Mariana Alcoforado nasceu em 1640. Com 11 anos, a freira de Beja, que viria a ficar internacionalmente famosa, foi enviada para um convento — por testamento da mãe e para ser protegida dos conflitos da guerra que Portugal travava com Espanha. Um dia, enquanto passava tempo à janela, os seus olhos cruzaram-se com os de um oficial francês, Noel Bouton. Nesse momento nasceu um amor maior. Descobertos, gerou-se um escândalo. Bouton saiu de Portugal, deixando a promessa a Mariana de que enviaria alguém para a vir buscar. A freira, da janela do convento, esperou, em vão, por notícias do seu amado. Durante esse tempo, Mariana escreveu cinco cartas, que se tornaram uma referência e inspiraram autores românticos.
“Hey, Google. Lower the volume 50%, please” Abril de 2020. Lisboa, Portugal. Joana, fechada em casa, fala para o assistente digital que controla o volume da música, quando começamos a nossa conversa ao telefone.
Joana tem 30 anos. Trabalha em intervenção comunitária numa organização não governamental. No final de março deste ano, ao fim da segunda ou terceira semana do confinamento a que a Covid-19 nos entregou, Joana “estava com tempo disponível” e resolveu abrir uma janela.
No telemóvel, pôs-se a ver, no Instagram, um concerto em direto do Nelson Freitas, um reconhecido artista internacional de musicalidade cabo-verdiana. “Foi na altura em que a malta começou toda a fazer os lives”, lembra. A dado momento, os seus olhos cruzaram-se com um comentário de um outro utilizador que estava a ver o mesmo concerto em direto.
“Houve alguma coisa que me fez rir”, não se lembra ao certo do que foi.
“Fui abrir a página dele [no Instagram]. Vi as fotografias assim por alto e pus um like numa. Ele tinha feito uma experiência no Pilar Sete [da ponte 25 de Abril]. Eu também já fiz. E pronto. Foi uma coisa mesmo inocente”.
“Esperava que me escrevesses
de toda a parte por onde passasses”
(III carta de Mariana Alcoforado)
“No dia seguinte, ele tinha mandado uma mensagem”, conta Joana. Viemos a saber mais tarde que esta primeira mensagem se apresentava sob a forma de várias alíneas. “Dizia que tinha achado muito interessante o meu Instagram e a maneira como eu me apresentava. Qualquer coisa como ‘é raro encontrar pessoas assim, com este género de Instagram’”.
“Convenci-me de que me havias distinguido
entre todas aquelas que estavam comigo”
(IV carta da freira)
“Eu respondi e a conversa fluiu. Bué rápido. Muito naturalmente. Demo-nos logo muito bem”, continua Joana.
A conversa “teve muito que ver com a experiência de vida de cada um”: “o que é que andávamos a fazer, de onde é que éramos, qual é que tinha sido o nosso percurso nos últimos tempos”. “Daí surgiu naturalmente conversa sobre pontos comuns. Desde viagens a amigos, coisas que fazemos nos tempos livres, a quarentena…”.
Até que… “ele disse que ia quebrar a quarentena. Tinha de me vir conhecer”, ri-se muito Joana.
Ela ri-se com a voz, ele com as palavras.
Joana confessa que surgiram receios por quebrarem o confinamento: “Claro! Foi logo uma das preocupações. Estamos todos a fazer um mega esforço”. “Mas a verdade é que já estávamos em isolamento há algum tempo. E os ambientes também eram bastante restritos”, explica. “É sempre uma situação. Mas, pronto, há vontades que imperam”, ri-se de novo.
O instinto físico falou mais alto
e Mariana deixou-se dominar por uma incontrolada paixão
que a fez introduzir Bouton secretamente na sua cela
durante várias noites seguidas.
(breve nota biográfica na obra de compilação das cartas)
“Têm estado juntos mais vezes?”, perguntamos. “Hmm, hmm”, confirma, discreta. “Ele mudou-se para aí?”, atrevemo-nos. “Não se mudou, mas tem estado aqui algum tempo”, vai revelando, pedindo para que usemos apenas os primeiros nomes deles.
“Achas que ele se importaria de falar connosco?”, perguntamos, preparando-nos para anotar o contacto. “Luís!”, ouço do outro lado.
“Olá, Luís. Estás bom?”. “Ótimo, ótimo”, responde num tom muito animado.
Luís tem 33 anos, trabalha como assistente na área da saúde oral e há mais de um mês que apenas vai à clínica quando há urgências. Normalmente vive com a mãe. “Agora estamos 24h quase sempre juntos”, revela.
Conta-nos também a história de como se conheceram, num decalque quase perfeito da descrição dela: semanas de confinamento, live do Nelson Freitas no Instagram, ele publica um comentário, ela ri-se com a mensagem daquele desconhecido, curiosa vai ver o perfil dele, faz like numa fotografia, ele pesquisa o perfil dela. Sorri.
“É completamente diferente dos banais que há hoje em dia”, conta. “Frases”, “viagens”, “fotos muito simples”, descreve. “E mandei uma mensagem”.
“Esperava que as tuas cartas fossem longas”
(III carta)
Luís enviou-lhe “um textozinho com muita coisa”. “Tinha para aí umas… quantas alíneas? Cinco, seis, sete?”, conta. “Ela também fez um texto, por tópicos”, Luís gostou da resposta. “E começámos a ter uma conversa normal”.
Luís sentiu que se estavam a aproximar: “De um simples like, falávamos horas seguidas e não nos distanciávamos mais do que meia hora ou 40 minutos desde termos falado a última vez”.
“Como ela é um bocadinho desligada das redes sociais, demorou um bocadinho [a responder à primeira mensagem]. Foi no dia a seguir”.
“Já lá vão seis meses
sem receber uma única carta tua”
(II carta)
“Depois começámos a falar diariamente”, relembra.
“Parecia que estávamos em casa. Uma conversa muito fluida, muito terra a terra, muito honesta, muito sincera”, diz-nos Joana. “Fluiu naturalmente. Não houve nenhuma coisa estranha ou fora do normal”. “Se te conectas, se tens uma ligação com alguém, é o manter isso. Isso é igual. É uma vontade de conhecer a pessoa”.
“Simplesmente foi num contexto diferente. Que é uma rede social”.
Joana diz que nunca pensou nas redes sociais “para esta vertente”. “Eu não estou no Instagram para engatar”. “Sempre achei que era um mundo bastante frio, em termos de relacionamentos pessoais”, explica.
“Mas depois também tem muita piada porque é muito adaptado àquela que é a realidade hoje em dia. Eu nunca poderia ter conhecido o Luís”, diz Joana, enquanto continuamos ao telefone (por curiosidade, na televisão, nesse preciso momento, um matemático, um físico e um sociólogo falam de sorte e azar, destino e probabilidades).
Perguntámos mais tarde por WhatsApp: se não estivéssemos a viver estes tempos, iriam presencialmente ao concerto do Nelson Freitas? Ela “provavelmente não, porque estaria sem dinheiro. Mas o Luís de certeza… Segundo ele, é o fã número 1 (sorri via emoji)”. E continua: “Ele agora foi trabalhar mas acredito que seria a sua resposta”. Quisemos confirmar e voltámos a perguntar mais tarde: sim, teria ido.
Luís também descreve as diferenças de começar uma relação desta forma: “A gente conheceu-se assim, diariamente. Ela não sabia das minhas higienes, o que é que eu comia, do que é que eu gostava, o que é que me aborrecia. Conhecemo-nos assim, trancados em casa”.
Há “esta vertente de extraordinário, de diferente, que é a época em que estamos”, repete Joana.
“Conversamos imenso, falamos imensas horas, às vezes pintamos, cozinhamos, ouvimos muita música. E namoramos”, ri-se Joana.
E dançam. “Começámos no primeiro dia em que nos conhecemos. Dançámos muito. E sempre que puxa para isso, dançamos”.
“Acho que é uma coisa que vai perdurar. Já estamos a planear viagens”, diz ele, olhando para o futuro. “Estamos numa de nos conhecermos melhor e de querermos estar juntos. Estamos muito bem juntos. Isso é o ponto de partida de tudo”, ri-se ela.
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