"Eu tomei a decisão certa", disse Ziganshin à AFP no Cazaquistão, para onde fugiu em setembro de 2022, depois de o presidente russo, Vladimir Putin, ter ordenado a primeira mobilização militar russa desde a Segunda Guerra Mundial.

"Eu não apoio o que está a acontecer na Ucrânia, não apoio o governo que temos há tantos anos, então decidi deixar a Rússia", disse o jovem de 24 anos.

Confrontados com a difícil escolha entre participar numa guerra de agressão ou ir para a prisão por se recusarem a combater na Ucrânia, centenas de desertores e refratários (aqueles que não se apresentam ao serviço militar) russos fugiram para países vizinhos do antigo bloco soviético, onde agora vivem no limbo.

As autoridades russas abriram um processo criminal contra Ziganshin por abandonar a sua unidade e colocaram-no numa lista de procurados. Não se sente seguro no Cazaquistão, país pró-Moscovo da Ásia Central, e teme ser deportado para a Rússia.

Mas também não pode viajar para a Europa, porque assim como muitos militares russos, não tem passaporte estrangeiro. Até agora, as suas tentativas de obter um visto francês foram infrutíferas.

Ativistas anti-guerra têm instado os legisladores na Europa e nos Estados Unidos a fazerem mais para ajudar homens como Ziganshin, que são caçados em casa e vistos com suspeita no Ocidente.

Durante sua estadia no Cazaquistão, Ziganshin foi detido brevemente duas vezes, a mais recente este mês.

Em março passado, tentou viajar para a Arménia, mas foi detido por autoridades do Cazaquistão e escapou por pouco da deportação.

No entanto, desistir não é uma opção. Fala abertamente com jornalistas estrangeiros sobre a sua oposição a Putin e à guerra na Ucrânia.

Juntamente com outros críticos da guerra na Ucrânia, grava vídeos para encorajar outros russos a fugirem do campo de batalha como parte de uma iniciativa apelidada de "Adeus às armas".

Num destes vídeos, um militar aparece a atear fogo a um uniforme que traz estampada a letra "Z", símbolo da invasão russa da Ucrânia, antes de entrar numa floresta próxima.

"Ninguém atacou a sua pátria", diz a mensagem ao final do clipe. "Nós já nos recusamos a participar numa guerra criminosa. Também deveria fazê-lo. Salve a sua vida, a sua honra e dignidade", acrescenta.

Além de Ziganshin, a AFP conversou com outros cinco russos, incluindo um desertor residente na Geórgia e quatro refratários que conseguiram refúgio em França. Três deles conseguiram assegurar o asilo.

'Viva com dignidade'

Aos 10 anos, Ziganshin foi para um internato e depois graduou-se numa academia militar na região do Tataristão que prepara comandantes de tanques russos.

Ziganshin descreve as forças armadas russas como uma "grande escola da vida". Mas quando a Rússia invadiu a Ucrânia, percebeu que aquele não era o exército ao qual queria dedicar sua vida.

Conseguiu pedir baixa, mas no dia seguinte, 21 de setembro de 2022, descobriu que uma mobilização militar parcial havia sido declarada e que seria enviado para a Ucrânia, juntamente com cerca de 300 mil outros homens.

Ziganshin fez as malas à pressa e voou para o vizinho Cazaquistão. Temendo ser mandado de volta para Moscovo, onde seria processado criminalmente, tem estado a tentar adquirir - até agora sem sucesso - um visto para viajar para França.

Segundo o ativista do Cazaquistão dos direitos humanos Artur Alkhastov, os desertores russos praticamente não têm hipótese de receber estatuto de refugiados no seu país.

"Nós temos laços diplomáticos realmente fortes com a Rússia", disse Alkhastov, que dá assistência a cerca de 15 russos, incluindo Ziganshin.

Os ativistas também têm acusado as autoridades locais de facilitar detenções de russos que procuraram refúgio no Cazaquistão.

Mikhail Zhilin, da Guarda Federal Russa, voou para o Cazaquistão para evitar o recrutamento no exército, atravessando a fronteira ilegalmente. Foi mandado de volta para a Rússia e sentenciado no ano passado a entre seis e oito anos de prisão.

Segundo os ativistas, o soldado contratado Kamil Kasimov, que também fugiu para o Cazaquistão, foi detido durante a primavera no hemisfério norte e levado para uma base militar russa na cidade de Priozyorsk, no centro do Cazaquistão.

Ziganshin sente calafrios ao pensar em ser mandado de volta para a Rússia, onde pode enfrentar uma longa pena de prisão. O seu visto de residência no Cazaquistão expirou.

"Sou jovem, quero fazer algo da minha vida, quero viver com dignidade", afirmou.

Outros desertores russos viajaram para a Arménia, no Cáucaso sul. Mas, assim como o Cazaquistão, os ativistas dizem que o país que abriga uma base militar russa também não é um destino seguro. Nos dois últimos anos, dois desertores foram detidos por militares russos na Arménia.

Centenas de desertores russos têm, contudo, poucas opções. Não podem fugir para o Ocidente porque muitos militares russos não têm passaportes, e o Cazaquistão e a Armênia são dois no meio de um grande grupo de países para onde os russos podem viajar sem documentos.

Os países europeus ficam fora do seu alcance, afirmou Ivan Chuviliaev, porta-voz do projeto anti-guerra Idite Lesom ("Desapareça"), que tem ajudado russos a desertar e sair do país.

"Eles não têm documentos onde colocar um visto", afirmou. "E não podem voltar para a Rússia para pedir um passaporte".

'Morte absurda'

Andrei Yuseinov, que serviu na 39ª brigada de infantaria leve motorizada em Sakhalin, no extremo leste russo, teve sorte ao conseguir fugir para a Geórgia.

Disse ter "inventado a sua história" e passado como civil na sua cidade natal de Oremburgo para obter um passaporte, que lhe permitiu viajar para a Geórgia com a sua mulher e filho.

Aos 24 anos, ele recusou-se a sofrer "uma morte absurda" na Ucrânia.

Ele afirma que 300 soldados da sua brigada, formada por 5 mil militares, morreram e mil desapareceram como resultado da invasão russa da Ucrânia.

"Eu costumava ver mães a chorar diante dos oficiais, que não respondiam sequer se sabiam se seus filhos estavam mortos", disse Yuseinov.

Ativistas pelos direitos humanos e governos ocidentais têm manifestado preocupação com a recente guinada pró-russa da Geórgia, e Yuseinov acredita não estar seguro lá.

Contava em viajar para França, mas em maio a embaixada francesa em Tbilisi recusou-se a dar-lhe um visto.

'Combatentes da resistência'

Depois da invasão da Ucrânia por Moscovo, muitos russos procuraram refúgio em França, que tem uma longa tradição em receber exilados políticos.

No ano passado, o Tribunal Nacional de Asilo francês deu esperanças aos desertores e refratários, ao decidir que "russos que fugissem da mobilização para lutar na guerra na Ucrânia e aqueles mobilizados que tiverem desertado podem obter estatuto de refugiado".

Segundo a CNDA, 102 russos que fugiram da mobilização já garantiram o estatuto de refugiado em França. Não há desertores do exército entre eles.

"O nosso único objetivo é deter a aventura imperialista ilegal encabeçada pelo líder russo", disse, em maio, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Stephane Sejourne, ao jornal Novaya Gazeta Europe.

Contudo, obter um estatuto de refugiado ou inclusive receber um visto para trabalhar em França, e outros países da UE, é difícil para muitos russos, e os ativistas instam os governos europeus a fazerem mais para ajudar.

"Eles são verdadeiros combatentes da resistência, não são apenas soldados que negaram arriscar as suas vidas", disse Olga Prokopieva, diretora da Russie-Libertés, associação para exilados anti-Putin baseada em Paris.

"Gostaríamos que França se envolvesse mais, particularmente com desertores que se sentem bloqueados na Armênia e no Cazaquistão", acrescentou.

Artem Klyga, um advogado militar que trabalha com o Movimento de Objetores de Consciência, tem feito lobby junto dos governos de França e da Alemanha para ajudar os russos a escaparem do campo de batalha.

Afirmou que os dois países compreendem a escala do problema, mas também se preocupam por poder receber militares que podem ter cometido crimes de guerra na Ucrânia.

"Eu costumava ouvir que todos os russos são criminosos de guerra, então era preciso barrá-los na Rússia", afirmou.

"Até mesmo, no Parlamento Europeu era muito difícil falar sobre os desertores e os objetores de consciência", acrescentou.

Contactado pela AFP, o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão informou que não planeava emitir vistos "apenas em casos de deserção ou objeção ao serviço militar", mas os russos contrários à guerra que estejam "particularmente em risco de perseguição" podem ser recebidos por razões humanitárias.

'Assediados'

Vladimir (nome fictício) é um dos afortunados dissidentes russos que conseguiu asilo em França.

O reservista de 30 anos, que concluiu o serviço militar numa unidade de elite, disse ter sido "assediado" nos primeiros meses da guerra. Pessoal militar russo primeiro apareceu na sua casa, depois no seu local de trabalho e, finalmente, na casa da sua mãe num esforço para o fazer alistar-se.

"O medo cresceu", disse Vladimir, acrescentando ter participado nos protestos anti-Kremlin em 2014 e 2019.

Em maio de 2022, partiu para França para evitar ser recrutado. Logo depois, a sua mãe recebeu a sua convocatória militar. O seu pedido de asilo foi inicialmente rejeitado, mas a CNDA assegurou-lhe o estatuto de refugiado em abril, após dois anos de trâmites.

Dmitry (nome fictício), um professor de dança, disse que também não queria "agarrar em armas para matar outras pessoas".

Na casa dos 30 anos, diz ser contra o regime de Putin, embora não se descreva como um ativista.

Deixou a Rússia em setembro de 2022, alguns dias depois de receber uma notificação de recrutamento. Ele também obteve asilo em abril.

Oleg (nome fictício), um instrutor de desportos de combate na casa dos 40 anos, disse que "sempre foi contra Putin" e que não fazia segredo das suas simpatias políticas no seu país.

Conta que sua mulher participou regularmente em manifestações organizadas por aliados de Alexei Navalny, líder opositor que morreu subitamente numa prisão do Ártico em fevereiro passado. Oleg conta ter participado numa campanha de arrecadação de fundos para um amigo ucraniano cuja casa foi destruída durante a invasão russa.

"Nós também fizemos doações para Navalny antes da guerra e continuamos a fazê-lo", acrescentou.

As organizações políticas de Navalny foram declaradas ilegais na Rússia, mas sua equipa continua a operar no exílio. Muitos russos foram processados e presos por apoiar a fundação Navalny com doações.

'Salvei a minha família'

As autoridades russas esmagaram os últimos vestígios de dissidentes depois de Putin ter invadido a Ucrânia. Todos os ativistas proeminentes ou estão presos ou no exílio, e toda a imprensa independente na Rússia foi fechada.

Depois de Oleg ter recebido a convocatória, a sua mulher e os dois filhos do casal partiram para a Geórgia em setembro de 2022.

Recebeu seu status de refugiado em França em abril.

"Se não tivéssemos saído, eu estaria preso ou no campo de batalha", disse Oleg.

"Também havia um risco do meu filho mais velho, que em breve fará 18 anos, ser enviado para a Ucrânia", acrescentou.

Vladimir, Dmitry e Oleg falaram com a AFP com a condição dos seus nomes verdadeiros não serem usados de forma a proteger os seus familiares na Rússia.

Alexander, de 34 anos, a sua mulher Daria, de 37, e os seus dois filhos ainda estão a aguardar as autoridades francesas decidirem o seu destino.

Concordaram em dar uma entrevista por vídeo à AFP sob a condição dos seus apelidos não serem publicados.

A família deixou São Petersburgo em março de 2023, depois de Alexander, que é engenheiro, ter recebido a notificação de recrutamento.

O seu carro e a porta da frente do seu apartamento foram vandalizados por causa do ativismo anti-guerra de Daria.

A família, que agora mora numa pequena cidade no norte de França, deixou para trás uma vida confortável.

Mas Alexander diz não se arrepender. "Eu salvei a minha família e não me tornei um assassino", afirmou.

Daria, que no seu tempo livre trabalha como voluntária no projeto anti-guerra "Desapareça", culpa o regime de Putin de roubar o seu futuro.

"Tenho a sensação de que a vida que levei anos a construir foi-me roubada", lamentou.

'Estas pessoas são castigadas'

Ativistas contra a guerra reforçam que se os países ocidentais quiserem apoiar melhor a Ucrânia deveriam oferecer asilo aos desertores russos.

"Se quisermos que o Exército russo fique mais fraco, temos que apoiar os desertores", disse Chuviliaev, do projeto "Desapareça".

O jornal independente em russo Mediazona registrou cerca de 8.600 casos de deserção desde o início da mobilização, em setembro de 2022. Comparativamente, pouco mais de 600 destes casos foram levados à justiça em 2021.

As acusações mais duras de deserção também dispararam, com mais de 300 casos levados à justiça desde o início do recrutamento, segundo dados do Mediazona enviados à AFP. A título de comparação, em 2021 houve 33 casos similares.

Os desertores russos deveriam ser recebidos no Ocidente e não estigmatizados por terem servido no Exército russo, diz uma porta-voz da InTransit, organização que ajuda homens a escaparem da guerra, e a falar sob a condição do anonimato.

"Se é apenas um ativista e participa nas manifestações, pode receber um visto humanitário. Mas se estava no exército, deu um tiro na própria perna e fugiu" - diz -, "não consegue obter um visto".

"Essas pessoas são punidas apenas pelo facto de que antes da guerra estavam no exército", acrescenta.