Num mundo ideal, os cidadãos teriam de pagar em impostos um quarto do salário que recebem?

No mundo em que vivemos não conheço quase nada que funcione sem que haja uma ajuda pública. Repare, mesmo o mercado, a concorrência, que é um elemento essencial do mercado, deve ser garantida através de uma autoridade pública.

Os impostos são a contrapartida de podermos viver numa sociedade segura, equilibrada, socialmente justa. Cada um deve pagar em função do seu rendimento, que pode ser não pagar ou até pagar mais do que um quarto desse mesmo rendimento.

Se tivesse de escolher, e tem mesmo de optar, a União Europeia devia fazer uma aliança comercial com a China ou com os Estados Unidos?

Penso que a União Europeia deve fazer alianças comerciais que garantam cláusulas ambientais e cláusulas laborais justas. Neste momento a escolha entre qualquer dos dois é difícil de fazer deste ponto de vista. 

Acredita que é possível travar as alterações climáticas na legislatura europeia que agora começa?

Acredito que esse é um processo... É uma luta que temos de travar nesta legislatura e nas próximas. Creio que esta luta, ou que este objetivo, se tornou transversal, não direi a todos, mas a quase todos os grupos políticos representados no hemiciclo aqui atrás.

Nos Censos de 2021 o INE devia ou não incluir uma pergunta sobre a origem étnica, as raízes, das pessoas?

Essa foi uma questão que ainda tratei como ministra. Criámos um grupo de trabalho e esse grupo concluiu que no próximo censo era tecnicamente difícil fazer essa pergunta, mas que se deveria fazer um inquérito às práticas de discriminação em função da etnia ou da raça para sabermos que medidas é preciso tomar e, eventualmente, num próximo censo poder vir a incluir essa pergunta.

A União Europeia deve ter um exército próprio?

Penso que devemos ter uma cooperação estruturada entre os diversos Estados-membros no sentido de ter forças que garantam a segurança no espaço da União. E os exércitos hoje não são apenas segurança no sentido tradicional de garantir paz, são também, por exemplo, a segurança do ciberespaço - a ciberdefesa é hoje também uma questão muito importante nos exércitos. Isso implica investigação conjunta, que é uma área que devíamos reforçar entre os vários Estados-membros, entre as Forças Armadas dos diversos Estados-membros, naturalmente em colaboração com a NATO.

Se não é o presidente que manda nisto tudo, e dizem-nos que não é, o que está a tornar tão difícil chegar a um consenso sobre quem serão os presidentes das diversas instituições da União Europeia?

Não é o presidente do Parlamento ou o presidente da Comissão ou o presidente do Conselho. Como sabe, no quadro institucional da União Europeia, muitas vezes difícil de perceber — conheci um embaixador americano que dizia que nunca conseguia explicar quem mandava quando lhe perguntavam: "Mas quem manda na União Europeia?". Ele, com a sua cabeça americana, não sabia responder. Aqui não conseguiria exatamente responder à pergunta que me faz. É exatamente este equilíbrio de forças entre um Parlamento que tem vindo a reforçar-se, mas ainda não é um parlamento como os que conhecemos nos Estados-membros, entre a Comissão Europeia, que tem o exclusivo, ou quase, de propor nova legislação, mas que não decide sobre ela, que é decidida em trílogo muitas vezes, é este equilíbrio de forças, junto com o equilíbrio geográfico, junto com o equilíbrio das diferentes forças políticas mais pluralistas, que torna difícil encontrar um consenso, como se viu nas últimas semanas. É uma característica da União. Provavelmente, dificilmente chegaremos na minha geração à pergunta que me fez: ao presidente.

Qual foi a primeira coisa que fez quando chegou a Estrasburgo?

A primeira coisa foi perceber como é que me orientava sozinha neste edifício.

Descreva a última vez que se irritou.

Hmmm. Bem, irritei-me muito quando tive de fazer o registo como deputada em Bruxelas. Tenho o vício da simplificação administrativa, porque eu própria ganhei um sentido crítico sobre tudo o que faço quando tenho de abrir uma conta bancária, quando tenho de fazer um contrato de arrendamento, ou quando tenho de comprar serviços de telefone ou de internet, ou quando tenho de ir a um serviço público. Ganhei um sentido crítico, quase que de cliente-mistério, para me inspirar em medidas de simplificação. Bem, quando cheguei vi coisas que já não via há muito tempo. Tive de escrever o meu nome duas vezes no mesmo formulário em papel, o meu nome variava de serviço para serviço, esperei quase uma semana para abrir uma conta bancária e não foi para pedir um crédito, é a conta onde será depositado o meu salário. Isso eram situações que eu já não via há muito tempo em Portugal — sem prejuízo também de ser ainda necessário simplificar muita coisa em Portugal —, e confesso que se tornou, não diria que uma grande irritação, mas um tanto irritante ter de dar a mesma informação, ora para obter um badge [crachá] de identificação, ora para obter um endereço de email, ora para me pagarem o salário, ora para me inscrever numa agência de viagens. E o meu pronome tem variado muitas vezes, o que significa que a informação não está consolidada numa base de dados, que devia existir, diria, ou pelo menos que há uma interoperabilidade entre as várias bases onde ela está guardada.

Tem alguma comida de conforto?

Depende do sítio onde estou. Quando estou muito tempo fora do meu país, tenho saudades do peixe grelhado ou das amêijoas à Bulhão Pato. Quando estou muito tempo fora do país onde nasci, no sul de África, fico com saudades do camarões ou dos caranguejos recheados. O prato que faço mais em minha casa é um que aprendi com a minha mãe, gosto muito de cozinhar, que é beringelas com camarão, um prato que é assim uma mistura de Europa com África, como eu própria.

Alguém merece ter cem milhões de euros?

Depende de como lá chegou: a criatividade, o que investiu, o que arriscou para lá chegar. Não tenho inveja de quem é rico, de quem trabalha, de quem investiu, de quem é criativo, de quem se tornou empreendedor. O problema que penso que temos no mundo é o gap [fosso] salarial, a diferença entre os salários mais altos e os salários médios mais baixos, que se tem multiplicado por muitas vezes nas últimas décadas, e isso não contribui para uma paz social. O que devíamos era tentar uma maior aproximação.

Mas, enfim, se alguém fez muito pela vida, pelo investimento, pela criatividade e conseguiu chegar a esse valor, só temos de admirar, desde que, no final do dia, pague os seus impostos — voltamos à primeira questão, exatamente na proporção daquilo que tem de pagar. E, por isso mesmo, e para terminar, durante a campanha defendi que devia haver, não direi um imposto, porque a União Europeia não os pode criar, mas uma maneira de fazermos com que as grandes empresas do digital, para as quais de certeza que todos os dias nós duas contribuímos um pouco, e provavelmente muitos dos que estão aqui à volta, paguem impostos no território da União Europeia, onde de certeza que também há muita gente, outras empresas e muitos cidadãos e cidadãs que contribuem para os seus muitos milhões de euros, provavelmente mais que cem.


Afinal, da esquerda à direita, os deputados europeus não são tão diferentes como poderíamos pensar. A maioria acredita mesmo que não pagamos demasiados impostos, é contra um exército europeu, prefere os EUA à China, admite irritar-se com facilidade e é bom garfo. Ainda assim, há diferenças. Estas foram as respostas de Maria Manuel Leitão Marques, mas a eurodeputada do PS não foi a única a responder. Saiba mais aqui.