O meu objetivo é examinar os indícios de danos decorrentes da grande reconfiguração num amplo espetro de resultados. A transição rápida dos telefones básicos para os smartphones com internet de alta velocidade e aplicações de redes sociais, criou uma infância centrada no telefone, responsável por abrir muitos caminhos novos nos cérebros da Geração Z. Neste capítulo, descrevo os quatro danos fundamentais causados pela nova infância centrada no telefone, que afetam tanto rapazes como raparigas de todas as idades: privação social, privação de sono, fragmentação da atenção e dependência. A seguir, no capítulo 6, apresento as principais razões para as redes sociais terem sido particularmente prejudiciais para as raparigas, incluindo a comparação social crónica e a agressão relacional.
No capítulo 7, analiso o que está a correr mal com os rapazes, cuja saúde mental não decaiu de forma tão repentina como aconteceu com as raparigas, mas que ao longo de várias décadas têm vindo a alhear-se do mundo real e a concentrar cada vez os seus esforços no mundo virtual. No capítulo 8 mostro que a Grande Reconfiguração estimulou hábitos que são totalmente contrários à sabedoria acumulada pelas tradições religiosas e filosóficas existentes no mundo. Explico que podemos ir buscar orientação nas práticas espirituais antigas sobre como viver neste tempo de turbulência e desassossego. Mas, primeiro, tenho de explicar o que é a infância baseada no telefone e de onde veio.
A CHEGADA DA INFÂNCIA BASEADA NO TELEFONE
Quando Steve Jobs anunciou o primeiro iPhone em junho de 2007, descreveu-o como «um iPod de ecrã panorâmico com controlos táteis, um telefone móvel revolucionário e um avanço nos aparelhos de comunicação por Internet». Pelos padrões atuais, a primeira versão do iPhone era bastante simples e não tenho razão para pensar que fosse prejudicial para a saúde mental. Comprei um em 2008 e pareceu-me um admirável canivete suíço digital, cheio de ferramentas a que podia recorrer quando precisasse. Até tinha uma lanterna! Não fora concebido para ser fator de dependência ou monopolizar a minha atenção.
Isso mudaria pouco depois, com a introdução de kits de desenvolvimento de software que permitiam descarregar aplicações de terceiros para os aparelhos móveis. Esta novidade revolucionária culminou com o lançamento da App Store da Apple em julho de 2008, que inicialmente continha 500 aplicações disponíveis. Seguiu-se a Google, com o Android Market, em outubro de 2008, mais tarde rebatizado e aumentado em 2012 como Google Play. Em setembro de 2008, a Apple App Store tinha aumentado até às 3000 aplicações e em 2013 continha mais de um milhão. A Google Play cresceu a par e passo com a Apple, chegando ao milhão de apps em 2013.
A abertura dos smartphones às aplicações de terceiros levou a uma concorrência feroz entre empresas, grande e pequenas, para criar as aplicações móveis mais atrativas. Os vencedores desta corrida eram muitas vezes aqueles que adotavam modelos de negócio de software livre baseados em publicidade, porque poucos consumidores iriam pagar $2,99 por uma app se um concorrente a disponibilizasse de graça. Esta proliferação de apps financiadas por publicidade provocou uma mudança na natureza do tempo passado a utilizar um smartphone. Chegados ao início da década de 2010, os nossos telefones tinham deixado de ser canivetes suíços digitais, dos quais lançávamos mão quando precisávamos de determinada ferramenta, para ser plataformas em que as empresas competiam para ver quem conseguia prender os nossos olhos mais tempo seguido.
As pessoas com menos força de vontade e mais vulneráveis à manipulação são, como é evidente, as crianças e os adolescentes, cujo córtex pré-frontal ainda está subdesenvolvido. As crianças têm estado sujeitas à poderosa atração dos ecrãs desde o advento da televisão, mas não podiam levar esses ecrãs com elas para a escola, nem quando iam lá para fora brincar. Antes do iPhone, havia um limite à quantidade de tempo de ecrã que uma criança conseguia ter, deixando algum tempo para brincar e para as interações presenciais. Mas a explosão de aplicações para smartphones, como o Instagram, precisamente nos anos em que os adolescentes e pré-adolescentes estavam a transitar dos telefones básicos para os smartphones, marcou uma mudança qualitativa na natureza da infância. Em 2015, mais de 70% dos adolescentes norte-americanos tinham um ecrã táctil sempre à mão,6 e estes ecrãs tornaram-se muito melhores a prender-lhes a atenção, mesmo enquanto estavam com amigos. Daí eu datar o início da infância baseada no telefone no princípio da década de 2010.
Como referi na Introdução, utilizo a expressão «baseada no telefone» num sentido alargado que abrange todos os aparelhos com ligação à Internet. Entre os finais da década de 2000 e inícios de 2010, muitos destes aparelhos, nomeadamente as consolas de videojogos como a PS3 e a Xbox 360, adquiriram acesso à Internet, introduzindo publicidade e novos incentivos comerciais em plataformas que até então eram fechadas. Uma vez que os portáteis com internet de alta velocidade davam acesso a plataformas de redes sociais, os jogos de computador baseados na Internet e as plataformas de streaming gratuito com vídeos gerados pelos utilizadores (incluindo o YouTube e muitos sites de pornografia online), também fazem parte deste fenómeno da infância centrada no telefone e que abrange tanto a infância como a adolescência.
AS REDES SOCIAIS E AS SUAS TRANSFORMAÇÕES
As redes sociais têm evoluído ao longo do tempo,7 mas há pelo menos quatro elementos que são comuns às plataformas que geralmente consideramos exemplos evidentes de rede social: o perfil de utilizador (os utilizadores podem criar perfis individuais onde podem partilhar informação e interesses pessoais); os conteúdos gerados pelo utilizador (os utilizadores criam e partilham uma variedade de conteúdos com um público alargado, incluindo textos, posts, fotos, vídeos e links); as redes de contactos (os utilizadores podem ligar-se com outros utilizadores ao seguir os seus perfis, tornando-se amigos ou juntando-se aos mesmos grupos); e a interatividade (os utilizadores interagem uns com os outros e com os conteúdos que partilham; as interações podem incluir: gostar, comentar, partilhar ou mensagens diretas). As plataformas de redes sociais prototípicas, como o Facebook, Instagram, Twitter, Snapchat, TikTok, Reddit e LinkedIn, incluem os quatro elementos, como também o YouTube (embora o YouTube seja por norma mais usado como uma videoteca online mundial, do que pelas suas funcionalidades sociais), ou a plataforma de streaming de videojogos Twitch, recentemente popularizada. Mesmo os sites modernos de conteúdos para adultos, como a OnlyFans, adotaram estas quatro características. Por outro lado, as apps de mensagens, como o WhatsApp ou o Facebook Messenger não incluem os quatro elementos e, não obstante o seu carácter eminentemente social, não podem ser consideradas redes sociais.
Na passagem da década de 2000 para 2010, deu-se uma mudança transformadora na natureza das redes sociais, tornando-as ainda mais prejudiciais para os jovens. Nos primeiros anos de Facebook, MySpace e Friendster (todas fundadas entre 2002 e 2004), chamávamos a estes serviços sistemas de socialização em rede, porque se tratava primordialmente de pôr pessoas em contacto, como antigos amigos da escola ou admiradores de determinado músico. Mas por volta de 2010, surgiu uma série de inovações que operaram uma mudança fundamental nestes serviços.
Antes de tudo, em 2009 o Facebook introduziu o botão de «gosto» e o Twitter introduziu o botão de «retweet». Ambas as inovações foram logo copiadas por outras plataformas, possibilitando a disseminação viral de conteúdos. Estas inovações quantificavam o sucesso de cada post e incentivavam os utilizadores a conceber cada publicação com vista à sua máxima disseminação, o que às vezes implicava fazer afirmações mais radicais ou expressar mais raiva ou repulsa. Ao mesmo tempo, o Facebook começou a usar feeds de notícias geridos por algoritmos, o que motivou outras plataformas a entrarem na corrida e produzirem conteúdos mais eficazes a viciar os utilizadores. As notificações push foram lançadas em 2009, alertando os utilizadores com notificações ao longo do dia. As App Store traziam para os smartphones novas plataformas sustentadas pela publicidade. As câmaras frontais (2010) tornaram mais fácil fazer fotografias e vídeos de nós próprios, e o alastramento rápido da internet de alta velocidade (que em janeiro de 2010 chegava a 61% dos lares norte-americanos)10 tornava mais fácil a todos consumir tudo a grande velocidade.
Chegados ao início da década de 2010, os sistemas de «socialização em rede» que haviam sido estruturados (principalmente) para ligar as pessoas, transformaram-se em «plataformas» de redes sociais, reformuladas (sobretudo) de modo a encorajar encenações públicas de um-para-muitos destinadas a obter a validação, não apenas por parte de amigos, mas também de estranhos. Até os utilizadores que não publicam posts ativamente são afetados pelas estruturas de incentivo concebidas por estas apps.11
Estas mudanças explicam o motivo para a Grande Reconfiguração ter ocorrido por volta de 2010 e ter ficado praticamente concluída antes de 2015. As crianças e adolescentes que eram cada vez mais mantidas em casa e isoladas pela nova mania nacional da superproteção, tinham cada vez mais facilidade em virar-se para a sua crescente coleção de dispositivos com Internet e, por sua vez, esses dispositivos proporcionavam recompensas cada vez mais aliciantes. A infância baseada em brincar acabara; começara a infância baseada no telefone.
O CUSTO DE OPORTUNIDADE DE UMA INFÂNCIA BASEADA NO TELEFONE
Suponham que um vendedor numa loja de eletrónica vos dizia que tinham de comprar, para a vossa filha de 11 anos, um novo produto que era muito divertido – ainda mais do que a televisão – sem qualquer tipo de efeitos secundários nocivos, mas também sem grandes benefícios além do entretenimento. Quanto é que estariam dispostos a pagar por um produto assim?
Não se consegue responder à pergunta sem primeiro saber o custo de oportunidade. Os economistas definem este termo como a perda de outros ganhos potenciais no momento de escolha de um produto. Suponham que estão a começar um negócio e ponderam gastar 2000 € para fazer um curso de design gráfico na universidade local, de modo a melhorar a comunicação visual da vossa empresa. Não é possível calcular se uns folhetos e uma página web mais atrativa irão devolver-vos os 2000 € investidos. Têm de considerar todas as outras coisas que poderiam ter feito com esse dinheiro – e, talvez mais importante, que outras coisas poderiam ter feito com o tempo que gastaram a fazer o curso para melhorar a empresa.
Assim, quando aquele vendedor vos diz que o produto é gratuito, perguntam-se sobre o custo de oportunidade. Quanto tempo é que uma criança passa, em média, a utilizar o produto? Cerca de 40 horas semanais no caso dos pré-adolescentes como as vossas filhas, diz o vendedor. No caso de adolescentes com idades entre os 13 e os 18, aproxima-se mais das 50 horas semanais. Ao ouvir isto, não abandonaria a loja?
Esses números – seis a oito horas diárias – são o tempo que os adolescentes passam em atividades de lazer em frente ao ecrã.12 Como é óbvio, as crianças já passavam muito tempo a ver televisão e a divertir-se com videojogos antes de o smartphone e a Internet terem entrado nas suas vidas. Os estudos de longa duração sobre adolescentes americanos mostram que o adolescente médio via um pouco menos de três horas por dia de televisão no início da década de 1990.13 À medida que, nessa década, a maioria das famílias foi adquirindo acesso dial-up à Internet, seguida da internet de alta velocidade, na década de 2000, a quantidade de tempo passado em atividades online aumentou, enquanto o tempo passado a ver televisão diminuiu. As crianças também começaram a passar mais tempo a jogar videojogos e menos tempo a ler livros e revistas. Combinados, a Grande Reconfiguração e o início da infância baseada no telefone parecem ter acrescentado ao dia de uma criança mais duas a três horas de atividades centradas no ecrã do que as que passavam antes dos smartphones. Estes números apresentam algumas variações consoante a classe social (mais tempo de utilização em famílias de rendimentos mais baixos do que em famílias de rendimentos mais altos), o grupo étnico-racial (maior utilização nas famílias negras e latinas do que nas famílias asiáticas e caucasianas) e estatuto de minorias sexuais (mais entre jovens LGBTQI+).
Devo notar que os esforços dos investigadores para medir os tempos de ecrã são provavelmente subestimativas. Quando a pergunta é feita de modo diferente, a Pew Research tem verificado que um terço dos adolescentes afirmam que estão «quase constantemente»16 em alguma das principais redes sociais e 45% dos adolescentes relatam que utilizam a Internet «quase constantemente». Assim, ainda que o adolescente médio diga que tenha “apenas” sete horas de ecrã por dia, se contarmos todo o tempo que passa ativamente a pensar nas redes sociais enquanto faz outras tarefas no mundo real, percebemos porque é que quase metade de todos os adolescentes dizem que estão online o tempo todo. Isso significa perto de 16 horas por dia – 112 horas por semana – em que não estão inteiramente disponíveis para o que se está a passar à sua volta. Este tipo de utilização contínua, muitas vezes envolvendo dois ou três ecrãs em simultâneo, não era possível antes de as crianças andarem com ecrãs táteis nos bolsos. Isto tem implicações enormes de cognição, de comportamentos de dependência e do alisamento de caminhos no cérebro, especialmente durante o período sensível da puberdade.
Em Walden, de 1854, Henry David Thoreau escrevia, refletindo sobre a vida simples, «Afinal o preço de uma coisa é a quantia, à vista ou a prazo, daquilo a que chamarei vida, vida esta que é exigida em troca.»17 Assim, qual era o custo de oportunidade para as crianças e adolescentes quando começaram a passar seis, oito ou até talvez 16 horas por dia a interagir com estes dispositivos? Poderão eles ter trocado algumas partes das suas vidas que eram necessárias para um desenvolvimento humano saudável?
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