Surgido na China e propagado um pouco por todo o mundo, o caráter extremo do novo coronavírus levou à implementação de medidas extremas para combatê-lo. O exemplo foi dado por Wuhan, cidade onde surgiu a maleita e cujo encerramento foi decretado a 22 de janeiro, sendo seguido pelo resto do globo, com os países a impor medidas de confinamento para abrandar os avanços da pandemia.

No entanto, houve uma região situada perto do epicentro da crise que optou por uma estratégia diferente para conter a Covid-19.

Situada a menos de 200 quilómetros da China, a ilha de Taiwan não obrigou os seus cidadãos ao confinamento e, apesar de não ter tido o tempo de preparação que outros estados tiveram por ser dos primeiros a ser atingido pelo novo coronavírus, é hoje também um dos com menor número de infeções.

De acordo com os dados mais recentes, Taiwan conta apenas com 395 casos, seis mortes e 166 recuperações. Compare-se com os números dos seus vizinhos: a China tem 83760 casos e 4636 mortes oficialmente registadas, a Coreia do Sul tem 10635 infeções e 230 óbitos e o Japão regista 9231 casos e 190 vítimas mortais

Os valores de Taiwan contrariam em muito as previsões feitas no início da pandemia, que apontavam-na como uma das regiões potencialmente mais afetados pela Covid-19, tendo em conta a sua densidade populacional — tem perto de 24 milhões de habitantes — e a sua proximidade à China.

É que se 850 mil cidadãos taiwaneses vivem e outros 404 mil trabalham na China, é necessário também recordar os laços sociais e culturais que unem os dois, tendo esta pandemia tido início nas vésperas do Ano Novo Chinês, quando se dão viagens de larga escala entre as duas regiões. Como exemplo destas migrações, registe-se que em 2019, 2.71 milhões de visitantes da China viajaram a Taiwan.

Dos escombros da SARS, um guia para o futuro

Há uma forte causa para este sucesso de Taiwan no combate à Covid-19: a epidemia da SARS (Síndrome respiratória aguda grave) que afetou a região em 2003 e vitimou 181 pessoas.

"A epidemia que Taiwan sofreu em 2003 ensinou-nos uma lição: prevenção antecipada é muito importante”, diz Vivia Chang ao SAPO24. Representante do Centro Económico e Cultural de Taipei em Portugal, a diplomata, com uma carreira de vários anos no Brasil e no Paraguai, explicou que depois desse evento, a região passou a estar preparada para qualquer eventualidade.

"A crise da SARS levou-nos a aprimorar a governação nesta matéria, através da aprovação de leis de prevenção e controlo de epidemias, estrutura organizacional, protocolo para vigilância de epidemias ou medidas de rastreamento na fronteira e reserva de equipamentos médicos", apontaram as autoridades taiwanesas numa entrevista à Agência Lusa.

Desde medidores de temperatura nos aeroportos até racionamento de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde, Taiwan já tinha um certo grau de preparação para enfrentar a Covid-19. No entanto, as autoridades aperceberam-se de imediato que seria preciso redobrar esforços para não deixar o surto fugir ao seu controlo.

O SAPO24 recebeu um documento com a estratégia oficial do governo taiwanês para a Covid-19 desde que o surto foi descoberto. Logo a partir de 31 de dezembro de 2019, quando foi notificado dos casos de pneumonia atípica detetados em Wuhan — não se sabendo, na altura, se se tratavam de infeções causadas por um coronavírus — o governo de Taiwan estabeleceu controlos fronteiriços e foi enviada uma equipa para a China para investigação.

Foi também colocando em funcionamento um Centro de Comando Central da Epidemia a 20 de janeiro — ou seja, ainda antes de Wuhan ser colocada sob confinamento —, sendo este composto por todos os ministérios, assim como por elementos do setor académico, médico e empresarial, público e privado. Liderado pelo ministro da Saúde Shi-Chung Chen, o grupo integrou também o próprio vice-presidente de Taiwan, o Dr. Chen Chien-jen, ele próprio um epidemiologista.

“Quando surgiu o primeiro caso, montámos de imediato o centro de comando de combate à Covid-19. Este está a coordenar todos os ministérios”, que “fazem do seu único objetivo combater a doença” indica Vivia Chang.

Ao todo, segundo o que foi contabilizado num artigo recentemente publicado no Journal of American Medical Association (Jama), foram aplicadas 124 medidas numa fase em que o resto do mundo ainda não percebia o risco de epidemia. Jason Wang, professor da Universidade de Stanford e coautor deste estudo, disse à Agência France-Presse que, desta maneira, Taiwan ganhou tempo para acelerar a produção de máscaras e testes. "Duas semanas é muito tempo quando o vírus está se a espalhar exponencialmente", justificou.

Estas são algumas das mais relevantes:

  • O controlo de passageiros já era uma realidade desde 2003 — estando vigente a medição de temperatura nos aeroportos e os inquéritos a casos suspeitos de doença, por exemplo —, mas mal se soube de casos suspeitos de doença em Wuhan, as autoridades taiwanesas começaram a fazer inspeções a bordo de aviões provenientes dessa cidade chinesa.
  • Com a dimensão da epidemia a crescer, Taiwan proibiu a entrada de viajantes estrangeiros provenientes de Wuhan a 23 de janeiro e  da China, Hong-Kong e Macau a 7 de fevereiro, estendendo depois essa proibição a viajantes estrangeiros de todo o mundo no dia 19 de março. 
  • Já para os cidadãos taiwaneses ou residentes no território a regressar (entre outras exceções), foi requerido que carregassem consigo uma licença e que preenchessem um formulário de saúde, sendo depois obrigados — independentemente de testarem positivo ou não para o vírus — a cumprir quarentena de 14 dias. O mesmo foi requerido para quem tivesse tido contacto com casos suspeitos.
  • As autoridades de saúde locais têm feito um acompanhamento diário a quem está a fazer isolamento em casa, certificando-se que as pessoas não desenvolvem sintomas. Se sim, são encaminhadas para o hospital. De acordo com a Reuters, a 27 de março havia 86 mil pessoas a cumprir quarentena.
  • Para além disso, desde 1 de março que o governo e as instâncias locais de Taiwan têm vigente um programa de apoio a quem está a cumprir quarentena. Este inclui a criação de centros Covid, a prestação de serviços ao domicílio — como consultas médicas, recolha do lixo e entrega de refeições e alimentos  — e a atribuição de um subsídio de 1000 novos dólares taiwaneses (aproximadamente 31 euros).
  • Foi ainda incrementado o apoio social, tendo o Governo feito um planeamento habitacional para pessoas sem residência. Parte desta estratégia inclui a colaboração com hotéis que disponham os seus quartos para o cumprimento da quarentena obrigatória, podendo também receber até 1000 novos dólares taiwaneses por quarto.
  • No início da pandemia, Taiwan contava com uma capacidade de análise de 520 casos por dia, feita com o trabalho de 12 laboratórios. Esse número subiu para 3200 casos por dia a partir de 34 laboratórios.
  • Neste momento, Taiwan conta com 52 hospitais e centros de saúde designados especificamente para lidar com casos graves de infeção, havendo outros 165 disponibilizados para tratar casos ligeiros a moderados. Tal como em Portugal, foram criados circuitos de triagem para os diferentes casos.
Taiwan
créditos: Sam Yeh / AFP

Setor público e privado unidos

Outra das causas fundamentais para o sucesso da estratégia coordenada de Taiwan no combate à Covid-19 foi a união de esforços entre os setores público e privado, e não houve área onde isso tenha ficado mais patente que na produção de máscaras.

  • No que toca à disponibilização de máscaras para a população, as autoridades começaram a fazer racionamento logo no início do ano e aumentaram a capacidade de produção;
  • Segundo Vivia Chang, foi criado um “grupo nacional” porque “produção de máscaras em Taiwan rondava menos de dois milhões por dia” no início da pandemia. Com os empresários a colaborar, a capacidade produtora tornou-se “10 vezes maior”;
  • Para a produção de máscaras foram alocados não só fundos governamentais, como também membros das forças armadas. Também a população encarcerada foi colocada a produzir máscaras;
  • Com o agravamento da pandemia, o governo taiwanês proibiu a exportação de máscaras a 24 de janeiro, mas em março pôs fim a essa medida, tendo como objetivo fomentar relações diplomáticas;
  • Neste momento, os cidadãos de Taiwan têm acesso a várias lojas designadas para fazer compras semanais de um número limitado de máscaras, não só em farmácias e máquinas de vendas, como também para compras online. Também álcool gel foi colocado à venda nestes espaços;

Para além da produção de máscaras, Vivia Chang denota que o setor privado está a ajudar de outras maneiras. “Muitas empresas estão a fazer voluntariamente entregas de comida a pessoas em quarentena, a ajudar a fazer operações de higienização dos locais públicos”, ou até mesmo a desenvolver apps que contribuem para manter distanciamento social, adianta.

A tecnologia de ponta ao serviço da saúde 

A estratégia de Taiwan não dependeu única e exclusivamente de uma boa preparação. Para ir enfrentando os desafios que se vieram acumulando, a região recorreu ao uso de Inteligência Artificial e 'big data' [análise de dados maciça], para identificação e colocação em quarentena de casos suspeitos ou alertas em tempo real durante visitas clínicas, com base no historial de viagem e nos sintomas dos pacientes.

Vivia Chang começou por revelar ao SAPO24 que o sistema de saúde de Taiwan se baseia num seguro de saúde acessível com cobertura de 99% da população. Parte da lógica deste sistema consiste “num cartão com chips que podemos usar para obter todos os serviços hospitalares, medicamentos e também dados de doenças”.

A utilização de tecnologia ao serviço das autoridades tem sido um dos pilares desde o início da pandemia em Taiwan:

  • Uma das vantagens que as autoridades tiveram na fase inicial da pandemia esteve no facto de os dados de saúde dos cidadãos estarem integrados num sistema que os cruza com outros departamentos, como da imigração, permitindo aceder aos seus históricos de viagem também;
  • Desta forma, os responsáveis conseguiram desde logo compreender se quem se dirigia a um estabelecimento de saúde com um quadro clínico compatível com a Covid-19  — febre, tosse ou dificuldades respiratórias — tinha viajado 14 dias antes, pedindo aos casos suspeitos para se apresentarem às autoridades de saúde;
  • Este mecanismo foi particularmente importante, tendo em conta que a representante de Taiwan disse ao SAPO24 que pelo menos 340 dos 395 casos de Covid-19 identificados foram importados;
  • Para além disso, foi ainda aplicada uma metodologia de retestagem. As autoridades analisaram os dados e chamaram utentes com sintomas respiratórios e que tinham dado negativo em testes para gripes severas para serem retestados, desta feita à Covid-19;
  • Outra medida de controlo nas entradas exerceu-se a partir de um sistema implementado a 16 de fevereiro, chamado “Entry Quarantine System”. Este consiste no registo de uma declaração de saúde e de entrada a partir de um Código QR no telemóvel, desde que se tenha uma operadora telefónica que também opere em Taiwan. O sistema permite acelerar a entrada, pois os visitantes podem preencher a declaração enquanto esperam, recebendo uma declaração de saúde por SMS que podem então apresentar aos agentes de imigração ao balcão.
  • Até Taiwan ter fechado as fronteiras, este sistema funcionava com dois potenciais desenlaces. Pessoas que não viajaram para áreas consideradas de alto risco receberam uma declaração de saúde via SMS, permitindo uma passagem mais rápida nos controlos fronteiriços. Quem tinha estado em regiões tidas como de risco foi submetido a quarentena em casa;
  • Vivia Chang diz que tem tem sido usada tecnologia para fazer “rastreamento dos contactos”. “As pessoas podem infectar-se sem saber, mas através de um sistema com base de dados de Inteligência Artificial, sabemos com quem é o infectado contactou. Então, vamos fazendo todos os testes aos contactos dos infetados, mitigando a influência da infeção ao máximo”, indica.

Para além destas medidas, uma outra estratégia consiste na “Cerca Digital”, um sistema de vigilância de pessoas em quarentena feito a partir da triangulação dos sinais de GPS dos seus telemóveis, numa colaboração entre as autoridades e as operadoras telefónicas. 

Se a pessoa sair do seu espaço designado — ou se desligar o dispositivo — o seu telemóvel dará um alerta e a pessoa receberá uma mensagem. A polícia é então enviada ao local e, se a pessoa estiver a violar o confinamento obrigatório, poderá ser detida ou receber uma multa até um milhão de novos dólares taiwaneses (aproximadamente 31 mil euros).

A medida acarreta alguma controvérsia, colocando em cima da mesa questões como o direito à privacidade. Vivia Chang admite-o. “No início também tivemos dúvidas, porque temos um país democrático”, confessa a representante de Taipei, adiantando que “todas as medidas têm de ser proporcionais, para respeitar direitos humanos e privacidade”.

No entanto, a responsável defende que não só a medida tem sido bem recebida pelo público — e as sondagens, segundo a revista Quartz, comprovam-no —, como está apenas a ser utilizada “para monitorização dos casos suspeitos, que são uma minoria”. “Garantimos ao resto, a grande maioria, que pode gozar a sua vida, a sua liberdade. As pessoas pensam que é correto por causa disso também”, indica Vivia Chang.

A justificação oficial do Governo para a utilização da “Cerca Digital” prende-se com a necessidade criar um sistema sem sobrecarregar funcionários numa fase em que as pessoas estavam a regressar das suas viagens por ocasião do Ano Novo Chinês, indicando também que pretende desativá-lo depois da pandemia acabar.

Vida nas ruas em contra-ciclo com o resto do mundo

É algo surreal ver fotografias do quotidiano taiwanês, precisamente porque pouco parece ter mudado durante estes meses de pandemia.

“Em Taiwan as pessoas são muito disciplinadas e têm uma certa autogovernação. O Governo não proibiu que se fizessem reuniões, não colocámos esses limites, mas as pessoas sabem a gravidade da doença e eles próprios não as fazem”, segundo Vivia Chang.

Com a situação aparentemente controlada às suas portas e limitada a poucos casos, Taiwan manteve praticamente todos os setores de atividade em funcionamento, apesar de nas rotinas de trabalho já constar a divisão de equipas em espelho para que não tenham contacto entre si.

O controlo apertado da progressão da pandemia permitiu que sociedade taiwanesa não parasse devido à Covid-19, o que não significa que as autoridades não tenham implementado medidas de distanciamento social e de saúde pública, sendo publicadas recomendações quanto aos transportes públicos, espaços comerciais e eventos públicos.

Autocarros e restaurantes com separadores de plástico, estádios à porta fechada ou aeroportos quase desertos são exemplos de uma normalidade afetada, mas longe do que aconteceu em muitos outros pontos do mundo.

As escolas, por exemplo, não foram fechadas, funcionando com algumas aulas suspensas e com equipamentos médicos colocados à disposição dos funcionários, sendo obrigatório fazer controlos de saúde nos alunos e proceder a desinfeções constantes. Segundo os dados recolhidos pelo estudo do JAMA, foram distribuídos 6,45 milhões de máscaras cirúrgicas pelas escolas primárias e secundárias, assim como 25 mil medidores de temperatura e 84 mil litros de desinfetante para as mãos.

Também aqui se atesta o papel cívico dos taiwaneses. Um diretor de uma escola disse à NBC News que mais de 95% dos pais dos alunos medem a temperatura aos seus filhos e enviam os resultados antes das crianças chegarem às aulas. “Independentemente do que o governo faz, as pessoas têm de ter responsabilidade pela sua própria saúde”, ressalvou.

Aqui, revela Vivia Chang, entra também o papel do Governo nas suas ações institucionais, com conferências de imprensa diárias com efeitos pedagógicos, assim como com o trabalho concertado das autoridades para limitar campanhas de desinformação. “A transparência também é muito importante, com isso, ganha-se força e confiança com a população, que passa a ter vontade de cooperar”, considera a responsável.

Com este esforço generalizado, conseguiu-se minimizar também os impactos económicos da crise, mas não completamente. Apesar de não ter encerrado os seus setores, Taiwan ainda assim não escapou à vaga de recessão económica a varrer o mundo, razão pela qual foi anunciado um pacote de estímulos no valor de 1,05 biliões (aproximadamente 32 mil milhões de euros), tendo o banco central de Taiwan revisto o crescimento anual em baixa, de 2,57% para 1,92%.

“O que sofre muito em Taiwan é o setor dos transportes, da aviação, do turismo. Por isso o impacto é muito grande”, aponta Vivia Chang, dizendo estarem a ser implementadas “iniciativas que estimulam o comércio”.

Taiwan
créditos: EPA/TAIWAN PRESIDENTIAL OFFICE

Duas Chinas, uma dor de cabeça diplomática

Os resultados de Taiwan são tão mais impressionantes quando se tem em conta que este estado não faz parte da Organização Mundial de Saúde (OMS) e que tem mantido um diferendo com esta instituição desde o início do surto.

Para compreender o papel e a postura de Taiwan durante esta pandemia, é necessário compreender qual o seu contexto no tabuleiro geopolítico asiático. É porque o que separa Taiwan da China não é apenas um estreito marítimo, mas um cisma que se deu em meados do século XX.

Em 1949 deu-se o ponto de viragem da Guerra Civil Chinesa, conflito que opôs os comunistas de Mao Tse-Tung aos nacionalistas do Kuomintang, o partido que governava o país. Os comunistas venceram, fundando a República Popular da China (RPC), o que levou os nacionalistas a refugiar-se em Taiwan, continuando a governar nessa ilha com a denominação de República da China (RC) e criando, de facto, um novo estado.

Hoje existem “duas Chinas”: a RPC, regime governado pelo Partido Comunista Chinês e que controla o território continental a partir de Pequim, e a República da China (RC), estado durante décadas governado autoritariamente em lei marcial, mas que se tornou uma democracia partidária em 1987 e cuja capital é Taipei. Taiwan, inclusive, tem a sua própria constituição, bandeira, moeda e forças armadas.

Apesar do conflito já não ter cariz bélico, nunca foi resolvido e a situação diplomática entre os dois estados mantém-se em suspenso. Desde 1949 que o governo de Pequim não reconhece o executivo de Taipei, considerando-o uma província sua e fazendo parte da sua doutrina oficial o princípio de “uma só China”. Já em Taiwan, existem duas correntes políticas: uma que pugna por uma eventual reunificação em que seria o regime taiwanês a governar toda a China e outra que defende uma independência de facto. Ambas são incompatíveis com política chinesa.

Dotado de maior poder e influência a nível internacional, o regime chinês mantém o esforço há várias décadas de impedir que a restante comunidade internacional reconheça Taiwan, ameaçando com retaliações. Como tal, Taipei não só não possui embaixadas de facto pelo mundo — apesar de manter relações com grande parte dos estados ocidentais através de “escritórios oficiais de representação económica e cultural” — como é barrada de participar na maioria das organizações mundiais e eventos à escala global, o que inclui as Nações Unidas.

Membro fundador da ONU, a RC viu-se expulsa da organização em 1971, sendo substituída pela RPC. Desde então, o regime de Taiwan deixou de se fazer representar nas restantes organizações pertencentes às Nações Unidas, incluindo a Organização Mundial de Saúde, devido ao poder de veto da China no Conselho de Segurança da instituição.

A ilha Formosa, no entanto, foi convidada a colaborar com a OMS a partir 2009, ainda que com o estatuto de observador (pode assistir, mas não participar) e sob o nome “Taipei chinesa”, mas tal relação foi interrompida em 2016. Esse foi o ano em que Tsai Ing-wen, a atual presidente de Taiwan, foi eleita. Assumidamente pró-independência, a governante (entretanto reeleita no início deste ano) foi mal recebida pela China, que voltou a pressionar a organização a prescindir de Taiwan.

De resto, tanto a anterior diretora-geral da OMS — Margaret Chan, proveniente de Hong Kong — como o atual responsável  — Tedros Adhanom Ghebreyesus, da Etiópia — foram duas figuras fortemente apoiadas por Pequim para assumirem o cargo.

Desde o início da pandemia que o estado taiwanês tem-se queixado que a OMS, pressionada pelo governo chinês, tem ignorado os seus pedidos e apelos, colocando os seus cidadãos em risco, apesar de tanto a organização como o país vizinho negarem essa aparente falta de colaboração.

Num volte face este sábado, responsáveis da Organização Mundial de Saúde elogiaram a resposta de Taiwan à pandemia da covid-19, demarcando a cooperação técnica das questões políticas que determinam a sua exclusão da Assembleia Mundial de Saúde.

Esta é a cronologia de eventos:

  • De acordo com a Agência Reuters, Chou Jih-haw, chefe do Centro para Controlo de Doenças da ilha, disse numa conferência de imprensa a 24 de março que esta tinha pedido desde logo informações no dia 31 de dezembro de 2020 quanto ao surto inicial em Wuhan, perguntando, inclusive, se havia dados quanto a uma possível transmissão entre humanos;
  • O pedido foi tornado público numa publicação datada de 11 de abril da conta oficial do Ministério da Saúde taiwanês no Twitter. O tweet expõe um email onde as autoridades taiwanesas oficializam a requisição de informações à OMS relativamente a casos descobertos no mercado de Wuhan — os quais as autoridades chinesas disseram não serem relacionados com o vírus de tipo SARS e que não havia transmissão entre humanos. "Perguntámos se havia possibilidade de transmissão entre seres humanos. Perguntamos e reforçamos a importância desse ponto", explicaram as autoridades taiwanesas em entrevista à Agência Lusa, acrescentando que a OMS confirmou ter recebido a carta, mas não respondeu;
  • A resposta da OMS a estas acusações não se fez tardar, apontando que “não houve menção neste e-mail sobre a transmissão entre humanos", segundo a Agência France-Press, acrescentando que pediram mais informações quanto a essa possibilidade, mas que não obtiveram resposta;
  • Taipei, em declarações enviadas à agência Deutsche Welle, retorquiu que a “OMS não levou a informação providenciada por Taiwan a sério”, considerando ainda que tal ação “atrasou a resposta global à pandemia da Covid-19”. “Nós aprendemos que vírus como este podem ser facilmente transmitidos entre pessoas, por isso decidimos informá-los. Mas a OMS fez ouvidos de mercador”, lamenta a nota;
  • Apesar do discurso tranquilizador da China, as autoridades taiwanesas optaram por enviar os seus técnicos a Wuhan a 16 de janeiro. O vizinho permitiu-lhes a entrada, mas não os deixou observar pacientes ou entrar no mercado onde se acredita que o surto tenha surgido. Ainda assim tal foi suficiente para acreditarem que o caso era bem mais grave do que inicialmente reportado e que a transmissão entre humanos era uma possibilidade. A China viria a confirmá-lo oficialmente quatro dias depois;
  • No entanto, escreve a revista The Nation que, a 22 de janeiro, e apesar de já ter em curso uma resposta eficaz ao surto, Taiwan não foi convidada para a reunião de emergência da OMS, onde vários representantes optaram por não declarar de imediato o novo coronavírus como uma emergência de saúde global.
  • O estado taiwanês denunciou também em fevereiro que a OMS referiu-se repetidamente a Taiwan nas suas comunicações enquanto “Taiwan, China”, “município de Taipei” ou “Taipei e arredores”, chegando até a comunicar os seus números em conjunto com os da China.
  • Da parte da China, uma porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros do país invocou a doutrina chinesa, defendendo que “os membros da OMS têm de ser estados soberanos”. A representante acrescentou ainda que “não houve problemas com a participação de Taiwan em eventos relevantes da OMS”, considerando que a ilha e os EUA estão a fazer “manipulação política sob o pretexto da pandemia”;
  • Um episódio particularmente comprometedor deu-se quando Yvonne Tong, jornalista da emissora pública RTHK, de Hong Kong, numa entrevista por Skype a Bruce Aylward, consultor da OMS, lhe perguntou se a organização reconsideraria aceitar Taiwan. Nas várias tentativas de Tong em colocar esta questão, Aylward disse que não a ouviu, pediu para passar à frente, desligou a chamada, e, quando a retomou, disse que já tinha falado o suficiente sobre a “China” e sobre “as diferentes regiões da China”, despedindo-se de seguida;
  • O antagonismo entre a OMS e Taiwan escalou na semana passada, quando o diretor-geral da organização, Tedros Adhanom Ghebreyesus, acusou publicamente o ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan de estar vinculado a uma campanha contra ele, alegando que, desde o início do surto do novo coronavírus, foi atacado pessoalmente, incluindo através de ameaças de morte e insultos racistas. O responsável, porém, não forneceu exemplos dessa vinculação;
  • Taiwan reagiu através de um comunicado, dizendo ser uma “nação madura e altamente sofisticada e nunca instigaria ataques pessoais ao diretor-geral da OMS, muito menos expressar sentimentos racistas.” O ministério dos Negócios Estrangeiros exprimiu ainda o seu “forte desagrado” pelas declarações, exigindo a Ghebreyesus corrigisse as suas “alegações sem bases” e pedisse desculpas;
  • A presidente de Taiwan, por seu lado, optou por um discurso mais apaziguador. “Durante anos, temos sido excluídos de organizações internacionais, e sabemos melhor do que ninguém a sensação de ser discriminado e isolado”, escreveu Tsai Ing-wen, pedindo a Ghebreyesus para “aguentar a pressão da China e vir a Taiwan para ver com os seus olhos o esforço do país contra a Covid-19” e aperceber-se que “os cidadãos taiwaneses são as verdadeiras vítimas de tratamento injusto”;
  • A reação oficial da China a esta polémica fez-se saber através do Escritório dos Assuntos Taiwaneses, que acusou Taiwan de “usar o vírus sem escrúpulos para obter independência, ao atacar venenosamente a OMS e os seus responsáveis”;
  • No entanto, a retórica amainou mais recentemente, com a OMS a louvar publicamente a resposta de Taiwan à pandemia da Covid-19. “As autoridades de saúde de Taiwan e o seu centro de controlo de doenças merecem ser elogiados. Montaram um programa de resposta de saúde muito bom e isso vê-se nos números”, afirmou o diretor do programa de emergências sanitárias da OMS, Michael Ryan, numa conferência de imprensa de acompanhamento da pandemia.
  • Na mesma comunicação, a OMS chamou Steven Solomon, do seu gabinete legal, para esclarecer que as escolhas sobre a participação nessa Assembleia são uma prerrogativa dos estados-membros. “O pessoal da OMS não tem mandato para decidir esses assuntos. O pessoal da OMS trabalha tecnicamente e operacionalmente para cumprir o mandato da OMS, que é coordenar, reunir, aconselhar e ajudar a responder” à pandemia de Covid-19, afirmou.
  • Relativamente a este assunto, Vivia Chang lamenta que a exclusão de Taiwan da OMS tenha limitado “obtenção de informações necessárias” e impossibilitado “um canal direto de intercâmbio”. “O povo taiwanês é tão trabalhador para a sua sobrevivência e tão lutador para a sua democracia que merece ter este direito humano, da igualdade de participar nestas assembleias mundiais de saúde e nas conferências técnicas”, defende.

Volvidos quase quatro meses desde o início da pandemia, Taiwan pode vir surgir com um reconhecimento internacional renovado, inclusive podendo vir a ter um seu estatuto de observador na OMS restabelecido.

A própria China, recorde-se, inicialmente louvada pela sua abordagem à pandemia — inclusive pela OMS —, tem sido cada vez mais criticada por aparentemente ter ocultado o real impacto da Covid-19 e responsabilizada pela propagação global do novo coronavírus.

Em contrapartida, Taiwan começou a granjear elogios pela sua estratégia, e está agora empenhada numa campanha diplomática denominada “Taiwan pode ajudar e está a ajudar”. “Temos de aumentar a cooperação, e isso significa partilhar experiências e equipamentos, e trabalhar juntos para desenvolver tratamentos e vacinas”, comunicou a presidente de Taiwan numa declaração.

Parte desses esforços têm sido exercidos através da exportação de dez milhões de máscaras, tendo Taiwan enviado sete milhões para a Europa, outros dois milhões para os Estados Unidos e o restante para os poucos países com quem mantém laços diplomáticos formais.

Em resposta, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, fez um agradecimento público e os Estados Unidos demonstraram interesse em estreitar laços com Taiwan, apesar da desaprovação da China. As autoridades dos Estados Unidos e de Taiwan reuniram no mês passado para discutir formas de aumentar a participação da ilha no sistema mundial de saúde, provocando a fúria de Pequim, que se opõe a todos os contactos oficiais entre Washington e Taipei.

A ligação de Taiwan ao gigante norte-americano, aliás, poderá marcar um novo patamar nas relações entre a China e Taiwan, principalmente porque parte da justificação que Donald Trump deu para anunciar o corte de financiamento à OMS veio da acusação da organização inicialmente não ter dado seguimento aos conselhos de Taipei.

Taiwan
créditos: Sam Yeh / AFP

O dia de amanhã

Uma “ilha de resistência”, endurecida por “séculos de dificuldades” que levaram a sua sociedade “a abordar, adaptar-se e a sobreviver a circunstâncias árduas”. É assim que Tsai Ing-wen descreve Taiwan num artigo assinado para a revista Time sobre a forma como lidou com a pandemia.

O sucesso até agora obtido, defende, “não é coincidência”, sendo uma súmula dos dados acima descritos. No entanto, ainda não pode respirar fundo. Alguns especialistas defendem que Taiwan ainda pode vir a enfrentar desafios de maior se o número de casos aumentar. Há quem defenda que as viagens também devem ser proibidas aos cidadãos nacionais, ou que o número de testes tem de aumentar. Os avisos foram feitos em março, mas existe a possibilidade do sistema montado ser sujeito a maior stress.

Apesar de não ter havido “muitas diferenças no dia-a-dia da população”, se tudo correr bem, os próximos passos terão de ser dados “com muita cautela”, diz Vivia Chang, que fala numa possível abertura da fronteira e do regresso das pessoas à sua vida normal. “A recuperação vai ser imediata comparando com muitas outras áreas, tivemos sorte”, diz.

Quanto ao resto do mundo a representante partilha da mesma opinião que a sua presidente, que finaliza o texto dizendo esperar que Taiwan consiga partilhar com o mundo que “a capacidade humana para ultrapassar obstáculos juntos é ilimitada”. Vivia Chang diz que Portugal e Taiwan podem ultrapassar  “o mal da pandemia” de “mãos dadas”.