O viajante (automobilista) e a sua bagagem
Carina Infante do Carmo
Universidade do Algarve
Já vai adiantado o itinerário pelo país quando o viajante saramaguiano de Viagem a Portugal (1981) regista um comentário acutilante em face da paisagem mais a sul do país:
O viajante repara que pelas estradas do Algarve toda a gente tem pressa. Os automóveis são tufões, quem vai dentro deixa-se levar. As distâncias entre cidade e cidade não são entendidas como paisagem, mas como enfados que infelizmente não se podem evitar. O ideal seria que entre uma cidade e outra houvesse apenas o espaço para as tabuletas que as distinguem: assim se pouparia tempo. E se entre o hotel, a pensão ou a casa alugada e a praia, o restaurante, a boîte, houvesse comunicações subterrâneas, curtas e diretas, então veríamos realizado o mirífico sonho de estar em toda a parte, não estando em parte alguma. A vocação do turista no Algarve é claramente concentracionária. (Saramago 1998, 252)
É sabido que nesta obra Saramago exprime uma ideia de viagem divergente das rotas programadas do consumo turístico: «Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar» (Saramago 1998, 188). Na verdade, todo o livro se empenha em valorizar a memória pessoal, literária e histórica e a elaboração do relato que a deslocação no espaço potencia. Mas aqui o que verdadeiramente está em causa são os efeitos nefastos da massificação turística na região portuguesa onde esta mais cedo se fez sentir: naquela estrada algarvia, as viagens de carro rasuram a paisagem dos olhos dos turistas, embalados em deslocações velozes de automóvel que os cegam, confinam e reduzem a uma vocação concentracionária e alienada.
O viajante critica, afinal de contas, a rutura da aliança sensível dos turistas com os lugares, já que o olhar fica indisponível para contemplar e imergir no espaço desconhecido pela excessiva velocidade do meio de transporte em que se deslocam. Esse é um problema que vai mais longe no tempo histórico, para lá da invenção do automóvel moderno, no final do século XIX. O discurso viático sobre o espaço incorporou a redução das distâncias e a abertura de fronteiras na plena interferência entre experiências, imaginários e formas de escrita. O século XIX consagra a idade de ouro do caminho de ferro, dos barcos a vapor e dos transatlânticos. No século XX, coube ao avião assumir este sonho de progresso, o que a conquista do espaço intensificou ainda mais, mas esse é também o tempo por excelência do automóvel, que mantém o seu fascínio em permanência até hoje. E, nessa medida, as inovações técnicas permitiram e permitem viajar pelo mundo de maneiras diferentes, modificando as formas de ver o espaço e de se relacionar com o tempo.
Daqui decorrem duas interrogações interligadas entre si: o que é que a viagem e os transportes dizem e implicam na expressão literária moderna e contemporânea? Que compreensão da paisagem e do humano traz a literatura moldada por esse fenómeno social, material e tecnológico que é a viagem em autolocomoção motorizada? A riquíssima tradição da literatura de viagens, na sua hibridez e multiplicidade de categorias e subgéneros, nos discursos epistemológicos e estilos estéticos que incorpora, dá-nos pistas quanto aos frutos desse elo entre técnica e modos de representação literária. Basta pensar, no contexto moderno e contemporâneo português, em obras tão diversas e inclassificáveis (até mesmo pela etiqueta de «literatura de viagens») como Viagens na Minha Terra, As Ilhas Desconhecidas ou Passagem do Cabo para chegarmos aos modos desafiantes como Almeida Garrett, Raul Brandão ou Maria Ondina Braga convocaram os meios de transporte para explorarem a dissolução e hibridização das fronteiras entre o relato factual e a criação ficcional, para encenar e compor paisagens, sem esquecer a entidade enunciadora que apreende e fixa os cenários físicos e humanos por escrito, em função da deslocação da viagem.
O processo histórico complexo e contraditório a que acima faço alusão implica o efeito combinado da revolução dos transportes com os progressos da tecnologia de observação ótica e de registo da imagem, bem como com a centralidade cultural da imprensa, de que resultou uma revolução nas formas de ver e representar artisticamente o mundo. Jonathan Crary (2017) deu evidência ao impacto daquelas mutações de base material e tecnológica (como as que tornaram possível a velocidade da viagem) e à panoramização do mundo, à apropriação fragmentária e movente do visível em que se transpõem fronteiras geográficas e culturais, no espaço e no pensamento. Tais alterações do regime cultural de perceção são in- dissociáveis, no contexto da modernidade, da imparável e obsolescente circulação capitalista de mercadorias e do fascínio fetichista do consumo. Não por acaso, no plano estético — designadamente na fotografia e na pintura realista das décadas 1870-1880, e não apenas com a vanguarda modernista — dá-se, em pleno século XIX, uma rutura no processo dos modos de apreensão visual, «moldado por uma convergência de novos espaços urbanos, tecnologias, e novas funções simbólicas e económicas de imagens e produtos» (Crary 2017, 44). Se Michel Foucault alertou para os constrangimentos de vigilância e punição que se abatem sobre o observador do século XIX, graças a Walter Benjamin conhecemos o observador ambulatório desse mesmo período histórico-cultural que protagoniza uma perceção «temporal e cinética» (Crary 2017, 44):
a modernidade subverte mesmo a possibilidade de um observador contemplativo. Nunca existe acesso puro a um só objeto; a visão é sempre múltipla, adjacente e sobreposta com outros objetos, desejos e vetores. Mesmo o espaço cristalizado do museu não pode transcender um mundo onde tudo se encontra em circulação. (Crary 2017, 44)
Vejamos agora os impactos do lado da literatura. Segundo Joël Loehr (2015), o romance é o género literário que mais contributos deu à temática da viagem moderna e contemporânea, genericamente, e da viagem de automóvel, em particular. Revelou-se o mais veicular dos géneros, apurando formas de desenhar socioramas e de acompanhar a vivência sensorial e psicológica das personagens, fechadas na cabina automobilizada, com efeito na estrutura romanesca e no desenho da fisiologia das suas sensações e da sua vida interior.
De 1900 para cá, os caminhos ficcionais do romance seguiram e assimilaram inclusive a evolução tecnológica por que passou a engenharia mecânica automobilística, dos cavalos de potência e do motor de combustão interna ao motor a pistão e a jato. Sem que haja uma relação determinística entre os dois campos, é inequívoca a consonância entre cada avanço na potência e na velocidade da propulsão e as modificações pelas quais foi passando a gramática narrativa do romance, no que toca às variações focais e à montagem e ao andamento narrativos. Consequentemente, a técnica teve efeito sobre o romance no alcance metafísico e existencial do humano nele figurado. Basta lembrar o exemplo da road novel, ou romance de estrada, dos meados do século passado e a forma como o traçado da estrada e o curso da viagem automobilística se conjugaram numa jornada de rebeldia e recusa em criar raízes, de autorrevelação e aprendizagem, de fuga à rotina e atenção ao real em descoberta. No contexto norte-americano, o género ganhou popularidade e deu o seu contributo para a interrogação da identidade nacional, captando o fascínio coletivo dos EUA por estradas, carros, viagens, velocidade, bem como a atração por espaços abertos. Em causa está um género transmedial no qual se incluem os filmes de estrada (ou road movies) — como o romance On the Road (1957), de Jack Kerouac, e o filme Easy Rider (1969), realizado por Dennis Hopper, respetivamente —, materializando a transformação tecnológica dos relatos de errância e viagem (1).
Há ainda a acrescentar o contributo de Paul Virilio, que, em Esthétique de la Disparition (1994), aprofundou uma desafiante reflexão sobre a dromologia, que o mesmo é dizer o estudo dos impactos socioculturais da velocidade na sociedade contemporânea, impostos pelo progresso tecnológico dos meios de transporte e dos media. Uns e outros tornaram-se numa espécie de próteses das viagens aceleradas dos humanos, prenunciando um certo apagamento do espaço que, mesmo visto como exótico, corre o risco de quase abolir os efeitos da viagem geográfica naquele que a protagoniza. Na verdade, a integração do corpo, imobilizado e fechado dentro da máquina automobilizada, veio fragilizar e até desintegrar a relação do viajante com a paisagem que ele atravessa. Nos termos de Virilio:
Réconciliation du néant et de la réalité, l’annihilation du temps et de l’espace par les hautes vitesses substitue la vastitude du vide à celle de l’exotisme du voyage, ce qui ne faisait aucun doute pour des gens comme Heine qui voyaient dans cette annihilation même le but suprême de la technique. (1994, 122)
Nos termos radicais de Virilio, à estética da separação, decorrente do olhar que apreende o exotismo na paisagem visitada, sucede a estética do desaparecimento, fruto da velocidade vertiginosa que, como vimos, está subentendida no excerto já transcrito de Viagem a Portugal.
Na obra de Saramago, o relevo da viagem automobilística não se fica pelo romance, embora, no que toca a Viagem a Portugal, as deslocações de carro, essenciais à mobilidade do seu enunciador, sejam quase sempre rasuradas para dar evidência aos lugares de destino, sobretudo ao edificado e a quem «abriu portas e mostrou caminhos» (Saramago 1998, 5) ao viajante — guias, guardiões de chaves, responsáveis técnicos de museus e outras instituições culturais e do património —, na sua rota pela geografia portuguesa continental. Outro domínio a considerar no perímetro literário saramaguiano são as crónicas que o escritor reuniu em Deste Mundo e do Outro (1971) e A Bagagem do Viajante (1973), na sequência da sua colaboração no vespertino A Capital, entre 1968 e 1969, para o caso do primeiro título, e n’A Capital e no Jornal do Fundão, entre 1971 e 1972, para o caso do segundo. Nessas crónicas descobre-se a prática da tal estética da separação de que fala Virilio: a experiência do viajante automobilizado abre campo a formas densas e significativas de composição da paisagem e de implicação da memória e do sonho desse que a vivencia e narra por dentro e em movimento, assegurando-lhe a plena inscrição no lugar (geográfico e cultural) português que é o seu.
Em Deste Mundo e do Outro, o texto «Viagens na Minha Terra» filia o cronista na tradição garrettiana que faz equivaler viagem e escrita:
Crónicas, que são? Pretextos, ou testemunhos? São o que podem ser. Mas fosse o Garrett a escrevê-las — e outro galo nos cantaria! Pois (agora é que eu chego) o melhor das Viagens é exatamente a viagem — a crónica. Se o leitor não conhece ou já não está lembrado, abra o livro e saboreie. (Saramago 1997a, 52)
A crónica é, desde o seu étimo, uma escrita de assinatura datada, de formato fragmentário, impulsionada pela necessidade de concisão e pelas circunstâncias do quotidiano de que tantas vezes o cronista parte para ocupar a coluna regular de um jornal ou revista. Aí reside o traço definidor desse género híbrido e marginal dentro do sistema de géneros literários. O sujeito enunciador apreende o mundo em fragmentos e em movimento, sob o impacto de uma bagagem diferenciada de heranças pessoais, históricas, artísticas.
(1) Em Saramago, pode falar-se de uma aproximação ao romance de estrada se pensarmos em A Jangada de Pedra (1986): lembre-se o êxodo maciço de turistas e o trajeto rodoviário das personagens principais pela Península Ibérica, acabada de se separar da restante Europa, mesmo que o livro não esqueça, por via paródica, tradições peninsulares anteriores, como o romance de cavalaria apropriado pelo Dom Quixote ou o relato de naufrágio (cf. Nunes 2022).
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