“No plano constitucional, podem surgir várias dúvidas sobre a licitude das medidas propostas pelo Governo [para a habitação], na medida em que existe uma interferência muito forte sobre o direito à propriedade privada”, diz ao SAPO24 Pedro Fernández Sánchez, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), salientando que existe mesmo um risco real de esbarrar na interpretação dos juízes do Tribunal Constitucional.
Aquando da apresentação do programa Mais Habitação, António Costa garantiu que o Governo tem a certeza de que todas as propostas deste plano “respeitam escrupulosamente a Constituição”. Mas há algumas dúvidas em cima da mesa.
“É preciso realizar uma ponderação entre a lesão que pode estar a ser criada à propriedade privada e os benefícios que poderiam ser suscitados.”
Há dois pesos a ter em conta, diz Pedro Fernández Sánchez: se, por um lado, é tido à priori que “a propriedade privada não é um bem absoluto” e que esta “exerce uma função social que tem de ser adaptada a medidas de interesse público”, por outro é necessário seguir “um critério de proporcionalidade”.
“É preciso realizar uma ponderação entre a lesão que pode estar a ser criada à propriedade privada e os benefícios que poderiam ser suscitados”, defende. E, na sua leitura, “é difícil, por mais relevantes que sejam os interesses públicos invocados no outro prato da balança, encontrar razões de peso tão fortes que justifiquem um impacto tão grande na propriedade privada”.
Para melhor ilustrar a sua posição, o professor — que também exerce advocacia enquanto sócio da Sérvulo & Associados —, dá um exemplo comparativo com a proposta de restringir as licenças de alojamento local que o Governo também quer avançar.
“Aí é muito mais fácil justificar a constitucionalidade da medida, porque não está apenas em causa uma ponderação entre direito de propriedade do dono do imóvel, de um lado, e interesse público, do outro. Nesse caso, é evidente que o alojamento local também interfere fortemente com o bem-estar, com a privacidade e com o conforto dos demais proprietários”, diz. Ou seja, o Estado pode invocar não só “o próprio interesse público no estímulo do arrendamento habitacional”, como também “o direito dos outros proprietários”.
Mas a questão vai mais além. É que ao passo que limitar o alojamento local é uma “proibição pela negativa” — como quem diz, “você não pode fazer isto com a sua propriedade” —, o arrendamento compulsivo é “uma medida pela positiva”, onde o Estado não só não permite ao proprietário usar o seu imóvel para os fins que pretende, como o obriga a dar-lhe outra utilização “para a qual não deu consentimento”, explica Fernández Sánchez. E é por essa razão que tal proposta, conclui, é “muito mais violentadora da propriedade privada”.
A apresentação do pacote apresentado pelo Governo a 16 de fevereiro com medidas para tentar solucionar — ou, pelo menos, mitigar — a crise de habitação que Portugal enfrenta causou ondas de choque. E continuarão a abanar o país até, pelo menos, 16 de março, quando o atual projeto em consulta pública for finalmente ratificado em Conselho de Ministros.
A natureza — e também, conste-se, a vagueza — destas medidas levantou críticas não só por parte da esquerda e da direita, como também vindas das autarquias — com Lisboa e Porto à cabeça —, do setor do turismo e dos proprietários. Mas de todas as propostas sugeridas pelo executivo, a que mais celeuma causou foi terá sido mesmo a que estipula o arrendamento obrigatório por parte do Estado de casas devolutas.
A medida deu azo a reações acaloradas no próprio dia em que foi anunciada e ainda antes de se saber o seu conteúdo em detalhe [ver caixa]. "Estamos num estado de direito e vamos contestar [o arrendamento compulsivo] nos tribunais”, disse o presidente da Associação Lisbonense de Proprietários ao SAPO24, que caracterizou a proposta como sendo reminiscente do PREC. O alerta de Luís Menezes Leitão não se trata de uma mera ameaça; afinal de contas, o dirigente desta associação é também o bastonário da Ordem dos Advogados.
Arrendamento forçado não é novo — aliás, já era lei
"O direito à propriedade privada não é um direito absoluto. E há quem defenda, e a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido isso tal como muita doutrina, que o direito à propriedade privada tem uma finalidade social"
O arrendamento compulsivo pode ser uma medida controversa, passível de ser considerada, como descreve Miguel Prata Roque, “uma restrição excessiva e, portanto, desproporcionada do direito de propriedade privada”. Mas nem por isso, defende o também professor associado na FDUL, inconstitucional.
“Em primeiro lugar, o direito à propriedade privada não é um direito absoluto. E há quem defenda, e a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido isso tal como muita doutrina, que o direito à propriedade privada tem uma finalidade social”, explica ao SAPO24. “Todos nós, enquanto comunidade, reconhecemos o direito à propriedade dos outros porque entendemos que esta deve ter um objetivo que é favorável a toda a comunidade. Isso chama-se o ‘fim social da propriedade privada’”, continua.
Ora, seguindo essa lógica de bem comum, “o que isto significa é que não faz muito sentido que eu tenha muito património e que nem eu nem a comunidade o utilize”, argumenta Prata Roque, que dá o exemplo de quem opta por destruir o seu prédio porque lhe apetece. “É muito discutível a ideia de se isso ainda está na esfera de proteção do direito à propriedade privada, porque se destruo um bem que existe, no fundo, estou a impedir que outras pessoas o utilizem” continua. A seu ver, portanto, a leitura mais correta a ter é a de que a “Constituição protege a propriedade privada, mas só na medida em que ela tem uma finalidade social, em que ela possa também contribuir para o bem-estar, para o progresso da sociedade”.
Além disso, o ex-assessor do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional recorda que já existe legislação que permite o arrendamento compulsivo, como o Regime Jurídico do Arrendamento Urbano — entretanto atualizado em 2016 — , que desde 1985 prevê a possibilidade de posse administrativa por parte das câmaras municipais de casas que estão arrendadas em que os senhores não realizam obras, obrigando-os a fazê-lo a cobrar-lhes esse serviço.
“Essa legislação existe há muitos anos, foi alvo de muita contestação nos tribunais, por parte de senhorios, e foi sempre considerada constitucional”, explica, admitindo que “uma coisa é a uma câmara municipal fazer obras na casa que pertence a alguém e depois solicitar a cobrança dessas despesas, outra coisa diferente é tomar posse para arrendar, ou seja, para obrigar a pessoa a tolerar a presença de um terceiro numa casa que é sua”.
Além disso, o Regime da Reabilitação Urbana, datado de 2009, já previa desde uma atualização de 2019, a situação de arrendamento forçado no seu artigo 59.º, tal como o artigo 161.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.
No entender de Miguel Prata Roque, a questão em causa — e o que motivou maior polémica — centra-se no objeto da medida: os prédios devolutos. De acordo com uma lei datada de 2006, “considera-se devoluto o prédio urbano ou a fracção autónoma que durante um ano se encontre desocupada, sendo indícios de desocupação a inexistência de contratos em vigor com empresas de telecomunicações, de fornecimento de água, gás e electricidade e a inexistência de facturação relativa a consumos de água, gás, electricidade e telecomunicações”.
“Não é o facto de eu comprar uma casa e ter essa casa que só utilizo uma vez por ano ou que só lá vou de dois em dois anos que torna essa casa sujeita a este regime do Governo”
A mais recente atualização a este diploma, feita em 2019, abrange ainda este conceito a prédios onde se verifique “a existência cumulativa de consumos baixos de água e eletricidade, considerando-se como tal os consumos cuja faturação relativa não exceda, em cada ano, consumos superiores a 7 m3, para a água, e de 35 kWh, para a eletricidade”, assim como “a situação de desocupação do imóvel, atestada por vistoria realizada (...)”.
“Não é o facto de eu comprar uma casa e ter essa casa que só utilizo uma vez por ano ou que só lá vou de dois em dois anos que torna essa casa sujeita a este regime do Governo”, frisa Prata Roque, acrescentando que o projeto “não faz referência a prédios não utilizados”. Resumindo, nem todos os prédios com parca utilização são devolutos, mas todos os prédios devolutos têm parca (ou nenhuma) utilização.
O que está em causa então, explica o constitucionalista, é uma “discussão ideológica” e não necessariamente constitucional. “Se o objetivo é aplicar só a prédios devolutos, parece-me que a razoabilidade, ou seja, a justa medida da restrição, está logo à partida bastante bastante protegida — porque o próprio conceito de prédio devoluto já vem restringir muito quais são as casas que podem ser não alvo desse regime”, defende.
“Desde que a pessoa ceda essa casa a um familiar ou que utilize essa com algum grau de habitualidade, a norma dificilmente se lhe aplicará”
No entanto, Prata Roque não descarta que tal medida vá afetar bastantes proprietários, especialmente aqueles que compram casa com uma lógica de aforro. “Há muita gente hoje que tem dinheiro disponível, e como esse dinheiro no banco não rende, compra uma casa na expectativa especulativa de que a casa se valorize com a passagem do tempo”, afirma, dando o exemplo de alguém que compra um imóvel com a pretensão de vendê-lo na velhice para suportar os custos no fim de vida.
Essas pessoas, diz “serão eventualmente prejudicadas”, mas, no seu entender, é uma questão “fácil de resolver”. “Desde que essa pessoa ceda essa casa a um familiar ou que utilize essa com algum grau de habitualidade, a norma dificilmente se lhe aplicará”, aconselha.
Face à potencial contestação da constitucionalidade desta medida, o professor da FDUL recorda que há duas hipóteses em cima da mesa.
Na primeira, tendo o Governo maioria absoluta na Assembleia da República, a lei deverá passar; todavia, “um décimo dos deputados, ou seja, 23, pode requerer fiscalização da constitucionalidade da norma” ao Tribunal Constitucional. No entanto, esta opção parece ser inviável por dois motivos. Primeiro, porque tal “não inviabiliza a entrada em vigor imediata do diploma” após aprovação por maioria. “O Tribunal Constitucional muitas vezes demora um ano, um ano e meio, para decidir a fiscalização sucessiva abstrata, o que significa que estaríamos vários meses, se não alguns anos, com a norma em vigor”, explica Prata Roque.
Além disso, essa fiscalização sucessiva depende em quase todos os cenários do assentimento do PSD. De momento apenas a Iniciativa Liberal e o Chega manifestaram vontade de potencialmente requerer essa fiscalização sucessiva, mas os dois partidos juntos só chegam aos 20 deputados e não é crível que recebam apoio à esquerda. “Isto passaria sempre por uma decisão do PSD”, adianta Prata Roque.
“É normal que o Presidente da República também queira que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre essa eventual inconstitucionalidade".
A outra hipótese, bem mais tangível, passa pela atuação do Presidente da República, que “também pode requerer a fiscalização preventiva antes da lei entrar em vigor. Na sua opinião, Miguel Prata Roque tem “quase a certeza” que Marcelo Rebelo de Sousa o vai fazer, “tendo em conta a postura que tem adotado recentemente”. “O professor Marcelo Rebelo de Sousa neste segundo mandato mudou a estratégia que tinha no primeiro, em que nunca enviava diplomas ao Tribunal Constitucional. Agora envia sempre que há uma lei que causa dúvidas relativamente à constitucionalidade”, justifica o professor da FDUL.
É por isso que, “face a este burburinho“ causado pelo arrendamento forçado, “é normal que o Presidente da República também queira que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre essa eventual inconstitucionalidade".
Arrendamento forçado já existe, mas ninguém “tem coragem para aplicá-lo”
Quer seja uma medida constitucional ou não, há ainda uma outra questão em cima da mesa: é se o Estado é sequer capaz de implementar um plano desta natureza, já que mais de um em cada 10 alojamentos em Portugal está desocupado.
Segundo os Censos de 2021, dos 5.970.677 ”alojamentos familiares clássicos que constituíam o parque habitacional” de Portugal nesse ano, 723.215 alojamentos estavam vagos, 12,1% do total. De acordo com a terminologia utilizada no estudo, é considerado vago o “alojamento familiar desocupado e que está disponível para venda, arrendamento, demolição ou outra situação no momento de referência”.
"Tenho muitas dúvidas que a questão dos arrendamentos feitos obrigatoriamente tenha um impacto real na resolução do problema da habitação. (...) Não nos podemos esquecer que temos um Estado, que é o maior proprietário do país, que mal conhece o seu próprio património."
Destes, 348.097 foram comunicados como estando vagos, mas disponíveis “para venda ou arrendamento”, sendo que os outros 375.118 estavam vagos “por outros motivos”, não especificados. Pode assumir-se ser necessário estabelecer uma margem de erro, já que o conceito de “alojamento vago” usado neste estudo pode não corresponder exatamente ao de “prédio devoluto” que está na lei.
“Eu tenho muitas dúvidas que a questão dos arrendamentos feitos obrigatoriamente tenha um impacto real na resolução do problema da habitação”, comenta José Diogo Marques, advogado associado da Cuatrecasas e com especialização em imobiliário e urbanismo. “Não nos podemos esquecer que temos um Estado, que é o maior proprietário do país, que mal conhece o seu próprio património. Tenho alguma dificuldade em perceber como é que esse mesmo Estado vai conseguir perceber em que situação estão os imóveis devolutos e vai ter meios para conseguir implementar esta obrigatoriedade. Tenho sérias dúvidas que isso seja exequível”, afirma.
De resto, a apresentação do plano Mais Habitação foi omissa quanto à forma como o Governo vai implementar a medida, tal como a própria proposta já disponibilizada, não se sabendo que instrumentos o Estado vai utilizar para visar os proprietários.
Miguel Prata Roque lembra que “o decreto-lei que fixa o regime dos prédios devolutos determina que as câmaras devem fazer um levantamento anual de quais são os prédios devolutos na sua circunscrição”. Ou seja, “há já um dever de existir esse levantamento”, até porque “autarquias de proximidade é que têm capacidade para saber se determinado prédio tem uma casa com tijolos nas janelas e está vedada ou não”. Agora, outra questão é se “as câmaras municipais cumprem essa função”, sublinha.
“Não se percebe muito bem como é que o Estado quer fazer uma política de habitação através de leis de âmbito nacional e não contar muito com os municípios quanto à forma como essas leis e medidas vão ser implementadas.”
O papel que o poder municipal pode dar ao central para fazer esta verificação desemboca noutra das críticas que têm sido levantadas ao Governo, nomeadamente pelos próprios autarcas. “Ao fim de sete anos de inação, de propostas vãs, de promessas nunca concretizadas, de medidas legislativas inócuas, eis que o Governo, sem ouvir as autarquias, decidiu avocar, por confisco, a política de habitação”, comunicou Rui Moreira, tendo mais recentemente acusado o executivo de "centralismo absoluto".
Para José Diogo Marques, os municípios são “os grandes desaparecidos em combate” no que toca ao programa Mais Habitação. “Não se percebe muito bem como é que o Estado quer fazer uma política de habitação através de leis de âmbito nacional e não contar muito com os municípios quanto à forma como essas leis e medidas vão ser implementadas”, atira, frisando que, sem municípios, o Estado “não tem como ajustar as necessidades às medidas”.
Além disso, o advogado realça que o arrendamento forçado nunca poderá ser uma solução viável para este problema, já que, apesar de estar previsto na lei há mais de 10 anos, “nunca ninguém conseguiu nem teve coragem para aplicar isso”, já que “é inaplicável na prática” devido, entre outros fatores, à morosidade dos tribunais.
Paralelamente, Miguel Prata Roque refere que os critérios aplicados para implementado o arrendamento forçado “podem ser controlados e que podem ser impugnados em tribunal". “Por exemplo, se uma casa minha estiver nessas listas de prédios devolutos que as câmaras municipais devem manter, eu posso — e já podia fazer isso antes do Governo tomar estas decisões — ir a um tribunal administrativo e pedir ao tribunal que condene a Câmara Municipal a retirar esse prédio da lista de prédios devolutos. Portanto, os proprietários têm sempre a possibilidade de contestar e impugnar, quer perante o próprio Governo, quer perante a Câmara Municipal, quer nos tribunais”, lembra.
“Parece que não se pensou completamente em todos os efeitos colaterais que vão resultar destas medidas e da sua aplicabilidade”
É por isso que, para José Diogo Marques, medidas como esta não são suficientes para resolver o problema da habitação em Portugal. “O Governo confrontou-se com uma realidade que é inequívoca, de que há uma crise séria de habitação — e que, aliás, não se limita a Portugal —, e decidiu tomar as medidas que fossem mais rapidamente implementáveis”, começa por dizer o advogado. “A ideia que me dá, olhando para as medidas, é que se fez uma espécie de brainstorming de 'coisas que podem fazer com que se aumente a oferta, coisas que podem fazer reduzir a procura’, e dessa lista depois resultou este conjunto de medidas”, continua.
O problema, a seu ver, é que, mesmo que haja “algum impacto na resolução do problema da habitação”, à primeira vista, “parece que não se pensou completamente em todos os efeitos colaterais que vão resultar destas medidas e da sua aplicabilidade”. Para que o arrendamento forçado pudesse ser uma opção exequível, a seu ver, seria necessária “uma reforma da administração, do Estado, do modo como funcionam os tribunais”. “Sem isso, quaisquer medidas que se tomem vão ser um pouco como pensos rápidos”, conclui.
Comentários