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SANS FRONTIÈRES

Meu Deus, mas ele é bonito, o Vacinador. Ou, pelo menos, foi assim que Sarah Angelina Acland – Angie, como gostava de ser chamada – o tornou na sua fotografia. Quando se olha para ele, o rosto de Haffkine é largo, aberto, afavelmente compreensivo. Todavia, em junho de 1899, quando a fotografia foi tirada, tornou-se magnífico: o inoculador de indianos aos milhões; o seu protetor em relação ao contágio mortal e, assim, Angie Acland fá-lo posar de perfil, tão cinzelado quanto possível, iluminado de uma forma heroica contra um fundo escuro. Agora, o seu aspeto é fino e atraente, e os seus olhos abertos projetam, para lá do enquadramento, uma inteligência viva. No entanto, se observarmos com um pouco mais de atenção, há algo mais que parece estar registado no retrato: uma timidez aprisionada em roupas de bom corte. A gabardina macia encontra-se aberta para revelar as lapelas de um casaco assertoado. O colarinho quebrado branco faz parte do guarda-roupa de um cavalheiro frivolamente superior. Ainda que dois anos antes tenha sido feito companheiro da Ordem do Império Indiano (CIE) na concessão de condecorações quando do Jubileu de Diamante da rainha Vitória, Waldemar Mordechai Wolff Haffkine, apesar de estar vestido impecavelmente, não é um cavalheiro frivolamente superior. É um bacteriologista experimental que trabalha muito, criador e ministrador de vacinas, não só contra a cólera, mas também contra a peste bubónica, pois a Peste Negra regressou para vaguear, em busca de presas, pelo universo moderno de eletricidade edisoniana e automóveis. Haffkine também é, com orgulho, um judeu de Odessa, e isso tem importância. Os perseguidores dos Judeus no século XIV acusavam-nos de envenenarem poços, de serem instigadores demoníacos da morte em massa, mas aqui estava um que, se o deixassem, inocularia o mundo contra ela.

Por isso, agora fora posto a circular nas altas instâncias da ciência e do governo britânicas que Waldemar Haffkine era um Judeu Bom e, mais, um homem admirável, um cientista cheio de virtude; o primeiro a criar uma vacina eficaz para os seres humanos contra infeções bacterianas mortais. (A varíola era viral.) Um judeu em quem se devia confiar, ademais, porque mostrara desde o início que não recomendaria nada que não tivesse testado já na sua pessoa. Por conseguinte, Haffkine fora o primeiro a ser inoculado, em 1892, com a vacina da cólera que criara no Instituto Pasteur. O desconforto fora mínimo: uma pequena ulceração local no ponto da inoculação, no seu flanco esquerdo; uma leve febre temporária; nada que suscitasse preocupações graves. Amigos russos residentes em Paris, sendo que nenhum deles era médico, ofereceram-se então para serem alvo da agulha e nenhum deles sofreu o que quer que fosse. Na Índia, Haffkine insistiu em que só fossem vacinados voluntários, o que complicou e abrandou a campanha, mas a adesão estrita à regra do voluntariado não impediu esforços de persuasão, sobretudo entre populações em cativeiro que tinham uma maior probabilidade de contrair doenças contagiosas: os reclusos da cadeia de Gaya, em Calcutá, e na de Byculla, em Bombaim; trabalhadores cules e apanhadores das plantações de chá de Assam; soldados nativos nos acantonamentos. Pessoas menos confinadas também se haviam oferecido como voluntárias, com frequência os mais pobres dos pobres que viviam nos bairros de lata de Calcutá e nos chawls de Bombaim. Os indigentes haviam sido aqueles que mais quisera convencer, uma vez que as suas habitações superlotadas eram ninhos de contágio. Por fim, os resultados haviam tido o êxito suficiente para que figuras importantes do governo do Raj – vice-reis e governadores – usassem as campanhas de vacinação como publicidade ao carácter benevo- lente do imperialismo médico britânico. Todavia, a nível mais local, a opinião estava longe de ser unânime. Não era difícil encontrar veteranos do Serviço Médico da Índia a resmungar acerca do «russo», que nem sequer era licenciado em medicina e tinha a presunção de lhes dizer que a sua obsessão com o saneamento não tinha nada a ver com o caso. O que importava que os micróbios tivessem sido revelados pelos microscópios? O que a cólera ensinara não era que as doenças se reproduziam na imundície, e que a eliminação desta, quer lavando-a com ácido carbólico e leite de cal, quer queimando os bens ou inclusive demolindo as habitações dos infetados, era a única forma segura de a erradicar? Quanto a informarem-se sobre a nova ciência da bacteriologia, tratava-se de um acervo de conhecimento estrangeiro, engendrado nos laboratórios de Paris e Berlim. Os doentes estavam a atafulhar as enfermarias dos pestíferos; os grandes entrepostos do comércio imperial encontravam-se fechados; não havia tempo a perder com especulações superficiais nem, sequer, muita vontade de aprender.

Pedro Moura e Susa Monteiro juntam-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 21 de fevereiro, uma quarta-feira, pelas 21h00. Consigo trazem  "Mensagem", de Fernando Pessoa, numa edição da RTP/Levoir.

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Haffkine não era surdo aos murmúrios. O seu trabalho na Índia fora sempre um combate árduo, sobretudo para arranjar fundos e espaço adequado para a investigação e produção de vacinas. O governo desejava que tivesse êxito, autorizou as inoculações e permitiu que as administrações locais o apoiassem. No entanto, de qualquer modo, esses desejos nunca eram acompanhados por quantias adequadas de rupias; com toda a certeza, não a uma escala que estivesse à altura das suas ambições de criar um «laboratório bacteriológico na Índia, para dar formação, nessa ciência, a jovens funcionários médicos» ou serviços móveis de inoculação que estivessem prontos a deslocar-se para onde a necessidade fosse mais imperiosa. Aqueles que tomavam as decisões em Calcutá consideravam utópico o interesse aparente de Haffkine pela vacinação em massa, em vez de reservar o tratamento aos oficiais ingleses e soldados nativos dos quais dependia a segurança do Raj.

Só que, em 1899, ao fim de dez anos de financiamento oficial insignificante, sendo o seu trabalho apenas possível devido ao mecenato esclarecido de patrocinadores provenientes de comunidades minoritárias – parses, muçulmanos ismaelitas e judeus –, Haffkine parecia ter conseguido, por fim, obter reconhecimento oficial. Um laboratório para investigação da cólera iria ser criado em Parel, no sul de Bombaim, e seria seu diretor-chefe. Se um instituto nacional, abrangendo todo o território indiano, para o estudo de doenças infecciosas perigosas fosse além da fase de proposta, o seu nome seria sugerido como o chefe mais provável. Os aplausos choviam, vindos inclusive das fileiras tradicionais do Serviço Médico Indiano (IMS). O coronel-cirurgião W. G. King escreveu-lhe de Madrasta dizendo que, como reconhecimento pelo serviço inestimável que Haffkine prestara, recomendara que a vacina deveria, doravante, ser chamada «Haffkinina».

Ainda assim, e com alguma razão, Haffkine suspeitava de oposição latente. Apesar de todos os louvores públicos, havia veteranos do Serviço Médico Indiano que partilhavam a opinião de Leonard Rogers, um perito do IMS em veneno de cobra marinha, de que Haffkine era «um bacteriologista estrangeiro sem qualificações médicas dignas de registo». A sua «aptidão» para diretor de qualquer tipo de instituto era sistematicamente questionada, mesmo por alguns dos que trabalhavam consigo. Dizia-se que uma comissão oficial, criada em 1898, para inquirir as origens da pandemia de peste indiana e avaliar as medidas tomadas para a conter e tratar as suas vítimas teria dúvidas em relação às provas apresentadas por Haffkine em apoio da eficácia da sua vacina. A licença de seis meses que o trouxera de novo a Inglaterra destinava-se, em parte, a recuperar a sua saúde debilitada, mas também a mobilizar apoio dos grandes vultos da ciência e medicina vitorianas.

Na Grã-Bretanha, tinha defensores famosos. Joseph Lister cantava-lhe louvores; houve um encontro com a entusiasmante Florence Nightingale, já quase com oitenta anos, apesar de, como Haffkine reparou, estar gravemente doente. Quatro anos antes, em dezembro de 1895, o pai de Angie, Sir Henry Wentworth Acland, mais tarde Regius Professor de Medicina e Fisiologia em Oxford, ficara espantado, ao ouvir a conferência de Haffkine, apresentado como «um assistente do Dr. Pasteur», no salão de exames do Conselho Conjunto dos Royal Colleges of Physicians and Surgeons, sobre a eficácia provada da sua vacina contra a cólera.8 O próprio Robert Koch dera-lhe um apoio público entusiasmado. Se um tal salva-vidas tivesse estado disponível quando a doença grassara na cidade universitária em 1854! Nessa época, Sir Henry também fora médico-chefe na Radcliffe Infirmary e tomara a seu cargo mobilizar os recursos da cidade e da universidade contra a expansão da doença. Criara um «acampamento» para os infetados num campo em Jericho (a parte mais pobre da cidade, é claro), assegurando-se em simultâneo, uma vez que não era carcereiro, de que os que se encontravam em quarentena tinham alimentação e alojamento decentes. Pensou que, em virtude disso, o surto fora contido. Dois anos mais tarde, Acland publicara o seu relato desse regime sanitário, bem como um mapa pormenorizado da Oxford infetada.

Quando foi enviado para o Egito em 1883 para combater um surto de cólera, o irmão mais novo de Angie, Theodore, o único médico entre os sete filhos de Acland, exportou o regime de inspeção e quarentena do pai para o vale do Nilo, perante a hostilidade oficial a quaisquer medidas que pudessem parar o tráfego anglo-indiano através do Canal do Suez. Foi criado um vasto acampamento para os infetados e suspeitos de infeção, mas não era a Jericho de Oxford. Guardas militares patrulhavam o acampamento do deserto com ordens para disparar contra os que fugissem. Havia instruções estritas sobre lavagem regular e intensa com uma solução de ácido carbólico, mas a dureza do regime sanitário quase provocou uma revolta dos nativos. É improvável que os campos de vigilância, segregação e desinfeção de Theodore Acland conciliassem os últimos súbditos árabes do império com as bênçãos do domínio imperial. Uma década depois, nos anos 1890, Theodore prestou serviço como oficial médico principal do exército anglo-sudanês, que tentava manter a paz na região do Alto Nilo, perigosamente inflamada pelas pregações da jiade e à beira da rebelião comandada pelo messiânico Mahdi. Os campos de confinamento, ou as proibições do hajj a Meca, eram um convite aos problemas. Por outro lado, caso se deixasse prosseguir sem controlo, a cólera podia dizimar uma parte do exército anglo-sudanês ainda antes de este defrontar sequer o seu inimigo no campo de batalha. Se uma campanha de vacinação pudesse evitar a necessidade do tipo de medidas que afastavam as populações nativas, seria melhor para todos.

Logo, havia todo o tipo de razões para os Aclands, pai, filho e filha, se tornarem amigos do tímido Waldemar Haffkine. Muito entusiasmado com a modéstia e eloquência do jovem cientista, Sir Henry respondeu segundo a forma costumeira da hospitalidade britânica: um convite para ficar na sua casa de Broad Street, em Oxford, que era um local famoso. Vitorianos eminentes – Gladstone, Lorde Salisbury, o cardeal Newman – tinham todos bebericado das chávenas de Acland e pousado as cabeças nas suas almofadas. Haffkine, cuja impressão dos britânicos fora, até então, formada com base nas maneiras empertigadas daqueles que o haviam mantido a uma certa distância na sociedade de Calcutá, ficou desarmado perante o calor da admiração dos Aclands. «A sua presença no Salão de Exames quando da minha conferência», escreveu Haffkine em resposta, com um deleite pueril, «é algo que considero o maior cumprimento... Nunca vi Oxford». Iria «aceitar o seu amável convite com grande prazer» só que, primeiro, tinha de honrar compromissos anteriores em Londres. Quando por fim chegou a casa dos Aclands, encontrou-se no meio de um chá de convidados que, apesar de inevitavelmente pedantes, haviam sido escolhidos com ponderação pelo seu anfitrião. Havia veteranos da Índia, incluindo Sir William Hunter, o estatista social que documentara inexoravelmente as horríveis fomes indianas da década de 1860, e o entomologista Frederick Dixey, que andara a mostrar as faculdades e bibliotecas a Haffkine. Como acontece nessas ocasiões, mal as apresentações terminaram, os presentes conversaram tão alegremente uns com os outros enquanto o bolo com sementes aromáticas circulava, que nem repararam quando o convidado de honra caiu ao chão. Angie ajudou Haffkine a levantar-se. Apesar da medicação regular com quinino e arsénico, um acesso de malária, contraída enquanto andara a inocular trabalhadores contra a cólera nas plantações de Assam, acometera-o na sala de estar, em Oxford. Com um constrangimento doloroso, foi metido na cama num dos quartos de Acland, sendo-lhe ordenado que ficasse lá até se sentir melhor. Na semana seguinte, Haffkine escreveu a Sir Henry pedindo desculpa por se ter tornado «um fardo» para o seu anfitrião.

Livro: "Corpos Estranhos – Pandemias, Vacinas e a Saúde das Nações"

Autor: Simon Schama

Editora: Temas & Debates

Data de Lançamento: 8 de fevereiro de 2024

Preço: € 24,90

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Agora, a hospitalidade de Acland raiava a adoção. Consciente de que a estada de Haffkine em Oxford estivera longe de ser ideal,
Sir Henry convidou-o a juntar-se à família em meados de janeiro, em Killerton, a propriedade do seu irmão mais velho, em Devon. Acland deve ter feito a promessa de cavalgadas (Haffkine podia fazê-lo), caminhadas pelo campo e conversas animadas durante o jantar, uma vez que o convidado respondeu, «Estou encantado com a ideia de ver essa vida inglesa que descreve que já me agrada tanto (através de livros) sem nunca a ter visto pessoalmente». No entanto, não queria ouvir falar, de modo algum, em Sir Henry ir encontrar-se consigo na estação de Exeter – «incomodar-me-ia muito vê-lo cansado». E também estava «fora de questão pagar uma parte do meu bilhete» (como os Aclands haviam proposto). A estada de dois dias em Killerton foi um grande êxito, como era evidente. Apresentado tanto aos arrogantes como aos amantes da equitação, Haffkine foi aprovado no teste de aceitabilidade, que lhe granjeou, segundo Sir Henry, «opiniões maravilhosas» de todos – ou, pelo menos, todos os que interessavam – no condado. Waldemar estava, escreveu à sua filha, «ativo em mais obras de beneficência, na ciência, nas artes e em mais tarefas honestas do que qualquer outro homem que conheci até hoje». E escusado era dizer que tocava tanto violino como piano.

Nos clubes e messes da Índia britânica, a identidade não dissimulada de Haffkine como judeu continuava a alimentar as reservas dos veteranos do IMS. Um peixe fora de água; que não era um verdadeiro pukka; um espertalhão. Só que na Inglaterra, havia uma corrente de filossemitismo entre os bons e os grandes tanto da ciência como da cultura literária. Daniel Deronda, de George Eliot, era apenas uma das suas encarnações. Haffkine, tão bem-apessoado, tão altruísta, tão brilhante, inseria-se de uma forma perfeita no retrato idealizado de um herói judeu moderno. A biologia racial já se instalara no núcleo venenoso do antissemitismo moderno e tornara-se um lugar-comum defender, de novo, que os Judeus eram em si mesmos hospedeiros ambulantes de doenças infecciosas, sobretudo do tifo. O lixo judaico, afirmavam os antissemitas, matava, mas quando um judeu aparecia como alguém que comprovadamente vencera o contágio, podia ser enaltecido, em especial por admiradores gentios, como a refutação viva dessa difamação.

Haffkine recuperou o suficiente para regressar à Índia a tempo de testemunhar o surto, no outono de 1896, no interior dos chawls de Bombaim, de uma epidemia tão letal quanto a cólera, se não mais: a peste bubónica. Baseadas no seu êxito anterior, havia expectativas de que Haffkine pudesse produzir uma vacina comparável. E foi o que fez. Quando da sua segunda licença, na primavera de 1899, quase meio milhão de indianos havia sido inoculado contra a peste, mas a doença avançava mais depressa do que a campanha. Era necessário apoio governamental caso se quisesse evitar o pior e Haffkine não tinha certeza alguma de o ter.

Foi organizada uma campanha de persuasão por meio de conferências: na Royal Society, na London Hospital Medical School, um discurso no jantar anual dos «Antigos Alunos» do London Medical College e, importantíssimo, na faculdade de medicina militar em Netley. No meio deste programa sem interrupções, Haffkine teve o cuidado de ir visitar os Aclands, a Oxford, onde Sir Henry era agora um inválido frágil com apenas mais um ano de vida à sua frente. Angie transferira o seu estúdio, bem como o seu pai doente, da casa de Broad Street para uma propriedade mais tranquila em Boars Hill, a noroeste da cidade. Pseudomansões em enxaimel estavam a ser erguidas no subúrbio elegante, nomeadamente uma pertencente ao arqueólogo Sir Arthur Evans, que então se dedicava a um restauro muito colorido, de uma imaginação fantástica, das ruínas minoicas de Cnossos. Nesse verão de 1899, as brisas que sopravam de Tommy’s Heath eram desconfortavelmente frias, daí, talvez, a gabardina pesada de Haffkine, embora esse traje também estivesse de acordo com a visão que Angie tinha dele enquanto imagem do saber científico desinteressado. Numa segunda chapa, onde aparecem Haffkine e Sir Henry, o «antigo aluno» também está agasalhado para se proteger do frio de meados de junho. Sentado numa cadeira de vime, com um barrete de veludo na cabeça, Acland sorri, com um ar paternal, a Waldemar, que olha diretamente para a câmara de Angie enquanto segura um livro e alguns papéis, como se os dois tivessem acabado nesse momento (ou talvez estivessem prestes a começar) uma discussão animada sobre como vacinas fiáveis poderiam vir em socorro de um mundo cercado pelas pandemias.

Em junho de 1899, ninguém, na comunidade científica, apoiava Haffkine de uma forma mais apaixonada do que Joseph, agora Lorde, Lister. Com setenta e dois anos, jubilado da sua cátedra de cirurgia clínica no King’s College Hospital, Lister acompanhara a carreira de Haffkine com um interesse intenso desde que o conhecera em finais de 1892, pouco antes da partida do jovem para a Índia. Estivera presente na célebre palestra sobre a cólera, em 1895, e três anos depois, como presidente da Royal Society, escrevera a Haffkine, em Bombaim, que a sua capacidade de persuasão seria totalmente diferente se pudessem contar com a sua presença a ler a comunicação sobre a vacina da peste. Apoiando-se no convite, Haffkine pediu, e obteve, uma licença mais longa. A sua receção na Royal Society deu razão ao apoio da presidência da instituição. Assim, quando o eminente cientista Raphael Meldola pediu a Lister que fizesse o brinde a Haffkine num jantar dado em sua honra pelos Maccabaeans, em meados de junho, Lister aceitou de imediato. Fundados apenas um ano antes, os Maccabaeans eram uma «associação de socorros mútuos» destinada a ajudar, tanto em termos filantrópicos como educativos, a vaga que chegava de judeus pobres que fugiam das perseguições e da miséria na Zona de Assentamento russa. Os seus membros provinham da classe média e das profissões liberais: advogados como Herbert Bentwich, Israel Zangwill, o romancista e dramaturgo, e em especial, cientistas. Muitos dos seus membros foram dos primeiros sionistas.

Haffkine não viera ao Restaurante de St. James para falar sobre sionismo (em relação ao qual tinha reservas), nem iria narrar com muitos pormenores o seu longo percurso bacteriológico até à produção de vacinas. Deixou isso para o generoso resumo feito por Lister na sua apresentação. Tanto Lister como Haffkine centraram os seus comentários no contexto das coisas desagradáveis que estavam a ser ditas sobre os Judeus e das coisas desagradáveis que estavam a acontecer aos Judeus. Lister não se poupou a esforços para caracterizar Haffkine como «um homem honrado» por ter feito de si próprio o primeiro recetor humano da vacina da cólera e «pôr a sua vida em risco» enquanto trabalhava contra a cólera e a peste. Tudo isso, bem como os seus esforços incansáveis de persuasão junto de indianos que tinham desconfiança ou hostilidade em relação à vacinação, era a marca de um herói. Só que, então, Lister mudou de direção de uma forma que fez com que os Maccabaeans, sonolentos devido ao vinho do Porto, se endireitassem nas cadeiras. «Há alguns que invejam a sua capacidade e o seu êxito por pertencer à raça judaica. Sinto-me feliz ao dizer que, neste país, esses sentimentos ignóbeis não existem». Eram esperanças vãs do antigo aluno, mas provocaram uma explosão de aplausos, com alguns a baterem com as mãos nas mesas. Os Franceses, em contrapartida, estavam atolados num pre- conceito inadmissível. «Compadecemo-nos de Dreyfus», afirmou Lister, «e regozijamo-nos convosco perante a perspetiva da sua rápida libertação... lembramo-nos de que tivemos um primeiro-ministro [Disraeli] que era de sangue judeu puro... entre todas as coisas desprezíveis não há nada mais desprezível do que o ódio à raça judaica. A vossa é a mais nobre das raças da Terra...» E assim por diante. Soaram mais aplausos e vivas vibrantes antes de Haffkine se levantar.

Aqueles que o ouviam falar inglês – a sua terceira língua, depois do russo e do francês – ficavam surpreendidos amiúde com a eloquência de Haffkine, embora também se dissesse que falava devagar e de uma forma pensativa, como se estivesse a traduzir à medida que avançava. Todavia, o que tinha para dizer aos Maccabaeans era dramático, ao estilo retórico de uma representação que também era trágica. Embora estivesse satisfeito com a honra que estava a ser-lhe concedida, apesar de não ter voltado à Rússia desde há muitos anos, «as recordações das vicissitudes» dos judeus que lá se encontravam «e as condições de angústia e incerteza» em que viviam, à espera da próxima erupção de violência, nunca o tinham abandonado. Naquele preciso momento em que se encontravam a jantar no St. James, «milhões de judeus, na Polónia e na Rússia ocidental estavam a ser submetidos a uma política de extermínio bem calculada, bem planeada e levada a cabo de uma forma sistemática e ininterrupta». Preocupava-o que, por parte dos próprios judeus, parecesse não haver «um plano de resistência pré-concertado» aos danos físicos que, com toda a certeza, iriam enfrentar.

Haffkine passou da profecia sombria à história pessoal, descrevendo as imensas dificuldades que tivera, sobretudo no primeiro ano da vacina da cólera na Índia, em 1893. Foi apenas depois de lá estar que percebeu quão difícil era reunir pacientes em números significativos, em especial porque a cólera recuara nesse ano. Precisara não só de números bastante grandes de voluntários, mas também números iguais, com condições de vida semelhantes, de pessoas que recusassem a inoculação e, portanto, pudessem ser utilizadas como um controlo necessário. No entanto, mesmo quando conseguia encontrar esses grupos comparáveis, as pessoas mais pobres, as que tinham mais probabilidade de ser infetadas, eram também as que menos probabilidade tinham de se manter num local, tornando difícil a elaboração de relatórios de acompanhamento dos resultados. Deu-se conta de que, talvez, «a tarefa parecesse impossível», embora soubesse que também era impossível virar as costas ao projeto. Presa neste dilema, a sua mente caiu numa indecisão atormentada, tão amargamente dolorosa que o levou à beira do suicídio. «Na fadiga e perante o desespero em relação a algum dia ver o fim dessas ações tornar-se real, a imagem da morte apareceu-me como uma libertação bem-vinda; toda a criação à minha volta parecia ter exaurido tudo aquilo que sustenta normalmente um homem na sua atividade». Continuou a vacinar quando e onde podia, mas a solidão e um sentimento de ser estrangeiro, tanto para os britânicos como para os indianos, pressionava-o com uma força esmagadora. Aqueles que estava a tratar encontravam-se separados dele pela língua e hábitos culturais, «incapazes de me saudar com um único gesto de amizade ou aprovação» e, por isso, o seu coração e a sua mente voltaram para o lugar de onde viera. Paradoxalmente, o que o amparou nesses momentos de melancolia indiana foram as visões da Ucrânia judaica, «os aflitos das planícies do Dniepre, do Vístula, do Neman e do Danúbio» e «a perspetiva de um dia ser capaz de aliviar o sofrimento deles por meio de um único raio de esperança». Nesse momento do discurso, Haffkine virou-se diretamente para o velho Lister, que estava sentado a seu lado, e perguntou-lhe, como se conversassem, se, quando se haviam conhecido e muitas vezes depois disso, «no inesgotável espírito de ajuda» que com ele fora partilhado, Lister se lembrara «da raça a que pertenço». «Sim!», retrucou este, alto. Mais aplausos. E de novo, vindo de Lister, de uma forma ainda mais enfática: «SIM». Então, Haffkine, retomou, cheio de emoção, «concedeu-me uma recompensa que é a mais doce, a mais digna de orgulho que um homem pode receber alguma vez. Em simultâneo», prosseguiu, olhando para Lister, «pressagia, talvez de uma forma inconsciente, tempos melhores para o nosso povo, porque me parece que, ao prosseguirmos os nossos próprios ideais, esforçando-nos por fazer coisas que nos parecem certas que respondem às exigências mais íntimas da nossa natureza, também acontece que se gera um sentimento de aprovação naqueles com que entramos em contacto, nas nações que nos observam; parece-me que um tempo de conciliação, de afeto mútuo e de fraternidade entre os nossos povos e outras nações se torna não só possível, mas também uma realidade».

Eclodiu uma onda de vivas dos judeus que ouviam, envergando os seus fatos de cerimónia, mas antes de os aplausos admirados terem esmorecido, um dos convidados não judeus, o reverendo Charles Voysey, levantou-se abruptamente e afirmou que, quando ouvira dizer que iria jantar com «o querido Haffkine», a sua filha, acabada de regressar de Carachi, lhe ordenara que dissesse a Haffkine «que ele salvou a vida do meu marido».

Tudo isto – a profecia apocalíptica; o drama de desespero e quase suicídio; as visões de judeus indefesos na Ucrânia, perguntando-se quando o martelo do ódio voltaria a abater-se sobre eles – deve ter sido inesperado para os Maccabaeans. Mas isso foi apenas porque, nesse momento, sabiam pouco da verdadeira história de Waldemar Mordechai Wolff Haffkine.