O episódio, na sessão de inauguração do Edifício das Matemáticas da Universidade de Coimbra (UC), em 17 de abril de 1969, marcou, simbolicamente, o início do movimento estudantil que agora celebra 50 anos e que ficou conhecido como Crise Académica de 69.

“Bem… bem… mas agora fala o senhor ministro das Obras Públicas [Rui Sanches]”. A reação hesitante do Chefe de Estado, Américo Thomaz, ao pedido do presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC), Alberto Martins, foi “interpretada” por Celso Cruzeiro (também dirigente estudantil e um dos protagonistas do movimento) como uma resposta afirmativa e anunciou aos estudantes – que enchiam a sala onde decorria a sessão e o amplo átrio que lhe dá acesso – que o presidente da Associação iria falar.

Alberto Martins falou, mas já sem ser ouvido por Américo Thomaz, governantes (presente também o ministro da Educação, José Hermano Saraiva) e demais autoridades (académicas, militares, locais e religiosas), que, assim que Rui Sanches terminou o discurso, abandonaram, apressados e de forma atribulada, o edifício, enquanto eram rotulados pelos estudantes com “epítetos menos simpáticos”, recorda Celso Cruzeiro.

Na sua intervenção, o presidente da Academia deteve-se essencialmente na Declaração de Coimbra, um caderno reivindicativo aprovado, na véspera da Tomada da Bastilha de novembro de 1968, por “milhares de estudantes de Coimbra, Lisboa e Porto”. As empresas de camionagem, pressionadas pelo Governo, recusaram-se “a transportar para Coimbra os estudantes” da capital, mas, de acordo com a edição de outubro de 1969 da ‘Estudos’ (revista de universitários católicos), nem por isso Lisboa deixou de estar bem representada.

Então também usaram da palavra Barros Moura, em representação da Comissão Nacional dos Estudantes Portugueses, Carlos Baptista, da Junta de Delegados de Ciências, e Celso Cruzeiro (“provavelmente como elemento da direção-geral” da AAC, admite).

Mais, tarde, “pelas 02:00 da madrugada [de 18 de abril]”, Alberto Martins, quando saía do edifício da AAC, foi detido, como referia um comunicado da direção da Associação, emitido algumas horas depois, por sete agentes da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e levado para as instalações da polícia política, também na Alta da cidade (rua Antero de Quental). Entretanto, muitos estudantes e populares concentram-se ali e na vizinha Praça da República, que tiveram de dispersar sob violenta carga policial.

Na manhã desse dia, já com o presidente da AAC libertado, os estudantes manifestaram-se no Pátio da Universidade e, à tarde, decidiram, em assembleia magna, iniciar um processo reivindicativo a exigir (genérica e essencialmente) uma “universidade nova”.

A contestação, que se vinha sentindo, sobretudo deste a Tomada da Bastilha de 1968, e acentuada em fevereiro do ano seguinte, com a candidatura de uma lista do Conselho das Repúblicas à direção da Academia (gerida desde 1965 por uma comissão administrativa, nomeada pelo Governo) e eleição de seis elementos (contra um do Movimento de Renovação e Reforma, afeto ao regime), assumiu novos contornos e dimensão.

Sucederam-se a suspensão das aulas (e sua transformação em sessões de debate sobre a crise e as reivindicações estudantis) e a greve aos exames, o luto académico, a incorporação forçada no Exército de 49 estudantes, as operações Balão e Flor, com a cidade ocupada pela polícia e dividida entre o apoio aos estudantes e ao regime político vigente.

O “pequeno incidente” na inauguração do Edifício do Departamento de Matemática da UC, na Sala Infante D. Henrique (designada 17 de Abril, após a revolução de 1974), “sem nenhuma consequência importante”, na perspetiva do ministro Hermano Saraiva, defendida durante uma comunicação ao país, em 30 de abril de 1969, estava ultrapassado, mas não estava ultrapassada (longe disso) a Crise Académica de 69.

“O combate e a festa que envolveram a luta” não podem ser resumidos a um ato. Constituem “um ‘processo’ rico e multifacetado, longe de se poder definir ou compartimentar ideologicamente, mesmo à chegada”, sustenta Celso Cruzeiro, no seu livro ‘Coimbra, 1969. A crise académica, o debate das ideias e a prática, ontem e hoje’ (Edições Afrontamento, 2010).

Esse ‘processo’, acrescenta, representa “claramente a expressão própria de um grande movimento, contraditório no âmago das forças que o integraram globalmente, mas dirigido por correntes marxistas inovadoras, fora dos cânones clássicos do modelo de desenvolvimento tradicional do movimento associativo”, num “percurso espontaneamente ‘regulamentado’” pelas características da vida universitária em Coimbra e pelos “parâmetros que balizavam as políticas contra o fascismo e contra a guerra”.