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ATRÁS DAS LINHAS INIMIGAS
George Lane olhava para a sua vida tal como um jogador profissional poderia olhar para um jogo de poker: algo para se jogar com nervos de aço, uma pitada de coragem e a disposição para ganhar ou perder tudo.
A sua propensão para o risco levara-o a alistar-se nos comandos; também o levara a oferecer-se para uma missão clandestina perigosa com o nome de código Operação Tarbrush X. Na segunda semana de maio de 1944, Lane iria introduzir-se clandestinamente na França ocupada pelos nazis, usando a cobertura da escuridão para remar até terra num bote de borracha negra. A sua missão era investigar um novo tipo de mina que os alemães estariam a instalar nas praias da Normandia.
Lane tinha o aspeto do aventureiro britânico por excelência, cujo ar bem-parecido não destoaria nas grandes coutadas escocesas. O seu cabelo estava penteado à moda de um jovem Cary Grant com um risco ao meio feito de modo cuidadosamente preciso. Mas aí terminavam as semelhanças. O seu olhar era mais frio do que qualquer ator conseguiria representar e estava imbuído de um rígido sentido de propósito. Lane contaria mais tarde as suas aventuras num sotaque inglês de tal clareza que quase soava falso. Havia boas razões para isso. Era, na verdade, húngaro — o seu nome verdadeiro era Dyuri Lanyi —, e os seus anos formativos haviam sido passados como membro da equipa húngara de polo aquático.
Instalara-se na Grã-Bretanha quase uma década antes e tinha-se oferecido para o regimento dos Grenadier Guards quando a guerra rebentou. Mas os seus modos estrangeiros e origem centro-europeia tinham levado os funcionários do Home Office a dar-lhe ordem de deportação. Só a ação veloz dos seus contactos em altos cargos conseguira reverter a ordem.
«Absolutamente inglês em termos de perspetiva e mentalidade.» Assim clamou o seu mentor, Albert Baillie, deão da Capela de São Jorge, no Castelo de Windsor, que acrescentou que Lane tinha «uma capacidade de génio para se dar com as pessoas». Tanto melhor, pois iria precisar de todo esse génio nas semanas que antecederam o Dia D.
O desprezo que recebera dos burocratas de Whitehall poderia tê-lo afastado de vez da causa aliada. Em vez disso, galvanizou a sua teimosia. Em 1943 alistou-se na X-Troop, uma unidade de comandos de elite liderada pelos britânicos, composta por cidadãos estrangeiros cujos países haviam sido invadidos pelos nazis.
Uma vez aceite neste esquadrão poliglota, recebeu uma identidade falsa e uma história inventada. Também lhe foi permitido escolher um pseudónimo. Ele elegeu Smith, porque era tão inglês como uma chávena de chá. «Não seja palerma», foi a resposta de Bryan Hilton-Jones, o comandante imperturbável da X-Troop. «Nem sequer o consegue pronunciar na perfeição.» Era uma afirmação injusta — o inglês de Lanyi era quase demasiado per- feito —, mas Hilton-Jones não se podia dar ao luxo de correr riscos. Mandou-o contentar-se com Lane (anglicização de Lanyi) e fingir ser galês, para poder explicar os escorregões pontuais do seu sotaque artificialmente aparado.
Na segunda semana de maio de 1944, Lane recebeu informações detalhadas sobre a sua missão. Hilton-Jones disse-lhe que uma nova mina alemã fora descoberta durante um raide de bombardeamento da RAF. Um Spitfire largara inadvertidamente uma bomba nos bancos de areia do norte de França, desencadeando uma série de detonações espetaculares. Foi por pura sorte que as explosões foram apanhadas nas imagens de reconhecimento, pois permitiram aos analistas avaliá-las. Eles mostraram-se preocupa- dos por os nazis terem desenvolvido «uma espécie de mina nova» que podia ser detonada a toda a extensão de uma zona marítima. A película era demasiado granulosa para revelar o mecanismo de funcionamento da mina, mas era evidente que tal arma representava uma ameaça potencialmente catastrófica aos planeados desembarques aliados.
Hilton-Jones sabia que apenas existia uma maneira de descobrir mais — enviar um homem a terra. Para esse efeito, começou a planear um roubo audaz, que exigiria movimento furtivo, coragem e uma dose extra de bravata.
O plano consistia no seguinte: um barco-torpedo a motor escoltaria Lane e três camaradas pelo Canal da Mancha. Remariam em seguida para terra num pequeno bote negro. Uma vez lá, dois dos homens ficariam com o bote enquanto os outros dois rasteja- riam praia acima, fotografariam a mina com uma câmara de infra-vermelhos e depois retirar-se-iam rapidamente. Se tudo corresse bem, estariam de volta a Inglaterra a tempo do pequeno-almoço.
Mas também havia a possibilidade de tudo correr mal. Nesse caso, as consequências seriam de facto sinistras. A Ordem de Comandos de Hitler ditava que todos os comandos capturados fossem executados. Por si só isso já era aterrorizador, mas, antes de serem abatidos, Lane e companhia seriam certamente torturados pela Gestapo, cujos agentes estavam desesperados por obter informações sobre quando e onde os desembarques aliados poderiam ter lugar.
A maioria dos homens teriam pesado os prós e os contras ao ser-lhes pedido que participassem numa missão tão mortífera, mas Lane deu a mesma resposta sem hesitações que dera quando Hilton-Jones lhe perguntara pela primeira vez se gostaria de ir para os comandos. «Pode ter a certeza de que sim!»
A operação Tarbrush X fora marcada para 17 de maio, quando a lua nova prometia uma escuridão quase total. Lane escolheu um sapador chamado Roy Wooldridge para o ajudar a fotografar as minas, enquanto dois oficiais, o sargento Bluff e o cabo King, ficariam na costa com o bote. Os quatro eram destemidos e altamente treinados. Todos os quatro estavam confiantes no sucesso.
A missão começou muito bem. Os homens foram transportados pelo Canal no barco-torpedo a motor e depois transferidos para o bote negro de borracha. Remaram até terra e desembarcaram sem serem detetados exatamente à 01h40. Os elementos estavam do seu lado. A chuva caía em lençóis líquidos e uma forte ventania em terra borrifava de água gelada toda a praia. Para as sentinelas alemãs que patrulhavam a costa, a visibilidade era quase nula.
Os quatro comandos separaram-se então, conforme planeado. Bluff e King ficaram com o bote, enquanto Lane e Wooldridge se arrastaram pela areia molhada. Encontraram as minas recém-instaladas a poucas centenas de metros na praia e Lane puxou da câmara de infravermelhos. Mas, assim que tirou a primeira foto- grafia, a câmara emitiu um clarão de luz. A reação foi imediata. «Ouviu-se uma exclamação em alemão que, no espaço de dez segundos, foi seguida por um grito que parecia vir de alguém que tinha sido esfaqueado.» Pouco depois, três tiros de espingarda ricochetearam pela praia.
Foi o sinal para uma exibição de fogo de artifício como nenhuma outra. Os alemães dispararam dois tipos diferentes de foguetes para iluminar toda a praia e começaram em seguida a disparar loucamente para a chuva que caía, incapazes de determinar onde os intrusos se escondiam.
Lane e Wooldridge enterraram-se mais fundo na areia ao tentarem evitar as balas, mas continuavam desesperadamente expostos e deram por si apanhados num feroz tiroteio. Duas patrulhas inimigas tinham aberto fogo e tornou-se rapidamente aparente que estavam a disparar uma sobre a outra. «Podíamos ter achado graça», disse Lane depois do incidente, «se nos sentíssemos mais seguros.»
Eram quase 3h da manhã quando o tiroteio terminou e as lanternas alemãs foram finalmente desligadas. O sargento Bluff e o cabo King estavam convencidos de que Lane e Wooldridge estavam mortos, mas deixaram o bote para os seus antigos camaradas e prepararam-se para nadar a distância até ao barco-torpedo. Acabaram por trepar a bordo, enlameados e gelados, e foram levados de regresso a Inglaterra. Acabariam por ter o seu pequeno-almoço quente.
George Lane e Roy Wooldridge enfrentavam um pequeno-almoço bastante menos apetitoso. Fizeram sinais de luzes em direção ao mar, esperando atrair o barco-torpedo a motor, e de seguida emitiram uma luz vermelha contínua com a esperança de atrair a atenção. Mas não chegou nenhuma resposta. Enquanto rastejavam de bruços ao longo da linha de costa, perguntando-se o que fazer, tropeçaram no pequeno bote. Lane verificou as horas. Estavam a uma hora da alvorada, tempo insuficiente para se afastarem, e a ventania do Atlântico açoitava o mar até restar apenas um frenesi de cristas e fundos. Não era o tempo ideal para atravessar o Canal da Mancha num bote do tamanho de uma banheira.
«A tremer nas nossas roupas encharcadas, tentámos manter o ânimo discutindo a possibilidade de enviarem um hidroavião Catalina para nos encontrar e levar para casa.» Wooldridge deu uma olhada ao seu relógio e fez notar ironicamente que era naquela data que deveria ter partido em lua de mel. Lane riu-se do absurdo de tudo. «Ali estava ele, o desgraçado, comigo num bote.»
Quaisquer esperanças de serem salvos por um hidroavião foram rapidamente deitadas por terra na hora antes da madrugada. À medida que a cidade costeira de Cayeux-sur-Mer se afastava cada vez mais, Lane reparou subitamente num ponto no mar que aumentava de tamanho a cada segundo. Era uma lancha a motor alemã e aproximava-se a alta velocidade. Ele e Wooldridge deitaram imediatamente borda fora o seu equipa- mento mais incriminador, incluindo a câmara, mas guardaram os seus revólveres e munições. Lane estava a considerar um plano ousado: «sairmos a disparar, dominar a tripulação e roubar-lhes o barco.» Mas quando os seus perseguidores alemães começaram a circundar o bote, Lane percebeu que o jogo acabara. «Demos por quatro ou cinco metralhadoras Schmeisser a apontar ameaçadoramente para nós.» Os dois atiraram as pistolas ao mar e «com um gesto bastante teatral, erguemos as mãos ao alto».
Foram imediatamente presos e levados de regresso a Cayeux-sur-Mer, ziguezagueando cuidadosamente por entre as águas da maré. Lane não queria acreditar. Só nessa altura compreendeu que tinha navegado o bote pelo meio de um enorme campo de minas sem sequer perceber que ele existia. «Foi uma sorte inacreditável não termos sido reduzidos a pedaços.»
Os dois homens recearam pelas suas vidas. Foram separados ao desembarcarem e Lane foi levado para uma cave sem janelas, «muito húmida e fria». As suas roupas estavam encharcadas e tiritava com frio. Também precisava de alimento, pois não tinha comido desde que saíra de Inglaterra.
Não levou muito tempo até um oficial da Gestapo lhe fazer uma visita. «Claro que sabe que teremos de o fuzilar», ouviu, «porque é obviamente um sabotador, e temos ordens muito rígidas para matar todos os sabotadores e comandos.» Lane fingiu-se desafiado, dizendo aos seus interrogadores que matá-lo seria uma péssima ideia. O oficial limitou-se a fazer má cara. «O que estavam a fazer?»
Lane e Wooldridge tinham arrancado as insígnias de comandos e paraquedistas das fardas ainda na água, cientes de que tais insígnias os condenariam a uma execução sumária. Também tinham acordado uma história para explicar a situação difícil em que se encontravam. Mas tais precauções provaram ser em vão. O interrogador alemão examinou a farda de Lane e disse-lhe que «podia ver onde as insígnias tinham estado». Lane sentiu o seu primeiro arrepio de medo. «Eles sabiam que éramos comandos.»
O seu interrogatório piorou quando a Gestapo exigiu informações sobre os desembarques aliados, que sabiam estar iminentes.
«Passaram o tempo a ameaçar-me e eu passei o tempo a responder: “Desculpem, não vos posso dizer nada de importante porque não sei nada de importante”.» Recusaram-lhe comida e água — o preço a pagar pelo seu silêncio — e enfrentou perguntas cada vez mais agressivas. Só ao cair da noite o interrogatório terminou. Foram trancados em celas separadas e prepararam-se para uma noite sem dormir.
Lane recebera instrução em guerra psicológica e manteve a sua clareza de propósitos. Com o Dia D iminente, era imperativo que ele e Wooldridge conseguissem escapar. Na completa escuridão, apalpou o terreno ao longo da cave e descobriu que o cano da chaminé estava preso à parede com um pedaço de fio metálico. Desenganchou o fio, deu-lhe forma e depois inseriu-o na fechadura da cela. Depois de um momento de atrapalhação, ouviu um clique e a porta abriu-se. Não era sem fundamento que os comandos eram conhecidos como sendo de elite.
O corredor estava completamente às escuras. Lane foi andando aos apalpões usando as paredes como guia, mas, ao fazê-lo, tropeçou numa sentinela alemã deitada no chão. «Eu voltava para trás se fosse a si», rosnou o guarda. «Há outra sentinela na esquina.» A sua tentativa de fuga terminara antes de começar.
Lane mantinha-se sempre calmo sob pressão, mas até ele teve o susto da sua vida quando a porta da sua cela foi aberta de madrugada por um médico vestido com uma bata branca. «Pensei, meu Deus, o que vai acontecer agora?» Foi vendado, tal como Wooldridge, e as mãos de ambos foram atadas atrás das costas. Foram em seguida metidos num carro que partiu a alta velocidade. Lane perguntou onde iam. Não obteve resposta.
«Ao recostar-me no assento, compreendi que tinham atado a venda tão justa que eu podia ver por baixo dela, através dos furos de ambos os lados do meu nariz.» Ao contrário do que acontecera em Inglaterra, os alemães não tinham removido os sinais das estradas, pelo que Lane conseguiu apanhar de relance o nome das aldeias que iam passando. «Pouco antes de pararmos, tinha conseguido ver um letreiro que dizia: La Petite Roche Guyon.»
Partiu do princípio de que este seria o fim da sua jornada; que seria puxado para fora do carro e fuzilado.
Quando o carro militar alemão parou numa entrada privada, as portas abriram-se e a venda de Lane foi retirada por uma das sentinelas. Quando olhou para cima, piscou os olhos, sem conseguir acreditar. «Meu Deus!», sussurrou para si próprio. «Que sítio estranho! Vejam-me isto!» Um castelo fortificado estava fixado ao rochedo, em tempos um reduto feudal, cujos senhores do Século das Luzes o tinham convertido num palácio de prazeres do século XVIII. O afloramento vertical por trás era coroado por uma torre de menagem medieval, a torre original, enquanto o castelo em si estava repleto de ameias e contrafortes. O Château de La Roche-Guyon era o feudo hereditário da dinastia La Rochefoucauld, que aqui se acomodara em pompa e esplendor desde o reinado do ilustre Rei Sol, Luís XIV. O acrescento de uma fachada em arenito ajudara grandemente a aligeirar o seu exterior marcial, mas as cercas de arame farpado e os bunkers de betão testemunhavam que este era de novo um edifício militar.
Lane teve pouco tempo para admirar a vista. Ele e Wooldridge foram desviados para o átrio de entrada e levados para duas salas separadas. Quando Lane pensava que a sua manhã não se poderia tornar mais bizarra, surgiu um guarda com uma chávena de chá a escaldar.
A porta da sala onde estava detido fora deixada destrancada, pelo que a abriu e espreitou para fora. «Ali estava o cão de aspeto mais feroz» — um pastor-alemão — «que alguma vez vi na vida.» O cão rosnou e foi travado por um guarda. «E eu pensei: mais vale ficar aqui sossegado.»
Lane continuava sem fazer ideia porque tinha sido levado para ali, mas isso estava prestes a mudar. «Ao fim de pouco tempo, um oficial muito elegante entrou e, para meu espanto, apertou-me a mão.» O oficial falava inglês com um sotaque tão afiado como uma lâmina. «Como estão as coisas em Inglaterra?», perguntou. «É sempre tão bonita nesta altura do ano, não é?»
Lane beliscou-se à medida que este mundo de Alice no País das Maravilhas se tornava cada vez mais estranho. Uma pontada de fome trouxe-o de volta à realidade: disse ao oficial que não comia nada há quase quarenta e oito horas. O alemão pediu imensas desculpas e mandou imediatamente vir comida: sanduíches de galinha e café acabados de fazer. «Perfeitamente maravilhoso», pensou Lane. O seu ânimo melhorava a cada minuto.
Enquanto comia, o oficial voltou-se para ele e perguntou: «Tem consciência de que está prestes a conhecer alguém muito importante?»
Lane encolheu os ombros. Já nada mais o poderia surpreender.
«Preciso de ter a sua garantia», disse o alemão, «de que se vai comportar com a maior das dignidades.»
Lane repreendeu audaciosamente o oficial, dizendo-lhe que «sou um oficial e um cavalheiro e não me sei comportar de outro modo». Mas fez então uma pausa, pois a sua curiosidade fora espicaçada, e perguntou. «E quem vou eu conhecer?»
O oficial endireitou-se um pouco ao dar a resposta. «Vai conhecer Sua Excelência, o marechal de campo Rommel.»
Lane sentiu que tinha levado um murro inesperado. Rommel, a Wüstenfuchs ou «Raposa do Deserto», era um dos titãs do Terceiro Reich, o general aparentemente invencível que obtivera uma série de vitórias no Norte de África antes de encontrar a sua némesis na forma do general Montgomery. Vencido nas areias quentes do deserto, mas ainda adorado pelas suas tropas, fora condecorado pelo Führer com a maior de todas as honras: a Cruz de Cavalaria com Folhas de Carvalho, Espadas e Diamantes. Havia quem murmurasse que os seus melhores dias já tinham ficado para trás, mas ele recebera ainda assim o comando do Grupo B do Exército, defensor da linha costeira do norte de França. O Château de La Roche-Guyon era o seu quartel-general operacional.
«Estou encantado», disse Lane ao seu oficial, «porque no Exército Britânico temos uma grande admiração por ele.» Era verdade: o seu comportamento durante a campanha do Norte de África valera-lhe uma reputação de jogo limpo e cavalheirismo.
Lane ficou tão entusiasmado com a perspetiva de conhecer Rommel que se esqueceu de todos os medos da sua provável execução.
Ficou intrigado por ir estar frente a frente com o homem cuja missão era garantir que a invasão aliada de França falhasse.
O oficial sugeriu que se limpasse assim que tivesse terminado a última das suas sanduíches. Lane era o primeiro a admitir que estava «bastante imundo», mas até ele ficou espantado quando lhe deram uma lima de unhas e lhe pediram para retirar a sujidade das unhas. Uma vez terminada a manicura, foi conduzido pelos corredores do castelo até à biblioteca. Seria aí que o seu encontro com o marechal de campo Rommel teria lugar.
O sumptuoso interior do castelo deixou Lane sem fôlego. A dinastia Rochefoucauld vivia numa bolha de opulência, com uma arca de tesouros adquiridos (ou pilhados) ao longo dos séculos por uma sucessão de condes e duques macilentos. Tapeçarias de Gobelin debatiam-se com troféus de caça, e retratos de senhores ilustres povoavam as paredes do Salão dos Antepassados.
Também aqui o duque François de La Rochefoucauld — célebre autor de máximas de bochechas gordas — observava os convidados através de múltiplas camadas de verniz enegrecido pelo fumo.
Lane foi conduzido para a biblioteca em galerias, onde o seu olhar foi imediatamente atraído pela figura sentada a uma escrivaninha na outra ponta da sala. Era o marechal de campo Rommel, com os seus olhos glaciais e o seu queixo fendido. Exibia a sua expressão tradicional de impaciência.
Lane ouvira histórias sobre como Rommel gostava de enervar os seus visitantes fazendo-os «percorrer todo o comprimento de uma sala», uma forma de leve tortura psicológica que realçava a sua própria estatura enquanto diminuía a do seu convidado. Mas nesta ocasião, «levantou-se imediatamente, veio na minha direção, fez sinal para uma mesa redonda a um lado da sala e disse Setzen Sie sich» — «sente-se». Lane, que falava alemão perfeitamente, fingiu não compreender: dar-lhe-ia mais tempo para evitar responder às perguntas que lhe iriam certamente fazer.
Vários outros oficiais de alta patente juntaram-se-lhe à mesa, incluindo o general Hans-Georg von Tempelhoff (chefe do Estado-Maior do Grupo B do Exército) e o capitão Helmut Lang (ajudante de campo de Rommel). Uma vez todos sentados, Rommel voltou-se para falar com Lane. «Então é um desses gangsters dos comandos, não é?»
Lane esperou que isto fosse traduzido para inglês antes de fingir indignação. «Por favor, transmita a Sua Excelência que não compreendo o que ele quer dizer por gangsters dos comandos. Os gangsters são gangsters, mas os comandos são os melhores militares do mundo.»
Rommel pareceu apreciar a resposta, pois um breve sorriso atravessou-lhe o rosto. «Talvez não seja um gangster», respondeu, «mas tivemos algumas experiências muito más no que diz respeito aos comandos.»
Isso era verdade. Ao longo dos meses anteriores, os camaradas comandos de Lane na X-Troop tinham encenado uma série de raides toca-e-foge na linha costeira de França. Mas Lane dificilmente iria admitir tais atividades. Disse que tinha dificuldade em acreditar no que estava a ouvir do marechal de campo.
«Compreende que foi feito prisioneiro sob circunstâncias muito estranhas?», continuou Rommel.
Lane discordou da escolha de palavras. «Não diria que foram estranhas», disse. «Antes lastimáveis e infelizes.»
«Sabe que está numa situação muito grave.» Esta simples declaração foi seguida por um olhar penetrante — Rommel acusava-o de ser um sabotador. Lane pensou nisto um momento antes de se lançar numa atitude perigosa de bravata. «Se o marechal de campo achasse que eu era um sabotador», disse, «não me teria convidado para vir aqui.»
Até Rommel se mostrou surpreendido pela ousadia da resposta de Lane. «Então acha que isto foi um convite?»
«Naturalmente, sim, e recebo-o com grande honra. Estou encantado por estar aqui.»
Lane estava a jogar os seus trunfos de forma imprudente, ciente (como o reitor de Windsor notara) do seu temperamento para se dar bem com as pessoas. Sabia estar a meio caminho de ganhar o jogo quando o rosto traiçoeiro de Rommel se abriu num largo sorriso. O gelo quebrara-se e a conversa tornou-se então em algo mais próximo de uma conversa galhofeira do que de um interrogatório.
«Como está o meu amigo Montgomery?»
«Infelizmente não o conheço», disse Lane, «mas ele está a pre- parar a invasão, pelo que o vai ver em breve.» Acrescentou que pouco mais sabia de Montgomery do que o que era publicado no Times. Como reflexão, disse a Rommel que era um excelente jornal. «Acho que o devia ler.»
Rommel estava a começar a gostar do jogo. «E leio», disse. «Recebo-o de Lisboa.»
«Então, vai ver que ele está a preparar a invasão e que eles vêm para cá em breve para lutar consigo.»
Rommel escarneceu. «Seria a primeira vez que os ingleses travam uma batalha.»
«Ora essa!», gaguejou Lane, ofendido. «Então e o que aconteceu em El Alamein?»
«Isso não foram os ingleses», respondeu Rommel. «Os ingleses arranjam sempre outras pessoas para lutarem por eles. Os canadianos, os australianos, os neozelandeses, os sul-africanos.» Lane — um judeu húngaro que combatia pelos britânicos — mal conseguiu manter-se sério.
Rapidamente Rommel regressou ao tema dos desembarques aliados, perguntando a Lane onde achava que os soldados iriam desembarcar. Lane retorquiu que apenas era um oficial subalterno: não tinha acesso aos planos da invasão. «Se fosse eu a decidir», disse, «escolheria provavelmente a travessia mais curta.»
Rommel fez que sim com a cabeça e depois pronunciou uma opinião que apanhou Lane de surpresa. «A grande tragédia é que os britânicos e os alemães estão a lutar entre si, em vez de com- binarem as suas forças para lutarem contra o verdadeiro inimigo, que são os russos.»
Lane respondeu criticando o tratamento dos judeus pela Alemanha nazi. «Abominamos o modo como os tratam.»
«Ah, bem», disse Rommel. «As pessoas têm ideias diferentes sobre tudo. É impossível falar disso.»
Houve uma longa pausa e Lane depreendeu que o interrogatório estava a terminar. Estava determinado a prolongá-lo, pois estava a achá-lo fascinante. «Eu estava a divertir-me tremendamente, pelo que perguntei ao intérprete se, como o marechal de campo me tinha feito tantas perguntas, me seria permitido poder fazer algumas.»
Rommel troçou da sua impertinência, mas anuiu.
«O que eu gostaria de saber era isto», perguntou Lane, «a França está a ser ocupada por vocês. Como é que os franceses reagem a serem ocupados?»
A pergunta foi a deixa para o que Lane descreveria como «a mais notável das dissertações» sobre o exército ocupante, com Rommel a explicar concisamente como a Alemanha trouxera à França liderança e ordem. «O povo francês», declarou, «nunca estivera tão contente e tão bem organizado.»
«Valha-me Deus!», exclamou Lane. «Adoraria ver isso!»
«Pode vê-lo em pessoa», disse Rommel, «enquanto viaja por França.»
Lane riu-se com desdém. «Sempre que viajo com os seus rapazes, eles vendam-me e atam-me as mãos atrás das costas.» Rommel voltou-se então para Lang, o seu ajudante de campo, e perguntou se isso era absolutamente necessário.
Lang assentiu com a cabeça. «Oh, sim», disse. «São gente muito perigosa.»
Estas palavras sinistras assinalaram o fim da entrevista. O encontro terminara. Lane mostrou-se impecavelmente cortês até ao fim, agradecendo ao marechal de campo o seu tempo. Esperava obter uma suspensão da execução, mas assim que saiu voltou a ser vendado. Ele e Wooldridge foram em seguida levados a alta velocidade para o quartel-general da Gestapo em Paris, onde chegaram ao princípio da noite. «Fiquei aterrorizado quando percebi onde estava», admitiu Lane, que ficou ainda mais aterrorizado ao ouvir os gritos dos prisioneiros a serem torturados.
Mas o seu próprio interrogatório pela Gestapo foi realizado de modo tão moroso que não conseguiu impedir-se de perguntar se Rommel «intercedera a nosso favor e impedira que tanto o Roy como eu fôssemos executados». Na verdade, não foi fuzilado nem torturado. Em vez disso, foi enviado para o Oflag 9/AH, um campo de prisioneiros de guerra na Alemanha Central.
Enquanto Lane e Wooldridge eram transportados para Paris, Rommel regressou à sua escrivaninha incrustada do Renascimento — a mesma onde fora assinada a Revogação do Édito de Nantes de 1685 — e escreveu uma carta à sua querida mulher, Lucie-Maria. Falou-lhe da sua extraordinária entrevista com um «sensato oficial britânico» cujo charme e bravura lhe haviam poupado a vida.
Aqueles mais próximos de Rommel não se mostraram surpreendidos pela generosidade do marechal de campo para com os seus prisioneiros. «Ele respeitava um código de cavalheirismo que se tornara estranho nos nossos tempos.» Assim pensava Hans Speidel, o seu chefe do Estado-Maior, que acrescentou que o comportamento de Rommel era «visto por muitos como sinal de fraqueza». Mas era também uma demonstração privada de força. Ao salvar George Lane da execução, Rommel estava a infringir diretamente a Ordem dos Comandos de Hitler.
Nas suas cartas diárias para Lucie-Maria, Rommel contava-lhe todas as intrigas quotidianas em La Roche-Guyon. «Meine liebste Lu»*, começava, antes de contar histórias dos seus queridos cães, Treff e Ebbo, das suas caçadas ao javali selvagem com o duque simpatizante nazi, e do facto de a primavera ainda não ter chegado ao vale do rio Oise.
«O tempo ainda está frio», escreveu nessa mesma noite de maio, «e finalmente chove. Os britânicos vão ter de ter um pouco
mais de paciência.» Não fazia a mínima ideia de quando os Aliados poderiam chegar e o seu interrogatório a Lane não lhe dera nada a que se agarrar. Mas tinha um palpite sobre onde poderiam chegar. Discordava da alegação de Lane de que desembarcariam no Pas de Calais. As baterias de canhões e as defesas de praia do Cap Gris Nez eram tão impressionantes que qualquer ataque terminaria numa chacina. «De certeza que não irão desembarcar ali», disse ao jornalista Lutz Koch.
Tinha cada vez mais a certeza de que desembarcariam na Normandia, nas costas do Calvados, onde as amplas areias criavam uma zona de desembarque perfeita tanto para a infantaria como para a artilharia. Durante uma inspeção da longa praia de Saint-Laurent-sur-Mer, voltara-se para o oficial responsável, o major Werner Pluskat, e dissera: «Pluskat, em minha opinião, é exatamente aqui que os Aliados irão desembarcar. É precisamente o tipo de local que os Aliados vão escolher. Foi o que fizeram em Itália.»
Nisto, como em tantos dos seus palpites militares, Rommel provaria estar certo. Os Aliados tinham, de facto, escolhido esta praia como uma das suas cinco praias de desembarque. Deram-lhe o nome de código Omaha.
* «Minha querida Lu», em alemão, no original. [N. T.]
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