um romance único, algo que nunca foi feito antes, ficamos livres para seguir aquilo que nos atrai e, se o fizermos, vamos quase sempre buscar inspiração a muitos sítios diferentes. Vais buscar tantas vozes diferentes que não poderias replicar a escrita de outra pessoa. Por isso, acho que sinto que quando estou a escrever, é quase como se estivesse a cozinhar.
Como assim?
Como se fosse buscar ingredientes. "Acho que preciso de trabalhar um pouco mais com a linguagem, por isso vou buscar alguma poesia e lê-la em voz alta" — normalmente, começo as sessões de escrita lendo poesia. No entanto, neste momento, estou numa fase em que leio exclusivamente ficção policial, tenho lido basicamente “whodunits” e, em parte, isso deve-se ao facto de estar a meio de uma mudança e poder ouvi-los enquanto faço as malas, mas também acho que precisava de me familiarizar com os prazeres simples e fundamentais da leitura. Precisava de me lembrar como era não conseguir largar um livro e acho que tento confiar nos meus apetites. Por exemplo, se a dado momento só me sentir atraída por, sei lá, não-ficção sobre os julgamentos de bruxas em Salem, confio que, se seguir os meus interesses nessa altura, eles levar-me-ão onde preciso de ir. Obviamente que há livros que leio para pesquisa, há romances que leio porque agora parte do trabalho de ser romancista é como fazer divulgação e participar em eventos e coisas do género. Mas sim, tenho tendência para não me impor um tipo de programa ou dieta. Confio apenas nos meus desejos e, normalmente, eles levam-me a um sítio bom.
Não sei se costumam dizer-lhe isto, mas sinto que está a abordar os livros e a literatura a partir de um lugar relativamente sóbrio, sendo que há a ideia de que os licenciados em língua inglesa e as pessoas que estudam literatura são um pouco presas ao seu, como mencionou no início da conversa, snobismo. Consequentemente, os seus romances talvez tendam a seguir esse caminho, como se estivessem no topo de uma torre de marfim. Considera que a curiosidade intelectual é também um antídoto contra ficar preso a esse tipo de mentalidade?
Sem dúvida, tenho uma verdadeira intolerância a esse tipo de condescendência, apesar de não ser um gosto refinado ou ponderado o que me incomoda. Adoro estar perto de pessoas que têm em especial conta tudo o que têm no seu apartamento, tudo o que ouvem, e têm opiniões muito fortes sobre isso. Mas quando isso não é sincero, quando o processo de fazer a curadoria da tua vida é mais orientado pelo estatuto…
...Ou para obter uma reação dos outros.
Se alguém diz que não gosta de ficção contemporânea ou de arte contemporânea ou de música popular contemporânea, desconfio muito dessa pessoa porque acho que provavelmente não sabe como formar e confiar no seu próprio gosto. Como se estivesse a confiar na História para selecioná-lo. Acho que as pessoas em cujo gosto mais confio também estão dispostas a abraçar coisas tidas como de baixo nível. Por exemplo, o meu primo Max tem um dos gostos mais requintados que conheço — e com isso quero dizer que é tudo tão meticulosamente selecionado por si, ele é tão apaixonado por tudo o que traz para a sua vida, filmes, música, a casa dele cheira tão bem, tudo é realmente único. E nada disto tem a ver com dinheiro, ele consegue muitas destas coisas por quase nada, mas é a natureza ponderada disso que é tão atraente. Nem sequer temos de estar alinhados com o gosto, mas se estivermos rodeados por alguém que faz uma curadoria muito cuidadosa, não podemos deixar de ver o seu encanto. Ora, o Max foi à Eurovisão, ele adora celebrar esta comemoração descarada do “mau gosto”. Essas são as pessoas em quem mais confio. Penso que, se não estivermos familiarizados, enquanto escritores, com os prazeres fundamentais da leitura, a nossa escrita pode transformar-se numa espécie de exercício intelectual morto.
"Quando estava no fundo do desespero, a pensar que nunca seria uma autora publicada, tive de voltar a isso e redescobrir a relação com a ficção que tinha em criança, que era de pura descoberta e alegria."
No que toca a humildade, "O contrário de nada" foi imediatamente celebrado aquando o seu lançamento e foi a mais jovem escritora a receber o National Book Award desde Philip Roth — numa estreia, ainda por cima. Como é que esse tipo de reconhecimento afeta o seu trabalho hoje em dia?
Oh meu Deus. (risos) Sinto-me sempre tão estupefacta quando me perguntam sobre o prémio, porque, na verdade, isso faz-me lembrar algo que muitas das místicas medievais escreveram, sobre estas experiências de êxtase divino. Quase todas elas dizem que a linguagem não consegue captar o que se passou. Trata-se de uma experiência completamente fora da linguagem e, por isso, tentar descrevê-la é uma tentativa falhada à partida. E, no entanto, é claro, todas elas escreveram livros a tentar descrevê-la. E, mais uma vez, há algo de cativante em fazer algo que se sabe estar completamente condenado desde o início. Com isso, quero dizer, [o prémio] foi tão enorme que é difícil de compreender. Acho que me trouxe alguns benefícios práticos de imediato, que foi o facto de ter conseguido uma extensão de tempo para o meu próximo romance! (risos) E também trouxe novos leitores para este livro, o que foi realmente a maior dádiva que um escritor pode ter. Mas também trouxe muita pressão. E acho que não vem de mais ninguém, vem de mim. Na verdade, não tenho a impressão de que alguém esteja a aguardar ansiosamente para ver o que vou fazer a seguir, e o meu editor e o meu agente têm sido todos maravilhosos a dar-me espaço e a não exercer pressão. Mas, certamente, dentro de mim, há uma enorme pressão que só agora estou a começar a desconstruir e veremos como isso afecta as coisas no futuro.
Quanto é que isso pode ser transformado em pressão boa ou má? Porque está a preparar o próximo romance, "Honeydew", certo?
O que é estranho é que dei por mim a voltar ao mesmo reservatório de... como dizer isto? Eu acumulei rejeições durante tanto tempo — sabes, publiquei isto quando era jovem, mas tentei publicá-lo durante cinco anos —, estava a receber rejeição atrás de rejeição. E durante esse tempo, houve períodos em que fiquei tão deprimida com tudo isto que não escrevi, mas fui sempre atraída de novo para o livro. E atribuo isso à minha relação de infância com a escrita. Cresci numa família onde a criatividade era encorajada como um fim em si mesmo e não como um meio para atingir um fim. Nunca houve qualquer discussão sobre as forças do mercado ou sobre como rentabilizar algo ou como utilizá-lo para a candidatura à faculdade. Os meus pais fizeram um ótimo trabalho ao proteger o processo criativo de qualquer força externa, e nós fomos encorajados a persegui-lo para nossa realização pessoal. E penso que, em parte, como não tínhamos muito dinheiro disponível, não tínhamos aulas particulares ou campos de férias, fomos sempre ensinados a fazer o que nos interessava por nós próprios. E os meus pais facilitavam-no: levavam-nos à biblioteca e a minha mãe, como era professora de arte, arranjava sempre muitos materiais. Mas esperava-se sempre que fôssemos nós a procurá-lo. Os meus irmãos são músicos extraordinários e são todos autodidactas, essencialmente, porque sempre orientaram a sua própria prática criativa.
Quando estava no fundo do desespero, a pensar que nunca seria uma autora publicada, tive de voltar a isso e redescobrir a relação com a ficção que tinha em criança, que era de pura descoberta e alegria. Foi uma experiência muito privada, nessa fase nunca tinha partilhado a minha ficção com outras pessoas. E agora que tive esta sorte extrema, dou por mim a voltar ao mesmo mecanismo de sobrevivência, como se tivesse de me reencontrar com essa relação infantil com a ficção, algo que é verdadeiramente puro, é puro maravilhamento e algo que nos transporta, algo que é alegre e eletrizante e vivo. Só o podemos fazer se nos esquecermos completamente de quaisquer forças externas.
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