Houve mais gente a utilizar os autocarros expresso do que os comboios de longo curso e regionais em 2023: 51% dos passageiros viajaram sobre rodas, enquanto os restantes foram sobre carris. Foi a primeira vez desde pelo menos 2011 que houve mais gente a usar um transporte coletivo por estrada do que sobre carris para se deslocarem pelo menos 50 quilómetros, revela a análise estatística da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) ao transporte terrestre de longa distância em Portugal. Os números são consequência das políticas públicas para a mobilidade nas últimas décadas.
Em 2023, também foi batido o máximo de passageiros nestes meios de transporte: foram vendidos um total de 32,5 milhões de bilhetes de longa distância. A culpa é do autocarro, que mais do que duplicou o número de utilizadores desde 2019 e soube responder ao aumento da procura, ao ponto de, também pela primeira vez, ter conseguido ter oferecido mais lugares por quilómetro do que o comboio. Nos comboios, a subida do número de passageiros foi marginal e o número de lugares disponíveis até foi mais baixo do que no ano anterior à pandemia – no serviço regional ficaram de fora os dados das linhas do Vouga, Coimbra e Alentejo por as distâncias médias por serviço serem inferiores a 50 quilómetros.
A AMT comparou o comboio com o autocarro nos eixos onde ambas as opções estão disponíveis: de Lisboa para Porto, Faro, Guarda, Évora e Beja; do Porto para Guarda e Valença; e ainda de Coimbra para Guarda. Em quase todas as rotas, os autocarros expresso já conseguem oferecer mais lugares todos os dias do que o comboio, apesar de um comboio, numa só viagem, conseguir transportar duas a seis vezes mais passageiros do que os autocarros.
O transporte rodoviário, no entanto, tem ao dispor duas ou três vias por sentido nas autoestradas construídas nos últimos 50 anos. Tem mais flexibilidade e capacidade para ajustar o número de partidas à procura esperada, além de ser mais fácil conseguir autocarros do que comboios. Ainda na semana passada, a FlixBus anunciou que terá mais de 80 autocarros por dia e por sentido entre Lisboa e Porto na véspera do Natal e do Ano Novo. Em média, um autocarro sai a cada 20 minutos; na realidade, há horas em que se verificam sete partidas, frequência que se aproxima de um serviço de metropolitano em Lisboa ou no Porto. Às deslocações da FlixBus ainda é necessário somar os serviços da Rede Expressos (grupo Barraqueiro), que até 2020 controlava o mercado rodoviário de longa distância e que se mexeu perante a chegada da concorrência
O transporte ferroviário, por outro lado, percorre linhas com mais de 100 anos e que têm sido, sobretudo, modernizadas e eletrificadas, não propriamente ampliadas. Por exemplo, de Lisboa para o Porto, o comboio segue na Linha do Norte, cujo nível de utilização está em torno dos 90%, por conta do convívio dos comboios de longo curso com serviços suburbanos, regionais, interregionais e ainda mercadorias. Em quase toda a linha há apenas uma via por sentido, sendo uma espécie de “Estrada Nacional 1” dos caminhos-de-ferro. Para se aumentar a capacidade das deslocações ferroviárias entre Lisboa e Porto, há mais de 35 anos que se fala na construção de uma nova linha. Optou-se por modernizar a linha já existente o que não resolveu o potencial de atrasos nas viagens tendo em conta a mistura de serviços e de velocidade ao longo de 336 quilómetros.
Nos restantes percursos analisados pela AMT, domina a via única e só é possível ultrapassar comboios nas estações. A falta de capacidade e de desempenho nas linhas impede que os comboios possam explorar, por muitos quilómetros, a velocidade máxima de 200 ou 220 km/h (Intercidades e Alfa Pendular, respetivamente), acabando por ter um tempo de viagem semelhante ou mesmo pior do que um autocarro expresso, que não pode andar a mais de 100 km/h nas autoestradas.
A estatal CP é a única empresa no mercado e até agora apenas a B-Rail, do grupo Barraqueiro, apresentou uma proposta para concorrer no mercado do longo curso com viagens no eixo Lisboa-Porto e a partidas também de Braga e de Faro. A candidatura foi chumbada pela AMT (https://www.amt-autoridade.pt/media/4310/nota_b_rail.pdf) e apenas serão autorizados novos serviços quando houver nova linha entre Lisboa e Porto – os primeiros 71 quilómetros, entre Porto e Oiã, estarão prontos entre 2030 e 2031.
Preços divididos
O relatório da AMT calcula que fica mais barato para o utilizador andar de autocarro do que de comboio nos oito percursos analisados: nos expressos, são 4,8 cêntimos por passageiro/quilómetro em todos os eixos analisados; nos comboios de longo curso, o montante varia entre 5,5 e 7,3 cêntimos por passageiro/quilómetro. A estimativa é feita a partir da divisão entre as receitas e os passageiros por quilómetro. Estes custos, no entanto, deixam de fora as tarifas dinâmicas aplicadas pelas empresas rodoviárias e ainda as promoções que a CP aplica nos bilhetes dos comboios de longo curso comprados com pelo menos cinco dias de antecedência.
Impossível de medir, por ser subjetiva, é a sensação de conforto superior no comboio em relação ao autocarro: há mais espaço entre os bancos, é possível abrir completamente um computador portátil durante a viagem e dá para levantar e sentar durante a viagem para ir à casa de banho ou aceder ao bar a bordo. Nos autocarros, por outro lado, a internet é muito mais disponível pela proximidade das estradas às torres móveis, o que não acontece com o comboio. É uma opção mais convidativa para o lazer.
Do lado da operação, o comboio, graças à sua escala, custa menos aos operadores do que o autocarro: somadas as despesas com a infraestrutura e a energia por cada 1000 passageiros por quilómetro, o comboio tem um custo unitário de 20,4 face aos 32,1 do autocarro. Na ferrovia, o custo de infraestrutura é a taxa por quilómetro (tarifa de utilização da infraestrutura); na rodovia, é o preço das portagens nas autoestradas. As despesas com energia dependem do consumo de eletricidade por quilómetro e o custo do kWh (comboio) ou do consumo de gasóleo por quilómetro (autocarro).
No capítulo energético, ficou de fora a contabilização das externalidades das viagens. No entanto, é possível dar pistas sobre as emissões de dióxido de carbono por passageiro para uma viagem entre Lisboa e Porto: 3,29 Kg/CO2 para o comboio e 8,5 Kg/CO2 para o autocarro, segundo uma estimativa da associação ambientalista Zero apresentada ao Dinheiro Vivo em setembro de 2023.
Apesar dos discursos para apostar mais nos transportes coletivos, as viagens de carro representam mais de 87% das deslocações em Portugal. Nem os custos e emissões superiores por passageiro demovem os portugueses dos automóveis. “A predominância da utilização do transporte individual, mesmo com custos mais elevados para o utilizador sugere que o preço não é o principal fator na transferência modal, existindo outras razões a considerar, designadamente, a ligação direta ao destino, a rapidez, o conforto/comodidade, a frequência, entre outros”, assim remata o relatório da AMT.
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