“Efetivamente achamos incompreensível que tenham sido confrontados com o recente anúncio da criação de um grupo de trabalho destinado a estabelecer medidas que representam uma alteração radical do paradigma existente no nosso processo penal, sem que essas medidas constassem sequer do programa do Governo discutido no Parlamento”, criticou Luís Menezes Leitão, discursando na cerimónia de abertura do ano judicial, em Lisboa.
O recém-eleito bastonário, que toma posse em 14 de janeiro, indicou que nalguns casos as medidas anunciadas “colidem mesmo com preceitos constitucionais”.
“Lançou-se no país a ideia de que a maior incidência da criminalidade em certas áreas se resolve com a criação de tribunais especiais, o que a Constituição proíbe precisamente pela experiência dos tribunais plenários de triste memória”, comentou.
Quanto ao anúncio da criação de um sistema de delação premiada que, disse, o primeiro-ministro justificou com o facto de ainda não haver acusações no processo BES ao contrário da celeridade do caso Madoff (EUA), Menezes Leitão diz constatar que, mais uma vez, as alterações à legislação processual penal em Portugal são feitas “à boleia dos casos mediáticos”.
Lembrou a propósito que houve uma reforma do processo penal resultante do processo Casa Pia e agora, “pelos vistos” prepara-se uma reforma do processo penal resultante do caso BES, inspirada nos `plea bargaining´ americanos.
“É preocupante este deslumbramento recente pelo sistema penal norte-americano, sabendo-se que se trata de um país tão longe da tradição penal portuguesa que 30 dos seus 50 estados e o próprio Governo Federal aplicam a pena de morte, que o `Supreme Court´ considerou sucessivamente não constituir uma punição cruel e desumana”, atirou.
Em sua opinião, importar do sistema norte-americano a delação premiada representaria um “grande retrocesso” no sistema penal português, constituindo um “enorme atentado aos direitos de defesa”, levando a que a investigação criminal seja substituída por uma mera recolha de confissões de arrependidos.
“Confissões essas que, sublinhe-se, são obtidas a troco de uma negociação em que o prémio é atribuído àquele que primeiro denuncia os restantes, transformando-se assim o processo penal numa teoria dos jogos em que o mais condenado acaba por ser, não o mais culpado, mas aquele que melhor soube resolver o dilema do prisioneiro”, explicou.
Tal, de acordo com o bastonário dos advogados, “atenta totalmente contra a presunção de inocência”, prevista na Constituição, colidindo ainda com o preceito constitucional que considera nulas todas as provas obtidas através de coação.
“Ora, o que é a delação premiada senão uma forma de coação moral sobre os arguidos?”, questionou.
Menezes Leitão expressou também “grande preocupação com notícias não desmentidas” de que estariam a ser dadas instruções aos magistrados do Ministério Público (MP) para não pedirem a absolvição dos arguidos nos casos de terrorismo, corrupção, homicídio ou com "repercussão social ou mediática", mesmo perante situações de ausência de prova em julgamento.
“A regra do nosso processo penal é a de que toda a prova deve ser produzida em julgamento, pelo que a única atitude compatível com a de uma magistratura, como entre nós é o MP, é defender a absolvição dos arguidos quando manifestamente não foi feita prova contra eles em sede de julgamento.”, contrapôs.
O bastonário que vai suceder a Guilherme Figueiredo à frente da Ordem dos Advogados defendeu, por outro lado, o pleno regresso dos tribunais às comunidades que delas foram privados em 2014, considerando serem “manifestamente insuficientes os ajustamentos ao mapa judiciário que foram entretanto realizados”.
Na sua perspetiva, o Estado não pode desaparecer do território nacional e os tribunais são um elemento importante da presença do Estado enquanto fornecedor do serviço público de justiça.
Menezes Leitão defendeu que a opção constante do programa do Governo de privilegiar os julgados de paz e os meios alternativos de resolução de litígios “não é manifestamente a melhor”.
Observou que os julgados de paz não são tribunais judiciais, pelo que não devem assumir as competências dos tribunais judiciais, especialmente em matérias tão sensíveis como a regulação das responsabilidades parentais, pelo que o regresso dos tribunais às comunidades de onde foram retirados deveria ser a prioridade.
O bastonário alertou ainda para a situação precária dos advogados que prestam apoio judiciário, lembrando que as suas remunerações não são atualizadas há 15 anos, com a agravante de a atualização anual prevista na lei não estar a ser cumprida.
Abordou ainda os problemas relacionados com a Caixa de Previdência dos Advogados, que os obriga a pagar mensalmente 251,38 euros para exercer a profissão, mesmo quando não têm qualquer rendimento.
Menezes Leitão lamentou que Portugal tenha “um grande défice de execução das leis”, quando executá-las é “a nobre missão de todos aqueles que trabalham na justiça, sejam magistrados, advogados, solicitadores, agentes de execução e oficiais de justiça”.
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