Itália é o país europeu com mais casos de contaminação pelo Covid-19. O surto tomou o país de assalto: Entre os seis casos de infeção na pequena cidade de Codogno e os agora 283 registados — nos quais se incluem sete mortes — passaram apenas cinco dias.
Até segunda-feira os casos em Itália estavam circunscritos a quatro regiões do norte do país — Lombardia (cuja capital é Milão), Véneto (Veneza), Emilia Romanha (Bolonha), Piemonte (Turim) e Lácio (Roma) —, mas esta terça-feira as autoridades anunciaram o registo do primeiro caso no sul, na Sicília, e outro na região da Toscana.
A maioria dos contágios, 212, aconteceu na Lombardia, principal foco da epidemia no país, onde foram adotadas medidas excecionais e onde foram registadas seis das sete mortes confirmadas em Itália.
Uma circular do Ministério da Saúde para a região, de 23 de fevereiro, dá conta dos constrangimentos: estão suspensas as manifestações e eventos; as escolas estão encerradas, assim como os museus, cinemas e outros locais de cultura; estão suspensas as viagens de cariz educacional; quem esteve em zonas de risco identificadas pela Organização Mundial de Saúde tem obrigação de o comunicar às autoridades sanitárias locais; os bares e locais de entretenimento noturno têm de estar encerrados entre as 18h00 e as 6h00; os centros comerciais e mercados devem estar fechados ao sábado e ao domingo, com exceção de locais onde se vendam bens alimentares, e as feiras estão suspensas.
Carmen Palheira, agente imobiliária, 40 anos, a viver em Milão há 16, dá conta ao SAPO24 de uma cidade que mudou do dia para a noite: "Até domingo [23 de fevereiro] às 12h00 estava tudo normal, mas depois da circular [citada acima] as pessoas ficaram com medo e tudo mudou. Este domingo de manhã fui às compras e estava tudo normal, mas à tarde os supermercados estavam sem água e sem bens de longa duração, como enlatados e pasta [massa]".
"As pessoas estão com medo que fechem a cidade e estão a esvaziar os supermercados", conta a agente imobiliária, acrescentando que "o maior problema é o alarmismo e a desinformação. Os supermercados estão a emitir comunicados a dizer que o abastecimento vai continuar e que não há nenhum tipo de problema".
Mas o alarmismo está a potenciar outro tipo de comportamentos: "[Os partidos] estão a aproveitar a situação para fazer guerra política, as pessoas chinesas estão a ser atacadas, há relatos de pessoas nas cidades periféricas a fingir que são pessoal médico para entrar nas casas e roubar, se alguém ousa tossir todos olham de lado, parece que tens peste. Andam todos à procura de máscaras e desinfetante, que já não há ou que são demasiado caras".
Com tudo encerrado — "depois das 18h00 só podem funcionar os restaurantes, mas alguns estão fechados até data a definir, as escolas, ginásios, cinemas e centros de qualquer tipo estão fechados" —, "a maior parte das pessoas ficou em casa a trabalhar. Às 09h00 o metropolitano está vazio".
Pelo menos até dia 1 de março este será o cenário em Milão, mas "a ordem do governo pode ser renovada". No seu caso, os filhos já tinham programado passar as férias de carnaval com os avós, pelo que vão antecipar a partida. "Oito dias fechados em casa é que não", confidencia. Carmen e o marido continuarão a trabalhar em casa, não estão totalmente tranquilos, mas dizem-se calmos e Carmen considera que a atuação das autoridades em Milão está a ser a mais correta: "Estão a agir bem e com rapidez. Emitem comunicados duas vezes ao dia. O nosso problema são as pessoas que falam sem saber, a desinformação", reitera.
Paolo, 57 anos, que vive perto em Milão, partilha da opinião de Carmen e diz que "o governo esta a fazer o melhor que pode", apesar de alguma "especulação" por parte da oposição, que diz que as fronteiras deviam ter sido fechadas mais cedo, conta. A grande questão para este comercial está na rapidez com que o surto cresceu em Itália. "Será que na Alemanha ou na França estão a fazer controlo?", questiona. Calmo, diz que não tenciona fazer uma corrida ao supermercado. "Aqui estou eu e a minha mãe, que vive a três quilómetros de mim, não precisamos de muito. Claro que é diferente para uma família com crianças". Apesar de as medidas de contingência estarem em vigor até 1 de março, confessa que não imagina que a situação fique resolvida em tão pouco tempo. Todavia, diz estar "tão preocupado quanto se pode estar quando uma coisa é desconhecida. Claro que não sabes se te estão a dizer tudo, mas se não estão também é para não gerar mais pânico do que aquele que já existe — e não posso criticar o governo se estiver a fazê-lo".
Depois da Lombardia, a região mais afetada é Véneto, com 38 casos. Esta área do país registou a primeira vítima fatal na sexta-feira passada. É de lá que nos fala Luísa, funcionária pública a trabalhar numa empresa de proteção ambiental.
"Hoje [segunda-feira] saí de casa de bicicleta, como sempre, e parecia um domingo de manhã, não havia ninguém nas ruas. Já não há máscaras, os supermercados estão com as prateleiras vazias ou quase e as lojas e centros comerciais estão fechados. Isto pelo menos até dia 1 de março", conta.
Também no trabalho houve uma série de mudanças: "Só 50% dos funcionários apareceram [na empresa] porque fecharam as escolas. Fizemos uma videoconferência com todos os diretores para decidir as normas a seguir. A primeira medida é perceber quantas pessoas já estão em quarentena, quantas estão doentes ou a fazer tampão (teste) e quantas estão à espera, quem ficou em casa com as crianças, etc. Temos quase 2.000 pessoas para monitorizar. E esta é só a primeira medida", conta.
A par, foram "bloqueadas as reuniões internas e externas, só é permitido fazer webconferences [fazer reuniões com recurso a plataformas digitais], quem pode faz teletrabalho e as viagens de trabalho também foram canceladas, só sendo permitidas em casos de emergência ambiental e com todas as proteções". Luísa dá ainda conta de pequenas alterações para evitar a circulação das pessoas em espaços públicos: "Ao contrário do que acontecia antes, agora estamos autorizados a comer no escritório", exemplifica.
Tal como na Lombardia, também a região de Véneto emitiu uma circular com regras que visam conter o contágio. Emitida a 23 de fevereiro, prevê igualmente a suspensão de todos os eventos públicos, o encerramento de museus, escolas, a obrigação de comunicar às autoridades caso se tenha estado numa zona de risco. Esta circular prevê ainda limitações nas visitas a pacientes internados nos hospitais locais e deixa uma série de recomendações de higiene, sendo elas a de lavar bem as mãos, evitar o contacto com pessoas que sofram de problemas respiratórios agudos, não tocar com as mãos no nariz, boca e olhos, não tomar antibióticos ou antivirais sem prescrição médica, desinfetar superfícies com produtos à base de álcool ou cloro, usar máscara apenas se suspeitar que está doente ou se estiver a ajudar pessoas doentes, contactar o número de emergência de saúde se tiver sintomas como febre ou tosse e, por fim, um recado: os animais de companhia não espalham o novo coronavírus.
Giovanni Valentini, advogado natural de Bolonha, mas que trabalha em Milão, decidiu ficar na sua cidade natal enquanto a situação não acalma. É de lá que faz um relato da situação ao SAPO24.
"O meu pai e a minha irmã são médicos e eu estava em contacto com eles porque estava um pouco preocupado. No sábado [22 de fevereiro], o meu pai disse-me para não usar transportes públicos quando voltasse para Milão e ontem de manhã [domingo, 23 de fevereiro] disseram-me que era melhor que ficássemos em Bolonha. Então liguei para a minha firma e concordámos que era melhor, pelo menos durante uma semana, não ir trabalhar para o escritório e fazê-lo a partir de casa", conta. A sua esposa, que trabalha numa empresa de moda, fez o mesmo — apesar de a empresa ter mostrado alguma resistência inicial à proposta. "Estamos a evitar ir a restaurantes e coisas do género, avisaram-me que o melhor seria tentar suavizar a nossa vida social", confidencia.
Em Bolonha, conta, "as pessoas estão bastante relaxadas, mas há um sentido de responsabilidade". Ao contrário do cenário descrito em Milão e Véneto, "nos supermercados está tudo normal, mas pessoas estão a ser cuidadosas, mas sem exageros".
Giovanni Valentini considera que as autoridades italianas "subestimaram os riscos. O correto era parar voos vindos da China ou pelo menos fazer quarentena às pessoas que vieram da China. Acho que isso não foi feito e não havia informação suficiente, ou não era claro que qualquer pessoa que tivesse entrado em contacto com o vírus tivesse de o revelar o mais depressa possível", diz.
No entanto, considera que a resposta das autoridades neste momento "está a ser boa. Estão a tentar fechar tudo e passar a mensagem de que a situação é perigosa. O sistema é muito bom, os nossos médicos são incríveis, mas o governo subestimou os riscos", conclui.
Sobre as medidas de segurança transmitidas em Bolonha, conta que também nesta região as escolas estão fechadas e os eventos públicos foram cancelados. Por agora, os bares e pubs continuam funcionar, mas é recomendado que se evitem as viagens de transportes públicos. "As indicações quanto a higiene também foram muito claras, foco em lavar as mãos", conta. Ainda não tem previsão para regressar a Milão, mas não conta fazê-lo antes do início de março.
A rapidez e a proximidade do surto em Itália está a inquietar as autoridades europeias. Também a Organização Mundial de Saúde, que declarou o surto do Covid-19 como uma emergência de saúde pública internacional, alertou esta segunda-feira para uma eventual pandemia, considerando muito preocupante o aumento repentino de casos em Itália, Coreia do Sul e Irão (as autoridades iranianas anunciaram hoje que o número de mortos no país é agora de 15, de entre 95 casos confirmados).
Em Portugal, "reforçar" é a palavra de ordem. A Direção-Geral da Saúde (DGS) anunciou ontem que ativou os hospitais de Santa Maria, S. José (Lisboa), Coimbra e Santo António (Porto) para validar casos suspeitos de infeção pelo novo coronavírus (Covid-19). Tratam-se de hospitais de referência de "segunda linha" para a contenção da infeção pelo Covid-19. Até então, apenas estavam ativados como hospitais de referência para estes casos o Curry Cabral e o Dona Estefânia, em Lisboa, e o S. João, no Porto.
Já a partir de amanhã, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e o Hospital Curry Cabral, em Lisboa, passam a poder fazer análises laboratoriais aos casos suspeitos. Até à data, as análises são feitas no Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em Lisboa, e, mais recentemente, no Hospital S. João, no Porto.
A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, adiantou ainda que existem 2.000 quartos de isolamento nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, muito embora "qualquer zona possa ser transformada numa zona de isolamento" caso venha a ser necessário. O objetivo é "preparar e retardar as cadeias de transmissão".
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos e Saúde Pública, explica ao SAPO24 que "se, de repente, tivéssemos uma situação semelhante à de Itália e o número de casos disparasse, teríamos de pôr em ação um plano de contingência, que tem de prever diversas medidas para diversos contextos", como por exemplo "a suspensão de atividades onde exista concentração pessoas".
"O cenário de Itália não é tão impossível assim", diz. "É preciso preparar o país para as diversas possibilidades e é por isso que é preciso antecipar cenários. Mas o problema não se coloca só para Portugal, é para todos os países. Felizmente temos sido bem-sucedidos a perceber as cadeias de transmissão, mas temos de ter capacidade de encarar que não dominamos todas as vias de transmissão, todas as possibilidades", acrescenta.
Até ao momento, todavia, "não há dados concretos para avaliar se o vírus vive fora do organismo dos doentes. O que podemos dizer é que o que conhecemos não vai nesse sentido", conclui.
Registaram-se em Portugal 16 casos suspeitos de infeção — 15 dos quais deram negativo e um sobre o qual se espera resultados das análises laboratoriais.
A quem regressou recentemente de Itália, Graça Freitas aconselha “tomar aquelas precauções básicas de higiene das mãos, higiene respiratória, não tossir nem espirrar em direção a outras pessoas ou até mesmo falar, manter algum distanciamento social”, mas também “não frequentar sítios fechados e com muita gente, a não socializar em termos de afetos. Muitos beijos e muitos abraços não serão o mais indicado nesta altura”, salientou em declarações à imprensa no início desta semana.
Insistindo para que “as pessoas se mantenham tranquilas”, a diretora-geral da Saúde sublinha que quem eventualmente tenha sintomas - que incluem febre, dores no corpo e cansaço - deverá contactar a linha SNS24 através do número 808 24 24 24.
O país está também a acompanhar a par e passo o caso de Adriano Maranhão, o português infetado com o novo coronavírus, tripulante do cruzeiro Diamond Princess, onde foram confirmados 700 casos, que resultaram em quatro mortes. O canalizador no navio de cruzeiros atracado no porto japonês de Yokohama foi hoje transferido do barco para um hospital na cidade de Okazaki, na província de Aichi, onde será submetido a testes e análises.
Questionada sobre o estado de saúde do português, Graça Freitas explicou ontem que os sintomas do tripulante indicavam que a situação não era grave e expressou a sua “empatia e simpatia” para com a família do trabalhador português, cuja mulher tem manifestado, em declarações à comunicação social, queixas de falta de acompanhamento da situação do marido.
A responsável afirmou que inicialmente havia suspeitas de infeção entre oito portugueses que estavam no navio Diamond Princess – três passageiros e cinco tripulantes —, mas só Adriano Maranhão acusou a doença, apesar de não ter inicialmente sintomas.
Face às informações que se conhecem sobre o seu estado de saúde, Ricardo Mexia nota que "se trata de um doente, mas não tem sintomas". "Sem menorizar o estado difícil em que se encontra, o especialista coloca a tónica no risco de transmissão: "Imagine que não havia sintomas em ninguém no navio cruzeiro e que chegavam ao destino e, como não faziam testes, ninguém sabia que era positivo e iam todos à sua vida, para suas casas, ter com as suas famílias. Esse é o perigo da cadeia de transmissão".
Ricardo Mexia explica ainda ao SAPO24 no caso de Adriano Maranhão ser transportado para Portugal, o cenário seria semelhante ao dos portugueses repatriados da China. "Teria de ser transportado em isolamento e depois ser tratado como um doente", diz.
O surto do Covid-19, que começou na China no final do ano, e o balanço provisório da epidemia é de 2.705 mortos e mais de 80 mil pessoas infetadas, de acordo com dados reportados até hoje, por cerca de 30 países.
Além de 2.665 mortos na China, onde o surto começou no final do ano, há registo de vítimas mortais no Irão, Coreia do Sul, Itália, Japão, Filipinas, França e Taiwan.
*Com agências
(Notícia atualizada às 16:22 com o resultado negativo do 15º caso suspeito de infeção em Portugal)
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