Manuel Nota abre caminho por uma estrada de areia na zona de Chuiba, na periferia de Pemba, ao encontro de mais uma família de deslocados da violência armada em Cabo Delgado.

Ao longe, ao lado de um frondoso cajueiro, avista-se uma habitação precária, mistura de barro, madeira, capim, plásticos e chapas, que começou por ser refúgio de 14 pessoas em dezembro de 2019.

Mas o intensificar das incursões de rebeldes armados - a cujo terror o grupo 'jihdiasta' Estado Islâmico se associou - e dos confrontos com militares moçambicanos pôs mais gente em fuga e hoje abrigam-se ali 30 pessoas num espaço mínimo e sem condições.

"Claro que estamos a ter muito trabalho por causa dos deslocados que não param de entrar na cidade de Pemba. Como em qualquer outro distrito. Cabo Delgado acabou virando casa de acolhimento de deslocados", descreve Manuel Nota, diretor em Pemba da organização humanitária católica Cáritas.

Os apelos obrigam a um desdobramento permanente: "Temos deslocados em tudo o que é lado e temos um grande desafio para tentar responder às necessidades que são infinitas", alerta.

"As poucas organizações humanitárias que estão a operar nesta província não estão a conseguir dar conta do recado" e as razões estão à vista: as mesmas armas que puseram 250.000 pessoas em fuga obrigaram missões de apoio a recuar, cenário entretanto agravado pelas restrições associadas à covid-19.

À sombra da mangueira está a família de Vicente Tiago, 61 anos, a maioria jovens e crianças, algumas a balbuciar as primeiras palavras ao cirandar no meio da terra, entre um fogareiro, tachos e panelas.

"Sofreram muito essas minhas filhas", diz, recordando que uma tinha oito meses em dezembro, quando fugiu ao colo de Vicente e da mulher com outros quatro filhos após os ataques a Muidumbe, aldeia 200 quilómetros a norte de Pemba.

"Era magra demais quando chegámos", descreve, sendo que, apesar de recuperar peso, não está livre de riscos.

"Existe uma subnutrição elevada" entre os deslocados, diz Manuel Nota.

"O aspeto físico mostra que estão a passar por dificuldades sérias de alimentação", refreando o uso da palavra fome, preferindo dizer que "o que tem sido dado não é suficiente".

"Nós damos um 'kit' de ração para 30 dias, mas acaba por não cobrir o mês inteiro, porque as pessoas fazem uso daquela comida para pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar", explica.

Para cada grupo de cinco pessoas, o 'kit' contém 25 quilos de arroz, 25 quilos de farinha, cinco litros de óleo, 10 quilos de feijão, dois quilos de sal e quatro quilos de açúcar.

Vicente Tiago olha para os sacos que recebeu há pouco dias e deixa claro que, tal como nos meses anteriores, não vão chegar para 30 dias.

"Não dá. E quando acaba só temos o dinheiro daquela venda", diz, ao apontar para uma banca à beira da estrada onde Bertina Marcelina, 19 anos, uma das raparigas da casa, criou um negócio de produção e venda de bebidas caseiras.

Vender uma garrafinha significa acesso a um pedaço de arroz.

"Quando ela recebe 50 ou 100 meticais corremos para a loja", descreve, pois pode ser a porção que salva o dia - e "quem come primeiro são as crianças, Elas choram. Um adulto não chora", ou pelo menos não o mostra.

A fuga pela sobrevivência é um encontro marcado com a insegurança alimentar, porque "as pessoas saem dos seus locais, deixam os seus celeiros lá e deslocam-se para outros distritos onde não há alimentação" para todos, explica Manuel Nota.

Vicente Tiago sabe do que se fala: ele vivia como camponês em Muidumbe e quando teve de fugir dos insurgentes que lhe destruíram a aldeia deixou para trás dois hectares de machambas (hortas).

Nas terras que agora ocupa em Chuiba, ao lado da habitação, plantou mandioqueiras e feijoeiros que já crescem, mas nada que se compare ao que tinha.

Em Muidumbe, até o milho ficou por apanhar, mas na altura só se pensava em fugir dos tiros.

"Corremos para o mato e ao amanhecer para outra aldeia", com a roupa do corpo e o desejo de dormir sem sobressaltos, o que só encontraram em Pemba.

Não tardou até quase toda a restante família se juntar.

Além da comida, outra necessidade são cobertores, diz Manuel Nota, pois "há muita gente a dormir ao relento por não haver espaço, nem tendas", para todos, tal como acontece na casa de Vicente Tiago.

Parte dos 30 dorme no exterior, no chão coberto por esteiras ou tecidos, com plásticos esticados em estacas como única proteção, enquanto no interior cada centímetro está ocupado.

"Ontem tirámos uma cobra cá de dentro", diz Vicente.

O sol já vai alto e hoje há uma panela de arroz ao lume que há de servir para matar a fome a todos, mas os sacos do 'kit' alimentar esvaziam-se depressa e Bertina Marcelina volta para a banca à beira da estrada de areia.

Com duas filhas ao colo fica à espera de clientes da bebida "feita de açúcar e folhas de chá", enquanto desabafa sobre a sua vida, forçada a mudar-se para uma terra estranha.

"Lá tinha amigos, ia à escola e as crianças tinham o que comer. Mas hoje está difícil", descreve, sem encontrar alternativa, porque regressar a Muidumbe está fora de questão.

Pelo menos por enquanto, porque "teria de continuar a fugir, com as crianças".

"Precisamos unir forças para responder a esta problemática", diz o diretor da Cáritas que intensificou o trabalho de construir projetos para submeter a financiadores.

Desde fevereiro já deram ajuda a mais de 5.000 famílias em diferentes pontos de Cabo Delgado, mas a maré de deslocados persiste, porque o conflito continua.

*Por Luís Fonseca (texto) e Ricardo Franco (foto), da agência Lusa

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