A versão oficial dos acontecimentos ainda está para ser contada. Entre a história da mãe, dos suspeitos e a de bruxaria e dívidas contada por vários meios de comunicação social, espera-se agora o apuramento dos factos pelas instâncias judiciais sobre o que levou à morte da pequena Jéssica, uma menina de três anos que foi assassinada em Setúbal.

No entanto, a história desta menina pode ser contada, factualmente, por vários processos na justiça.

A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças revelou entretanto que foi aberto em 2019 um processo de promoção e proteção da menina, tendo o caso seguido para o Ministério Público (MP).

Numa nota, a comissão nacional indicou que a sinalização de Jéssica Biscaia, nascida em janeiro de 2019, foi feita pelo Núcleo Hospitalar de Crianças e Jovens em Risco de Setúbal, “por a criança estar exposta a ambiente familiar que poderia colocar em causa o seu bem-estar e desenvolvimento”.

A medida de proteção, entretanto decidida pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Setúbal, não foi aceite pelos pais, o que originou de imediato o envio do processo ao MP, em 31 de janeiro de 2020.

Segundo informação do Tribunal de Setúbal, em 18 de maio de 2020, o MP, com base numa sinalização de violência entre os progenitores ocorrida na presença da criança, instaurou um processo judicial de proteção de Jéssica.

Em junho de 2021, foi efetuada uma avaliação da medida, propondo-se a manutenção por se considerar existirem ainda fragilidades no agregado familiar (períodos de rutura e de reconciliação na relação dos pais), e a avó materna assumiu a responsabilidade de supervisionar os cuidados parentais à neta, com quem estaria todos os dias.

Nesse mês, a equipa técnica multidisciplinar da Segurança Social de Setúbal relatou ao tribunal que, de acordo com a informação prestada pela avó, a situação de violência doméstica entre o casal tinha acalmado.

Ainda de acordo com as informações dadas pelo tribunal, já em maio de 2022, foi efetuada nova avaliação, referindo que o casal estaria separado, com o progenitor a trabalhar no estrangeiro desde há cerca de quatro meses e sem subsistir o quadro de violência entre o casal.

Com base nesta informação, o Ministério Público promoveu o arquivamento do processo em 24 de maio deste ano, confirmado por um despacho judicial seis dias depois.

Menos de um mês depois, Jéssica morreu.

A morte da menina ocorreu na segunda-feira, depois de a mãe ter ido buscá-la a casa de uma mulher que identificou às autoridades como ama da criança.

De acordo com a mãe, a menina esteve cinco dias ao cuidado da mulher e tinha sinais evidentes de maus-tratos, como hematomas, pelo que foi chamada a emergência médica.

A criança foi assistida na casa da mãe e transportada ao Hospital de São Bernardo, onde foi sujeita a manobras de reanimação, mas não sobreviveu aos ferimentos.

Na quinta-feira, a Polícia Judiciária revelou que deteve três pessoas por suspeita do homicídio: uma mulher de 52 anos a quem a mãe da criança devia dinheiro, inicialmente identificada como ama, o seu marido, com 58 anos, e a filha, de 27 anos.

Nos interrogatórios, a mulher inicialmente identificada como ama e o marido prestaram declarações, negando agressões e afirmando que a menina teria caído de uma cadeira, segundo vários meios de comunicação social. Já a suspeita mais nova não prestou declarações perante o juiz de instrução criminal na sexta-feira, ao contrário dos outros arguidos, por “estratégia da defesa”, afirmou hoje o advogado da jovem.

Hoje, foram conhecidas as medidas de coação dos detidos que vão aguardar o decurso da investigação em prisão preventiva, segundo a decisão tomada hoje pelo tribunal.

As medidas de coação foram anunciadas aos jornalistas pelo juiz presidente da Comarca de Setúbal, António Fialho, pouco depois de o juiz de instrução criminal ter lido a decisão aos três arguidos no processo.

“O Ministério Público pediu segredo de justiça do processo, que foi deferido pelo tribunal. Relativamente aos arguidos que foram hoje apresentados a tribunal para primeiro interrogatório judicial, duas pessoas do sexo feminino e uma do sexo masculino, ficaram todos em prisão preventiva”, disse o juiz presidente da Comarca de Setúbal, numa curta declaração, depois de o juiz de instrução Criminal ter procedido à leitura da decisão aos arguidos.

Questionado pelos jornalistas, o juiz António Fialho escusou-se a revelar os crimes de que os três arguidos estão indiciados, invocando o segredo de justiça. Mais tarde, a Comarca de Setúbal divulgou um comunicado em que confirma que na base decisão estão um crime de homicídio qualificado, consumado; um crime de rapto agravado, consumado; um crime de extorsão, tentado; e um crime de ofensa à integridade física qualificada, consumado. Ainda sobre as duas suspeitas do sexo feminino recai uma acusação sobre o crime de coação.

"O inquérito encontra-se, assim, numa fase inicial e tem em vista o cabal apuramento dos factos em investigação e de quaisquer outros que venham ainda a apurar-se", lê-se na nota.

De acordo com os trâmites legais, espera-se que dentro de um período de alguns meses os três suspeitos sejam presentes a um juiz para o julgamento, onde serão confrontados com os resultados da investigação.