Distopias. Terreno fértil para enredos parvos, a história do mundo que desabou é a premissa de incontáveis projetos do cinema. Há os que correm muito bem (“Os Filhos do Homem”, de Cuarón, em 2006, por exemplo) e os que correm muito mal (devem ser para cima de 2.012 os filmes que cabem nesta caixinha). Este “Lugar Silencioso” ganha, com todo o mérito, o título de bom, ótimo, filme sobre um lugar inóspito e perdido às mãos de uns bichos esquisitos com umas orelhas muito, muito (muito mesmo) grandes.

A sinopse é essa: a população humana é exterminada por umas criaturas (talvez extraterrestres, sugerem algumas teorias) que, apesar de não verem um palmo à frente do eventual nariz que tenham, são capazes de caçar usando apenas a audição. Por isso, a única forma de sobreviver é não fazendo qualquer barulho.

Sorte para os Abbot, que, com uma filha surda (a fantástica Millicent Simmonds, que já vimos em “Wonderstruck”), não são estranhos à língua gestual, concebendo, assim, uma vida alternativa — embora extremamente aborrecida para qualquer criança (e eles têm três).

Millicent Simmonds e John Krasinski créditos: © 2017 Paramount Pictures. All rights reserved

Arranca já aqui o terror: um doce miúdo de quatro anos vai ao supermercado com a família, já a calamidade vai avançada no 89.º dia, e quer um brinquedo. Um vaivém da NASA, para levar a família dali para fora.

Ora, qualquer pai sabe que esses pechisbeques de plástico a pilhas são o alarme ideal para dar cabo de paciências (e, no caso em apreço, de vidas). E por isso, com um olhar mortal do pai (John Krasinski), o miúdo tem de deixar o brinquedo para trás.

O resto acontece sem grandes doses de sangue ou mórbidas escavações das tripas alheias, como é costumeiro no estilo. Pelo contrário, no que ao terror apocalíptico diz respeito, à parte os pés sempre descalços, estamos perante uma obra asseada (relativamente).

Muito do que de bom resulta neste filme deve-se à atenção aos pormenores. O universo desta família rural é reconstruído tendo em conta a redefinição do valor do ruído. Mais do que resultado secundário e irrelevante da vida, o som torna-se no ponto de todas as concentrações. E essa noção é mostrada de forma eficaz ao auditório (e auditório não é uma palavra de todo inocente).

Depois, claro, a arquitetura do argumento. Logo no início, tudo o que devemos saber é-nos exposto. Sabemos o funcionamento do jogo; o que fazer e não fazer. O que temer. E somos atirados à preocupação, à mímica. Porque não será difícil ver-nos espelho daquela gente e, por isso, preocupados em igual medida.

Realizado pelo homem que interpreta Jim Halpert, na série ‘The Office’, John Krasinski, este filme pouco tem de humor (até porque Krasinski faz muito mais para além disso). É uma história de sobrevivência num mundo calado. A história de uma família que sobreviveu graças à conjugação perfeita (demasiado, até, embora não seja pecado capital) de engenho, oportunidade e disponibilidade.

Para além de realizar, Krasinski, que na vida real é casado com Emily Blunt, encarna o pai austero que faz o que faz para proteger a família. Simmonds é a adolescente rebelde. Blunt é a mãe que espoleta problemas. E Noah Jupe é o miúdo amedrontado que perde o medo para salvar a mãe. Mas nada do aparente clichê importa porque a forma como a história se apresenta é o bastante para arrancar os apoios de braço da cadeira e dever uma indemnização aos proprietários da sala.

Um Lugar Silencioso
Noah Jupe e Millicent Simmonds créditos: © 2017 Paramount Pictures. All rights reserved

Tensão. Feito no silêncio, quase ouvimos o nosso coração. Queremos pará-lo com medo de perturbar o esforço daquela gente que sobrevive na tela. Vamos calados, temendo cada passo no ranger da madeira. Até que, impotentes, vemos qualquer coisa cair sem que possamos agarrar. Num estrondo, num repente, numa explosão de som e tragédia, talvez fiquem as pipocas para um lado, a cola para o outro.

Não é daqueles filmes de constante medo. Pior. É daqueles que nos vai dizendo: “pá, agora já podes acalmar, está tudo bem, já passou. Olha eles agora todos divertidos, estás a ver?”, até rasgar num estardalhaço que convence a não confiar em ninguém.

Este é um filme em que as pipocas e o sorver de refrigerantes devia ser proibido. Numa sala escura, numa em que se ouve apenas a estática dos sistemas e as respirações profundas dos outros espetadores, a suspensão, a ansiedade — o medo — acumulam-se, silenciosamente. Imperturbados para não perturbar o equilíbrio delicado que os Abbot prepararam para sobreviver.

Há, por isso, uma tentativa de não perturbar o silêncio. Porque só a total ausência de som garante a vida. Por isso, conselho de amigo: vá ver este filme. Mas não o veja numa sexta-feira à noite. Nada disso, diga ao patrão que tem uma consulta no médico (otorrinolaringologia, por exemplo) e que precisa de sair a meio da tarde. Vá logo à primeira sessão do dia, com a sala o mais vazia possível, e perceba porque, não apenas de imagens, o cinema se faz também de som.

Peter Bradshaw, crítico do jornal britânico ‘Guardian’, que dá cinco estrelas ao filme, lança a questão: serão os humanos capazes de viver sem fazer barulho? De se adaptar a uma existência silenciosa? Talvez seja esse o maior indutor de medo. A dúvida de perceber se somos capazes de não fazer barulho. De não destruir, com o desequilíbrio, um pé mal posto, um braço trapalhão, o delicado casulo de ausência sonora que nos protege.

Mais um desafio: ponha-se à escuta. Até ao final deste texto (falta pouco), quantos ruídos lhe ditariam a morte. Depois, na caixa de comentários, diga se sobreviveu ou se uma qualquer notificação, uma tosse ou um espirro primaveril lhe ditaram o fim.

Foi mais ou menos isso que Krasinski fez quando pegou no argumento de Bryan Woods e Scott Beck. Pôs-se a dividir os sons do dia-a-dia em sons seguros e sons perigosos. Da louça ao soalho. E esses detalhes figuram no universo do filme, o que lhe traz, à parte o resto, o realismo necessário para induzir a ansiedade, o medo.

A meticulosa edição de som, que muda não só consoante a perspetiva, mas também o sentimento, adensa a bruma narrativa, abrindo uma dimensão sensorial raramente notada, mas que, por isso mesmo, justifica a ida a uma sala de cinema.

Emily Blunt créditos: © 2017 Paramount Pictures. All rights reserved

Mas atenção: não só de som vive a história. Emily Blunt assume o papel vencedor. Sem glorificações exageradas, encarna uma mulher com todas as dimensões que elas têm. É heroína de si, também da família. E o desempenho da atriz britânica não podia ser melhor. Do início ao fim — sobretudo no fim.

Aventa-se por aí que pode (ou vai) haver uma sequela. Este espetador não tem a certeza de que o filme precise de uma sequela. Talvez tivesse valido a pena alargá-lo (com 90 minutos, nos dias que correm, é um filme pequeno, embora em tudo eficaz), em vez de cobrar dois bilhetes para a mesma história.

Em nota, avisa o autor destas palavrinhas que não é fã de compromissos de longo termo com uma mesma história, razão pela qual julga ser melhor escancarar tudo na mesma sessão, em vez de dividir as coisas em pedaços, em “logo se vê” e “demos um tempo”.

É claro que há muito que pode ser explorado e o final  — spoiler alert — não podia ser mais aberto. Mas… mas, porque não deixar o público assim pendurado? Nalguns casos faz sentido, até como mecanismo indutor de ansiedade póstuma. Um efeito prolongado que acompanha o auditório até ao carro, durante a viagem noturna até casa. Até à cama, olhando apenas o teto no escuro, escutando apenas o tiquetaquear dos relógios, orquestra dessincronizada, que, temos a certeza, vai chamar a atenção de uma daquelas criaturas. E lá vamos tirar-lhes as pilhas. Mais vale.

Isto, porém, pouco importa para já. A experiência na sala de cinema que Krasinski nos dá é exatamente aquela que um filme de terror tem de dar. E este é um bom filme do género (e no geral). Bem escrito, sem diálogos fúteis e ingénuos (isso também se pode dever à ausência de grandes diálogos, é certo), trabalha a ansiedade sem mostrar tripas ou sangue alheio, à exceção de dois momentos em que é necessário, fruto, primeiro, de um clichê e, segundo, da prova de que, apesar de poder acabar o mundo, não acaba o amor — mesmo com bicharocos esquisitos a passear à beira.


“Um Lugar Silencioso”, de John Krasinski, com Emily Blunt, John Krasinski, Millicent Simmonds e Noah Jupe estreia esta quinta-feira, 3 de maio, nas salas portuguesas.