"A cor dessa cidade sou euO canto dessa cidade é meuA cor dessa cidade sou euO canto dessa cidade é meu".

Quem não se recorda destes versos, que iniciam "O Canto da Cidade", disco de Daniela Mercury, que lhe deu o título de "a Rainha do Axé", e que celebra este ano trinta anos (sim, leu bem, trinta anos).

"'Feijão com Arroz' [1996] também fez 25 anos o ano passado. Essas comemorações fazem a gente passar pela vida e fazer um balanço. "O Canto da Cidade" é um marco do meu sucesso no Brasil e no mundo, de um novo género musical, que nem nome tinha, mas que veio a chamar-se de Axé. "O Canto da Cidade" veio juntar tudo o que estava a acontecer, todos os sucessos musicais de Salvador, a diversidade da música feita aí", contou em entrevista ao SAPO24, a poucos dias de regressar a Portugal, país do qual fala sempre com carinho.

A artista da Bahia, que tem nacionalidade portuguesa (filha do português António Fernando de Abreu Ferreira de Almeida, nome completo, como fez questão de dizer a dada altura da conversa), falou sobre o passado, como, por exemplo, a primeira vez que subiu em cima de um trio elétrico, em 1983, mas também do futuro. Porque, como canta, "o futuro não pode esperar".

"O trio elétrico ajudou-me a lidar com multidões, tive de fazer uma música forte, intensa, com muito volume. O trio deu-me a facilidade de dominar qualquer público. Posso pegar uma praça em Nova Iorque ou no Japão que não me aperto em lugar nenhum. O trio elétrico cria uma relação íntima com o público", recordou.

Ligação como aquela que fez tremer a Avenida Paulista, também há 30 anos, num concerto junto ao Museu de Arte de São Paulo (MASP), espetáculo que teve de ser interrompido porque a estrutura do museu e as obras de arte estavam em risco.

"Em 1992, já era uma artista que juntava 30 mil pessoas no nordeste, mas não sabia chegar em São Paulo e no Rio de Janeiro e mostrar o meu trabalho. Juntei a minha coragem e o meu dinheirinho, o pouco que tinha nessa época, peguei um ónibus e viajei dois mil quilómetros até à maior cidade da América Latina. No primeiro dia em São Paulo acabei na capa dos jornais, a media ficou curiosa para saber quem era a menina que tinha juntado 30 mil pessoas na Avenida Paulista, junto ao MASP."

"Rapunzel", "Nobre Vagabundo", "Ilê Pérola Negra" são outros temas de uma vasta e diversificada discografia, à qual se juntará, já no início de dezembro, um novo disco. "O álbum traz primavera, verão, músicas afirmativas, vibrantes", com temas que "falam desse momento e do futuro". "Ainda nem tinha dito isso aqui no Brasil", confessa. O título, que nos revela em primeira mão, também não.

Cantou “O Canto da Cidade" num trio elétrico na Avenida Paulista, em São Paulo, ao lado de Lula, depois da vitória nas eleições...

Na frente do MASP. Por coincidência, a vida levou-me, tantos anos depois, para o mesmo lugar. Só de falar me dá vontade de chorar. Não sabíamos que a polícia de São Paulo nos iria colocar justamente ali, podia ter colocado noutro lugar. Sê vê o sentido de tudo isso?

Além de "O Canto da Cidade", cantou também o hino nacional para a imensa multidão que festejava a vitória de Lula da Silva na Paulista. O que é que sentiu nesse momento?

[Emociona-se] Senti que tinha recuperado o meu país. Senti que a gente tinha segurado a democracia. Se tinha agarrado ela, como se ela fosse um tecido que se estava desfazendo. Tive aquela sensação de que aquela multidão era o tecido democrático brasileiro. Ali, na Paulista, estava representada parte da população progressista, democrática, que busca um país mais igualitário, para todos, não um país só para alguns. Depois de 30 anos, o Brasil volta a democratizar-se. Passei os últimos dois ou três envolvida em eleger Lula ou em eleger um democrata, porque no início não sabíamos se Lula se podia candidatar.

créditos: CAIO GUATELLI / AFP

Fez uma publicação onde pedia que lhe enviassem contactos de amigos e conhecidos que ainda não tinham decidido em quem votar. Tem ideia de quantos números recebeu e para quantos ligou? Como foram essas conversas?

Recebi mais de mil pedidos. Foi maravilhoso conversar, fiz uns 15 telefonemas. Não foram tantos para o número que recebi, mas cada telefonema demorava 40 minutos, 50 minutos, uma hora. Algumas pessoas também não quiseram conversar comigo. Teve um caso em que uma pessoa do lado de quem estava ao telefone falava 'não, não, não', dizendo o nome do outro candidato e não me deixando continuar. Mas fiquei muito feliz porque ainda assim consegui virar o voto de pessoas muito cultas... Eu estava cheia de argumentos.

"Esperei para saber que rumo o Brasil ia tomar. Fiz 60 músicas durante a pandemia, lancei algumas, mas não conseguia finalizar o álbum."

Mas não foi só no final da campanha que se envolveu, aliás já disse que se dedicou nos últimos anos à eleição de Lula. De que outras formas?

Fui para a Faculdade de Direito da USP [Universidade de São Paulo, onde políticos, empresários e artistas se reuniram, em agosto, para ler a "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”].

Juntamente com Caetano Veloso e Wagner Moura, participei na audiência pública da comissão da Organização dos Estados Americanos para discutir as denúncias de censura no Brasil [na audiência, os artistas compartilharam com a comissão as suas "experiências e reflexões sobre as violações de liberdade de expressão artística em curso no Brasil", como explica o G1].

Participei na leitura da sentença do Tribunal Permanente dos Povos [que concluiu que o presidente Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade e violações dos direitos humanos pela sua gestão da pandemia da covid-19].

Participei, durante estes dois anos, no Observatório dos Direitos Humanos ["a cantora Daniela Mercury, por sua atuação como embaixadora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) na defesa dos direitos da criança, do adolescente e da mulher (...)  integra a primeira composição do Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário", lê-se no site da instância].

Participei no lançamento da pesquisa “Discriminação e Violência contra a População LGBTQIA+”, a primeira oficial do judiciário brasileiro, e do formulário Rogéria [Registro de Ocorrência Geral de Emergência e Risco Iminente à Comunidade LGBTQIA+].

Até nessa tour de verão, que fiz em algumas cidades de Portugal, tive a chance de falar ao telefone com o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e disse-lhe que esperava que fosse bem recebido para as comemorações do bicentenário da Independência.

créditos: DR

A data que a traz novamente a Portugal marca uma nova fase. Um novo espetáculo, um novo disco, “tô me renovando inteira”, disse numa entrevista recente. O que é que podemos esperar?

Todos esses temas que falámos antes estão nesse novo trabalho. De uma forma mais subtil, esperançosa, mas estão. É a primeira pessoa com quem falo sobre isso. Esperei para saber que rumo o Brasil ia tomar. Fiz 60 músicas durante a pandemia, lancei algumas, mas não conseguia finalizar o álbum.

Estava à espera de qual seria desfecho das presidenciais?

Eu sou uma artista popular, uma artista de massas. Tinha de saber para que lado ia, se ia continuar a ser crítica do atual Governo ou se ia poder falar de outras coisas. Lancei "Proibido Carnaval" [2019, com Caetano Veloso], "Rainha da Balbúrdia" [2020], regravei "Apesar de Você" [de Chico Buarque, tema que comemorou 50 anos] e editei o primeiro single deste novo álbum, "O Samba Não Pode Esperar".

O novo disco, que chega a 2 de dezembro, era para ser lançado a tempo do concerto em Lisboa, a 23 de novembro, mas fechei as últimas músicas apenas na última madrugada. Queria levar uma primavera ao inverno de vocês, uma primavera democrática. Nunca faço show nessa época do ano em Portugal, mas queria celebrar com vocês. Vocês viraram o que eu sonhei esses anos todos, Portugal floresceu para a Europa. Tornou-se um país desejado pelos turistas, eu vi isso nas festas pelo interior.

Vou fazer um show muito especial para o Coliseu. O espetáculo vai ter cenário novo, figurino novo, todo um novo conceito que estou a trabalhar com a minha filha Giovana, que 'resgatei' do Paraná, onde estava a viver e onde tem uma companhia de musicais. Ela é a pessoa mais antenada, quem tem mais sintonia comigo e quem está dirigindo esse espetáculo do novo álbum que se chamará... Ainda nem tinha dito isso aqui no Brasil. O novo álbum vai se chamar "Baiana".

" A minha história, a compreensão de quem sou como pessoa, a baiana que sou, passa pela relação com Portugal."

"Baiana"...

E o que é que essa baiana tem [música de Carmen Miranda], n'é? Esse álbum tem muitas músicas compostas por mim, ele traz esperança, leveza, alegria, amor. E traz muitas músicas sobre o que nós estamos a viver neste momento. Retoquei letras de música até ontem ou anteontem [domingo e segunda da semana passada], mudei tempos verbais, coloquei novos personagens nas canções. Elas agora falam desse momento e do futuro.

O álbum traz primavera, verão, músicas afirmativas, vibrantes. Lembro-me sempre da Rita Lee, uma grande referência para mim. Quando ela abandonou os palcos disse: 'fico feliz por ter feito as pessoas felizes'. E a felicidade para mim sempre foi uma grande revolução. Oswald de Andrade disse que a alegria cura. E acho que a gente está a precisar de uma cura, de um descanso. Então, trago esses assuntos de uma maneira mais leve, com dança, com música... mas está tudo dito ali.  "O sonho não pode esperar / O samba não pode parar / O amor não pode esperar, é / O verso e a rima / O futuro não pode esperar / O povo não pode calar / A liberdade não pode esperar / Dar a volta por cima" [canta "O Samba Não Pode Esperar"]. Demos a volta por cima, mas não na totalidade. Há muitas voltas ainda para dar.

Daniela Mercury promete trazer "alegria, beleza e profundidade" a Lisboa. Num concerto "inédito", no Coliseu de Lisboa, a 23 de novembro, a artista brasileira apresentará um disco "biográfico", "Baiana", a sair já em dezembro.

Em entrevista ao SAPO24, "a Rainha do Axé" deixou um convite: "Quem ama a democracia brasileira vá ao Coliseu".

Os bilhetes estão à venda dos locais habituais e os preços variam entre os 30 e os 55 euros.

Podemos esperar temas inéditos em Portugal?

Vai ser um show único. Os concertos do Brasil são mais carnavalescos e este de Portugal vai ser dançante, como sempre, é quase inevitável, eu sou rítmica e o álbum novo tem muitos temas rítmicos, mas também vou cantar coisas mais tranquilas. Sei que vocês conhecem o repertório de todos os meus álbuns, conhecem as minhas músicas, então vou prestigiar canções que são afetivas para vocês. Este show só vou apresentar aí. Estou inclusive pedindo que os fãs sugiram músicas. Mas em Lisboa vou cantar também temas inéditos, que ainda não foram lançados nas plataformas. Convido todos a celebrar a democracia brasileira comigo, num doce Carnaval antecipado. Quero iluminar o Coliseu com o futuro do Brasil. É difícil desassociarmo-nos como povo, Portugal e Brasil. Somos uma coisa só. E vocês vivem muito a cultura brasileira.

A vitória de Lula significa uma reaproximação entre Portugal e o Brasil?

Tenho a certeza disso. Vamos poder caminhar juntos e nos fortalecer.

Qual o seu lado português?

Sou densa, séria, profunda, poética. Dramática também. Como é que junta tudo isso numa pessoa festiva, rítmica? Sou uma portuguesa-baiana. A minha história, a compreensão de quem sou como pessoa, a baiana que sou, passa pela relação com Portugal.

Sinto-me também muito parte da família afrodescendente. Não tenho pele preta, como a grande maioria do meu povo daqui [Salvador], mas sou uma construção da Bahia, uma pátria à parte, repleta de influências que acabam por fazer parte de nós. Por isso também esse nome, "Baiana". A minha música está também muito próxima de Angola, Moçambique, Cabo Verde. Sou da Bahia, filha de português, mas me sinto, culturalmente, muito irmã de Mayra Andrade, Sara Tavares, dessa turma.

"A gente não tem de achar que por ter conseguido que Lula se elegesse não tem de lutar. Porque essas questões que enfrentamos ainda estão muito impregnadas na nossa civilização."

Estou a falar com a futura ministra da Cultura do Brasil?

Não recebi nenhum convite oficial, mas estou próxima e tenho trabalhado muito pela Cultura no Brasil. O que lhe posso dizer hoje é que vou trabalhar na luta pela Cultura, sendo ou não ministra. Vou estar muito ativa e já entreguei as minhas demandas com o presidente Lula. A Cultura foi o primeiro assunto que levei para ele. Pedi-lhe que a Cultura fosse colocada num outro patamar, propus até uma revolução Cultural. A Cultura é algo é sagrado, divido, imensurável, mas há que que a fortalecer, em todos os âmbitos da produção artística. Não sei como vou atuar, mas vou atuar. Mas não sei o que vai acontecer, não posso dizer nada.

Baiana, Bahia... O Nordeste voltou a ser decisivo para a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) e muitos nordestinos têm, desde a primeira volta, sido alvo de preconceito e ataques violentos, sobretudo nas redes sociais. Não é um exclusivo destas eleições, já tinha acontecido com a eleição de Dilma em 2010. Porque é que ainda acontece?

Porque nós não fizemos o nosso dever de casa. Fizemos uma amnistia, que foi o que foi possível fazer. Mas, a meu ver, não punimos os responsáveis pelas torturas na ditadura e não deixámos claro... Precisamos de mais monumentos, mais filmes, mais obras de arte expressando isso. Precisamos que no quotidiano, em todos os âmbitos da sociedade, a gente se lembre que há coisas que não são aceitáveis numa democracia, a manipulação, a desinformação... Como diz Humberto Eco, o fascismo está sempre presente na sociedade e alguns governos reacendem-no e trazem-no à tona. No fundo, é preciso educação para a democracia. Porque percebeu-se que a população não consegue ainda distinguir os seus direitos, o que é a Constituição, o que é o Código Penal, o que é o Código Civil, como as leis nos protegem...

Depois de 30 anos de democracia, as [novas] gerações não se lembram, como eu me lembro, o que foi a ditadura. Por isso a gente agora precisa falar, educar, trazer à tona toda a nossa história. Precisa falar sobre todo o mal que as ditaduras causaram para que a democracia e os valores democráticos sejam valorizados.

E a arte será muito importante nesse sentido. Os artistas pop, populares, têm condições para falar com multidões. Mesmo que os seus trabalhos em si não tragam discursos [políticos] específicos, eles são ícones, são transformadores, são referências, são revoluções individuais. A capacidade de trazerem um discurso pró-democracia, de falarem contra o racismo, contra a LGTIfobia... Você tem a Pablo, a Anitta, o Filipe Neto, o Gregório Duvivier, o Fábio Porchat. Tem sido fundamental esses artistas usarem o seu espaço como plataformas. A gente não tem de achar que por ter conseguido que Lula se elegesse não tem de lutar. Porque essas questões que enfrentamos ainda estão muito impregnadas na nossa civilização. Achamos que os governos resolvem, mas não. Os governos não resolvem, é a sociedade que tem o dever de continuar a enfrentar o fascismo eterno, como falava Umberto Eco.