Era domingo, e era manhã. Era uma melodia escondida na sujeira, à procura de ser tão límpida quanto as margens de um rio casto. It's just a restless feeling by my side, ouvia-se; e, quem ouviu, manteve para sempre esse sentimento inquieto, esse pedaço de qualquer coisa indistinta a florescer na pele. Era o início de algo novo e belo, sem que se pudesse discernir qual das duas a mais importante, já que não há evolução sem novidade e não há vida sem beleza. Naquela manhã de domingo, há exatamente cinquenta anos atrás, houve quem descascasse a banana pela primeira vez – e o que se seguiu mudou, indelevelmente, a face do rock e da pop.
Era domingo, e era manhã, o mesmo cenário pintado por “Sunday Morning”, dois minutos e cinquenta e cinco segundos que abriam as portas do estranho mundo de The Velvet Underground & Nico, o álbum de estreia do quarteto formado por Lou Reed, John Cale, Sterling Morrison e Maureen Tucker, com a ajuda de uma Chelsea Girl alemã que largou os filmes e se atirou à música: Christa Päffgen, carinhosamente conhecida como Nico. Esperem, “a ajuda”? Não, não foi ajuda. Na verdade, foi mais uma “imposição”, da parte do mítico Andy Warhol, o homem responsável pela ascensão dos Velvet Underground – e que, aqui, foi creditado como produtor, embora não tenha tido qualquer influência no resultado sonoro final. A sua maior contribuição, para além do mito, foi a icónica capa do álbum. Peel slowly and see..., pode ler-se, qual convite de sabor amargo, alimentando tanto a curiosidade como o medo.
Mas houve quem se atrevesse a ver. A escutar. A reformular, ou a ser influenciado por. Eis alguns nomes: U2, Joy Division, Sonic Youth, Brian Eno, Beck, The Flaming Lips... E estes são uma porção ínfima de todos os artistas que, de uma forma ou de outra, foram tocados pela magia presente em The Velvet Underground & Nico. Ou talvez “magia” seja uma palavra demasiado jovial, a não ser que lhe acrescentemos um “negra”: como é que um disco que aborda temáticas tão “chocantes” – pelo menos à altura – como as drogas, o sadismo e o masoquismo ou a prostituição se transforma num dos mais celebrados de sempre?
«Foi celebrado, [mas] alguns bons anos após a saída. Se não me engano, vendeu 40 mil cópias. Acho que foi mais celebrado quando as pessoas foram a fundo na obra do Andy Warhol, e quando o Lou Reed teve sucesso», explica João Pimenta, dos portuenses 10 000 Russos, banda editada pela londrina Fuzz Club – ele que, enquanto baterista, se diz influenciado pelo trabalho de Maureen Tucker nos norte-americanos. E acrescenta: «Na realidade, eu tiraria o Warhol da equação. Aliás, eu jamais deixaria que alguém exterior faça o que ele fez aos Velvet Underground».
É verdade; naquele domingo, manhã de 12 de março de 1967, não foram muitos os que se atiraram de cabeça para The Velvet Underground & Nico, até porque também não foram muitos os que se atreveram a publicitá-lo: o álbum foi banido de várias lojas de discos devido ao seu conteúdo, e as rádios recusaram-se a dar-lhe qualquer tempo de antena. Críticas? Poucas ou inexistentes. O resultado foi o rotundo falhanço comercial de um disco que não ultrapassou o 171º lugar na tabela de vendas da Billboard.
Foi preciso chegar o punk, que os Velvet Underground também influenciaram, para que The Velvet Underground & Nico pudesse alcançar outro estatuto. Robert Christgau, autoproclamado “decano dos críticos rock americanos”, escreveu desta forma sobre ele no final do ano de 1976: «Foi difícil avaliar [o disco] à altura, porque as pessoas ainda estão a aprender com ele. Soa intermitentemente bruto, escasso e pretensioso no princípio, mas nunca deixa de melhorar», e remata, de forma quase profética: «Vão ser famosos por mais de 15 minutos».
E foram-no, de facto, desvinculando-se do motto do mentor Andy Warhol, que apoiou e financiou a banda nos seus primórdios – tendo, como já referido, levado Nico a juntar-se a eles. Em 1989, Lou Reed descreveu-o à Rolling Stone como “um catalisador, que juntava sempre elementos chocantes, algo que nem sempre [o] deixava satisfeito”. Mas mesmo com a “ganância” de Warhol, de ter uma banda que pudesse controlar – afinal de contas, a pop art também tinha que verter para a música pop –, Reed não deixou de se entusiasmar pelo projeto. “Disse-nos para escrever uma canção sobre uma femme fatale. Sem qualquer outro motivo. Ele era bastante divertido”. Foi Warhol quem permitiu aos Velvet Underground o seu primeiro concerto, numa sessão intitulada The Exploding Plastic Inevitable, em que a banda serviu de banda-sonora para um filme de Barbara Rubin, Christmas on Earth, o qual mostrava de forma explícita várias pessoas a ter relações sexuais, tanto hetero como homo. E foi Warhol quem os levou a assinar pela Verve, que editaria The Velvet Underground & Nico.
Meio século depois, eis-nos ainda a celebrar a música, o mito, a magia negra. Mas sobretudo a arte, pop e fora dela; The Velvet Underground & Nico é um álbum pop rock, mas de cariz sobretudo experimental: a dissonância avant-garde de John Cale, estudioso na matéria, aliada às letras e melodias de Lou Reed, coadjuvados pelo ritmo metronómico e simples de Tucker e pela guitarra de Sterling Morrison. É um álbum que, como explicou Brian Eno em 1982, “vendeu 30 mil cópias, mas cada pessoa que o comprou formou uma banda”. Como Macaulay Culkin, o puto reguila de Sozinho em Casa, que na idade adulta – e longe dos ecrãs – formou uma banda de versões dos Velvet Underground, intitulada The Pizza Underground e que, como se pode perceber pelo título, alterava as canções para passarem a referir... pizza (spoiler: não correu bem, já que muitos se insurgiram contra a “profanação” do cadáver dos Velvet por parte do ex-ator). É um álbum que pode, até, ter inspirado revoluções: Václav Hável, último presidente da Checoslováquia e o primeiro da República Checa, e uma das grandes figuras na transição do país de um regime comunista totalitário para um democrático, era fã – e que não se menospreze o facto de nos referirmos, ainda hoje, à revolução checa como a “revolução de veludo”. É um álbum que providenciou a banda-sonora de milhares de junkies, por força de “Heroin”. E é um álbum que, ainda hoje, ressoa como um objeto estranho mas absolutamente novo, tanto que em meio século não surgiu outro igual. Peel slowly and see...
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