José Miguel Sardica, doutorado em História Contemporânea e professor associado na Universidade Católica, membro da Direção da Sociedade Científica da UCP e, neste momento, diretor-adjunto do Doutoramento Interuniversitário em História falou com o SAPO24, no ambiente relaxado da sua casa, numa conversa franca e sem tabus sobre História e a forma como hoje é abordada.
Focando-se no ensino da História na atualidade, a importância dos factos permanecerem factos, e do Doutoramento Interuniversitário em História, o único que junta quatro universidades no país, a conversa não descurou a cultura de cancelamentos e o estudo do colonialismo. José Miguel Sardica não se esquivou de dar a sua visão acerca das novas contextualizações, as novas agendas, e dos não menos relevantes temas das devoluções históricas, do wokismo e de todas estas realidades no mundo e em Portugal.
O encontro com o Professor de História comtemporânea aconteceu antes do ataque terrorista do Hamas a Israel, e da posterior invasão da Palestina, daí esse tema ter ficado de fora da conversa, embora se fale sobre a Guerra na Ucrânia. Nos temas da atualidade portuguesa José Miguel Sardica referiu ainda o crescimento do Chega e a presença do PCP na política portuguesa.
A História é vista por muitos, incluindo jovens, como algo aborrecido e desinteressante. Sente que os jovens estão desinteressados pelos temas relacionados com História e com cultura?
Sinto. Em todas as turmas a que dei aulas eu tenho um pouco a sensação que os jovens olham para a História como aquela cadeira que os manda fixar muitos nomes, datas e conceitos. Eu tento contrariar um bocadinho essa visão, apesar de tudo porque dou aulas na universidade, e não no secundário, e a alunos que não estão a fazer História, mas em que a História está dentro dos seus cursos.
O meu esforço com estes alunos é convencê-los de que a História tem de ter alguns factos e datas, porque é isso que enche a narrativa histórica, e nós também nas nossas vidas também temos nomes, também temos datas, também temos factos que pontuaram a nossa vida. Se cada um de nós se puser a pensar no que marcou a sua vida, provavelmente foi uma pessoa, um acontecimento, ou um dia. E a História também é feita disso. Porém, a História enquanto disciplina tem de ser, sobretudo, uma maneira de pensar, uma maneira humana de pensar, de fazer interrogações, de perguntar à realidade, de perguntar tendências, perguntar fenómenos, de estar sensibilizado para a novidade e para a dificuldade, bem visível nos exemplos da História.
O que tento fazer é mostrar aos alunos que estamos ali para contar uma História grande, de várias vidas, num tempo longo, e que essa História pode ser uma lição de vida até para as vidas deles. Portanto, devemos tentar superar um bocadinho a noção de que a História é uma coisa que se empina, se decora e se despeja num teste.
Quem foi meu aluno sabe que as questões dos testes são de desenvolvimento. Com os alunos de Comunicação Social peço-lhes sempre para verem as questões como um artigo de reportagem, ou uma peça longa, e que a propósito de um acontecimento o editor lhes pede uma contextualização histórica.
Recentemente, aconteceu a Assembleia Geral da ONU. É interessante pôr as pessoas a pensar se os objetivos traçados em 1945 se mantêm atuais, e se as potências com direito de veto no Conselho de Segurança devem ser as mesmas. Tudo isto são questões que podem ajudar os jovens a estabelecer comparabilidade entre a atualidade e os temas da História.
O grande desafio de ensinar História é fazer os jovens perceber que esta não é uma disciplina que os ensina a mexer em tecnologia, ou a montar som e imagem, mas ajuda-os a criar conteúdo.
Os historiadores foram as pessoas que se surpreenderam menos com o início da guerra na Ucrânia.
Neste momento da História, com a guerra na Ucrânia, dá importância à necessidade de quem contacta diariamente com o público ter acesso a estes conteúdos históricos?
Sim, é essencial. Dou um exemplo: Os historiadores foram as pessoas que se surpreenderam menos com o início da guerra na Ucrânia. Isto porque, se formos observar a História de onde vem Vladimir Putin e as relações da Rússia com as antigas repúblicas soviéticas, e se se perceber o vazio em que caiu a Rússia pós-soviética na década de Boris Ieltsin, a invasão da Ucrânia torna-se menos surpreendente. Para não dizer já que a primeira invasão foi efetivamente em 2014, quando a Rússia invade a Crimeia.
Com este exemplo, um jovem que nada saiba sobre História pode pensar que agora começou uma guerra inteiramente nova, mas não é verdade, os sinais estavam lá.
Não digo que se pudesse prever o começo efetivo, mas tínhamos contexto. Agora resta saber como vai acabar, e a História pode dar-nos algumas lições de como já se lidou com conflitos semelhantes, como o Vietname, as Coreias, o Afeganistão, entre outros.
No caso da guerra na Ucrânia, é muito interessante pensar num livro recente de Timothy Garton Ash, chamado “Pátrias - Uma História Pessoal da Europa”, em que o autor reflete sobre a História da Europa, desde 1945 até aos dias de hoje, e onde diz que uma das coisas que estava quase escrita nas estrelas que ia acontecer era o contra-ataque russo. Isto porque a História ensina-nos que, quando um império desaparece, ele deixa mágoas e deixa um desejo de se reerguer. Portanto, quando desaparece o Império Soviético, as pessoas pensaram que a história acaba aqui, é o fim. Os Estados Unidos venceram a guerra fria e não vai haver mais conflitos. Ora, quem aprendeu História sabe que no passado, nos casos do império romano, no império napoleónico, nos impérios feudais, ou como aconteceu com Felipe II, quando um império se desagrega, mais cedo ou mais tarde quer voltar a ter a grandeza do passado. E é isso que se está a ver com Vladimir Putin.
E, falando no presidente russo, qual o fim para Putin?
Existem vários finais possíveis. Pode acabar fechado no seu bunker, como Adolf Hitler, pode acabar capturado pela ofensiva ocidental, como Saddam Hussein, pode acabar executado pela sua própria elite, como Júlio Cesar, tudo coisas que podemos prever com a História.
O problema até lá é o que Putin será capaz de fazer, e daí o trabalho dos ucranianos em mover as opiniões para uma causa que é justa, mas que custa dinheiro e nem todos vão querer pagar a fatura.
Zelensky ainda só teve um ano e meio de guerra e já parece uma eternidade.
Mas os ucranianos têm do lado dele uma agradável surpresa com Volodymyr Zelensky, enquanto chefe de Estado. Mas desenganem-se: ele não é o próximo Winston Churchill. Apesar disso, começou a ganhar a guerra - e a pôr a sua imagem na História - no dia em que os Estados Unidos lhe oferecem escolta política para abandonar a Ucrânia e ele diz que não quer boleia para fora do país, mas sim armas. Ao não ter fugido, mostra resistência e que o conflito está para ficar.
A comparação com Winston Churchill é justa porque protagonizou um ato deste tipo, durante a Segunda Guerra Mundial. Quando havia a oportunidade de Churchill dizer que já não havia nada a fazer, tudo tinha caído - até França -, e mais valia emigrar para os Estados Unidos, optou por ficar e resistir. Ao resistir, mobilizou, e ao mobilizar criou as condições para vencer. Demoraram quatro ou cinco anos, mas Zelensky ainda só teve um ano e meio de guerra e já parece uma eternidade.
Acha que os jovens se esquecem do passado e perdem lições que podiam levar para o futuro?
Sim, a História deve sobretudo ser útil no sentido de nos dar experiência de vida e de resiliência, de adaptação à mudança.
Por exemplo, nós vamos celebrar em 2024 os 50 anos de revolução dos Cravos, do 25 de abril, uma comemoração que vai até 2026. De que adianta falar sobre o 25 de abril aos jovens de hoje? Só adianta se eles perceberem, em primeiro lugar, quão jovem é a democracia portuguesa quando comparada com outros países, como Inglaterra ou os Estados Unidos, e por isso devem ser mais tolerantes e mais lutadores para com os problemas de uma democracia com apenas 50 anos. Mas, ao mesmo tempo, devem compreender também que a democracia em Portugal, justamente por ser jovem, tem problemas que os chamam.
Os jovens devem conhecer o Estado Novo, os perigos do autoritarismo, e a maneira como Portugal foi capaz de se reinventar para uma vocação europeia redescoberta. Devem conhecer a juventude que Portugal tem na Europa, mas também a senioridade - porque não chegámos agora. Ou seja, para os jovens, a História deve ser vista como uma lição de vida, para os preparar para os problemas de hoje e do seu futuro.
E quais são os temas mais interessantes para os jovens?
Eu dou História contemporânea internacional, e sinto que os alunos têm especial fascínio por tudo aquilo que são regimes autoritários, como o comunismo, o fascismo, o nazismo, entre outros. Não sei se é pelo voyeurismo, se é por ser algo interdito, ou por nunca terem vivido nestes regimes.
Além disto, a guerra é um tema muito interessante para os jovens, bem como as consequências económicas e sociais da mesma.
Os jovens começam a ganhar consciência que vivem num mundo onde a democracia é apenas uma alternativa possível.
Acha que o interesse por estes temas, relacionados com regimes ditatoriais, cresceu com a guerra na Ucrânia?
Sim, claro. Tem tudo a ver com Vladimir Putin, com Xi Jinping, entre outros protagonistas. Os jovens começam a ganhar consciência que vivem num mundo onde a democracia é apenas uma alternativa possível, e à medida que os jovens se tornam adultos no mundo, veem países que não nos querem imitar, que não gostam da maneira de como nós somos, das nossas instituições e da democracia, até bem pelo contrário.
Começa a haver até um sentimento anti-ocidental, anti-democrático e anti-liberal, e se a História lhes der o conhecimento de que sempre houve outras alternativas e não vivemos sozinhos no mundo, talvez isso os torne mais atentos aos sinais de regimes políticos atuais que podem vir a afetar a nossa ordem de valores.
O cancelamento, o wokismo e a cultura do pós-colonialismo
O que pensa sobre reescrever-se a História para inserir novas contextualizações? Como, por exemplo, o famoso caso que envolve a antiga deputada Joacine Katar Moreira e a vontade de retirar quadros da Assembleia da República para colocar num local onde fosse feita uma melhor contextualização histórica. E, a fazer-se, como é que estas contextualizações devem ser feitas?
Não acho necessário fazer-se contextualizações, mas neste caso já estamos no horizonte do cancelamento de algumas realidades, como deitar abaixo estátuas, depurar linguagens, evitar conceitos, acusar comunidades, nomeadamente o homem branco europeu e ocidental, de todas as malfeitorias históricas deste há vários séculos. E eu acho que a História não deve ser uma vingança, ou seja, nós não devemos recorrer à História para nos vingarmos ou ajustar contas com alguém.
Uma pessoa dizer que a História nos manda deitar abaixo estátuas é mentira, porque a História é feita dessas estátuas.
A História é o que é, e a História tal como a espécie humana a foi fazendo é desequilibrada no que toca a igualdade racial, entre povos, entre sexos, géneros, e o avanço na História fez-se integrando mulheres e comunidades negras, índios, entre outros. Mas com isto não acho que a História deva ser baseada em vingança ou em justicialismo anacrónico, porque os nossos valores não devem ser usados para julgar o passado de há 500 anos.
Agora até que ponto é que quadros coloniais na Assembleia devem ser retirados e colocados noutro local com uma maior contextualização? Eu aí respondo que depende. Existem várias coisas que devem ser postas em cima da mesa. Se estes quadros continuam a ser cenário de cerimónias de Estado ou identificados pelas pessoas como quadros que acompanham as cerimónias dos dias de hoje, de facto já não faz sentido, porque pintam uma realidade que já não existe, e pode ser necessária alguma contextualização, mas sem apagar o quadro.
Nós hoje estamos a resvalar para a realidade em que se quer apagar ou cancelar a História, e as vozes. Tal como os brancos cancelaram negros em regimes racistas de apartheid, nós hoje temos grupos de ativistas negros que exercitam uma espécie de racismo ao contrário, de tudo o que é branco é mau. Já vemos isto em Portugal, para quem o homem branco deve ser desconstruído, deve ser aniquilado, e este é um discurso que não leva a lado nenhum.
É ativismo político, e se as pessoas querem fazer ativismo ou de igualdade racial ou de igualdade social, vão para a política e assumam que têm uma causa e um lugar de onde falam, e não tentem revestir agendas políticas de um suposto discurso imparcial e científico que é a História.
E onde é que se traça o limite?
Uma pessoa dizer que a História nos manda deitar abaixo estátuas é mentira, porque a História é feita dessas estátuas. Repare, da mesma forma que podemos considerar que a estátua de Cecil Rhodes, no Reino Unido, é de um esclavagista, também é importante perceber que houve um momento histórico em que esse esclavagista construiu uma realidade que era importante para Inglaterra numa realidade imperial. E com isto se entende que a História é feita de coisas boas e coisas más.
Podemos questionar: faz sentido existir uma estátua a Hitler? Eu diria que não, porque a dimensão do mal cometido por Hitler não se compadece com ele ter um lugar no espaço público. O mesmo acontece com Estaline, ou Saddam Hussein, mas painéis coloniais não é a mesma coisa.
Começa-se a entrar numa fase em que não se pode falar dos descobrimentos, porque descobrir é o ato de imposição um sobre o outro. Começamos a não poder dizer expansão ultramarina, porque o ultramar era a palavra usada pelo Estado Novo. Estamos ainda a começar a radicalizar as palavras e o discurso, e a torná-lo intrinsecamente feminista, como os textos em que não se pode escrever ‘History’ [‘História’, em inglês] porque inclui o ‘His’ (‘dele’, em inglês), ou seja também devia ser ‘Herstory’ ([‘A História dela’, em tradução livre].
É como o velho exemplo dos Direitos do Homem e não da Humanidade, existindo quem já não concorde com esta semântica. Esquecem-se que, quando esta declaração foi feita, em 1789 e 1948, dois textos diferentes, na primeira os direitos do Homem representavam efetivamente mais o homem masculino e o seu papel cimeiro na sociedade da altura. Em 1948, este Homem já é não somente europeu mas global, não somente masculino, mas também feminino.
Hoje em dia, talvez já não faça sentido falar em Direitos do Homem, mas da humanidade, mas isso pode levar-nos a questionar tudo. Os direitos dos brancos, dos negros, dos homossexuais, dos cisgénero, e não sei onde é que isto pode acabar.
Eu tenho alunas a escrever nos testes: “Eu (she/her), como mulher europeia e branca, acho X ou Y”. Eu digo que isso não devia condicionar a forma como observam um fenómeno histórico.
Não posso concordar com esta avalanche de cultura de cancelamento, que é na verdade um ativismo político sectário disfarçado de roupagem científica.
Isto pode levar a novos ativismos?
Pode levar é a wokismo, que é uma militância contra, e está a deixar de ser uma militância a favor de reconhecimento onde ele não existe. E sim de um ativismo de nicho, de grupos que sem dúvida nenhuma não tinham visibilidade e agora têm, e querem impor a sua visibilidade a uma espécie de maioria silenciosa. Caminhamos para um mundo em que não se pode ser homem branco, católico e heterossexual, e mesmo sendo eu um elemento deste grupo, não acho que a História que eu estudo tenha de ser condicionada pela minha condição.
Porém, é natural que eu pela minha condição, pela educação que recebi dos meus pais, pela influência dos meus amigos, da minha escola, goste mais de estudar certos temas, mas não fecho a porta a considerar no meu discurso histórico outros grupos que não o meu. O que não posso concordar é com esta avalanche de cultura de cancelamento, que é na verdade um ativismo político sectário disfarçado de roupagem científica.
Nós vemos isto na História, na antropologia, na literatura, onde já se vê casos de livros que são revistos. Existe até uma profissão que é leitor de sensibilidade, que são pessoas, por exemplo homossexuais, que lêem livros sobre a comunidade gay para ver se as palavras os podem ferir.
Começamos também a ter a experiência de que um ator branco não pode interpretar um negro, um ator heterossexual não pode interpretar um homossexual, e isso é negar a própria noção de representação. Não consigo concordar com isso.
Podemos pegar no exemplo da personagem James Bond, criado por Ian Fleming, que se acredita que venha a ser uma mulher negra no futuro. Eu acredito que, apesar da personagem original ter todos os estereótipos hoje em dia criticáveis, homem, mulherengo, sedutor, que objetifica a mulher, quem não quer ver pode não ver, e quem quer dar papéis a mulheres negras pode criar um bom guião com uma heroína negra sem necessitar de alterar a figura imaginada por Ian Fleming.
Começamos a ver isso na Disney, quando a Branca de Neve deixa de ter anões, ou os contos infantis deixarem de ter pessoas gordas, como no caso dos livros de Roald Dahl. Não faz sentido, e começa a afetar a História porque não acrescenta conhecimento à História. Cria sim contra-História.
E estas novas tendências criam constrangimentos no ensino? Um professor já se inibe de dizer algumas coisas?
Eu nunca me senti constrangido na linguagem que uso, mas sei de colegas em Portugal que já foram simpaticamente chamados à atenção por terem dito “Bom dia a todos!”. Porquê todos e não todas? Os todos não englobam as todas? É falso, do ponto de vista da palavra portuguesa. Quando nós dizemos raparigas e rapazes dizemos todos, e apesar de existir uma marca de masculinidade nisto, da mesma forma que um ele e uma ela são eles, não acho que cumprimentar pessoas assim possa ser ofensivo.
Receio que, daqui a 10 ou 15 anos, vamos estar quase num regime de autocensura, onde não se pode dizer e estudar o que se quer.
Mas, no geral, apesar de nunca ter sentido qualquer tipo de constrangimento a dar aulas - nem sei o que digo quando chego a uma aula. Já tive uma experiência nos Estados Unidos quando fui convidado para dar lá uma aula sobre o Estado Novo e o Império Português em África. Aí, esse meu colega aconselhou-me a fazer um aviso a dizer que era português, europeu e que estava a falar de uma realidade de Portugal, e que ia utilizar a linguagem da época, citando documentos de então, e que se ia falar em império, raça, conquista, colonização, tudo palavras da época que hoje já não podem ser aceites.
Foi necessário dizer que eu, pessoalmente, não representava esta realidade, algo que achava óbvio. Um historiador do Império não tem de ser imperialista, um historiador da conquista ultramarina não quer dizer que raciocine como o Infante D. Henrique. Da mesma forma, que quem estuda o Estado Novo e diz, como eu, que esta época não foi uma experiência fascista, mas sim uma experiência autoritária, não está a branquear o Estado Novo. Só que nós hoje começamos a ter polícias da linguagem de sentimento, tanto que receio que, daqui a 10 ou 15 anos, vamos estar quase num regime de autocensura, onde não se pode dizer e estudar o que se quer.
Isto acontece quando a História estuda guerras culturais que são guerras do presente, e aí entramos num pecado capital dos historiadores, que é ter um pensamento anacrónico e julgar o passado com os olhos atuais.
A narrativa aceite hoje é que a escravatura é um monopólio do homem branco, e isto é uma grosseira falsificação histórica.
Como incluir neste contexto temas como a escravatura, hoje em dia, um tema altamente polémico de se interpretar?
A questão da interpretação da escravatura é uma das maiores polémicas atuais. No que a Portugal diz respeito, existe o debate se os portugueses foram os principais responsáveis pelo comércio da escravatura. Um historiador com rigor diria “Atenção: os portugueses foram participantes no comércio de escravos”, mas também o foram as próprias comunidades nativas em África, que se escravizavam umas às outras, os muçulmanos, entre outros. Mas a narrativa aceite hoje é que a escravatura é um monopólio do homem branco, e isto é uma grosseira falsificação histórica.
Não se faz um bom serviço ao conhecimento histórico quando começamos a dividir em gavetas do que se pode falar e não falar sobre um determinado tema.
Se não tivéssemos tido uma longa cultura de descoberta científica e de musealização do mundo ocidental, muitas das peças dos grandes museus do mundo não existiam.
Sobre outras lutas relacionadas com a colonização, ou mesmo com reparações históricas, e no que diz respeito ao património, o que pensa dos países como a Grécia ou estados africanos que lutam para ter relíquias históricas devolvidas?
O debate se devemos ou não despovoar o Louvre, em Paris, o British Museum, em Londres, ou o Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, não é algo que se deva considerar. A musealização em si é algo que já depreende um processo de apropriação. Se não tivéssemos tido uma longa cultura de descoberta científica e de musealização do mundo ocidental, muitas das peças dos grandes museus do mundo não existiam.
Agora, num mundo pós-colonial, podemos chegar a um diálogo, para que os países que produziram certas peças tenham também acesso a elas, e que possam expô-las no seu próprio contexto, mas isto sem acusações e divisionismo.
Estas são questões que dizem muito respeito a jovens, que são também eles cada vez mais cidadãos do mundo. No que diz respeito ao processo neste momento em tribunal devido às relíquias do Partenon grego, que a Grécia quer devolvidas e estão no British Museum, como se pode resolver este tipo de temas?
Não devemos pensar que tudo o que está na Europa foi roubado, isso é falso.
A questão particular dos frisos do Partenon, que não é a única deste tipo, é um tema já muito antigo, porque o governo da Grécia anda a insistir nisto, mas o governo britânico insiste que Lord Elgin, o responsável pelas relíquias terem ido parar a Inglaterra, as comprou legalmente. Existe até quem diga que os frisos só se conservam porque estão no museu. Tal como a Acrópole, as estátuas originais já não estão onde é suposto, mas sim musealizadas.
E isso aplica-se a todas estas polémicas?
Agora se deve ou não ser tudo devolvido? Nada impede a conversa franca sobre o tema, mas também tendo em conta que os gregos são o símbolo de uma cultura universal, pode haver uma partilha das relíquias, e ter parte num dos museus mais visitados do mundo, em Londres, e ao mesmo tempo os gregos, e quem visita Atenas, poderem vê-los no seu sítio o mais aproximado possível. É importante que estes processos sejam feitos com boas intenções. Na mesma linha, também os franceses poderão considerar devolver algumas antiguidades aos egípcios, que essas sim foram roubadas nas campanhas napoleónicas, apesar de terem inventado uma ciência vital que é a Egiptologia, criada pelo linguista francês Jean-François Champollion, que serve para decifrar hieróglifos.
Ou seja, o homem branco que rouba e que explora teve um papel essencial de divulgação cultural, que beneficia hoje a cultura egípcia e mundial. Não haveria cultura egípcia sem europeus, como se calhar não haveria o culto pela Acrópole e pela Grécia Antiga se não fossem os arqueólogos alemães, franceses e ingleses, que estiveram na Grécia durante anos a levantar aquelas coisas todas.
Mas nunca se deve fechar portas, a conversa sobre estes temas é necessária. Até em Portugal temos também museus com várias antiguidades de antigas colónias. Talvez também se devesse pensar em parcerias com estes países, nomeadamente africanos, para partilhar estas peças. Agora também é preciso saber quais são as condições reais que países como Moçambique e Angola têm para receberem este tipo de obra de arte. Talvez os artefactos possam estar melhor na Europa, e não devemos pensar que tudo o que está na Europa foi roubado, isso é falso.
Se estas lutas de devolução de património começarem a ganhar, onde é que acabam?
Podem não acabar, pode tornar-se numa discussão interminável. Os jovens ligam muito a isto porque também são de indignação fácil, e esta é uma das suas bandeiras hoje em dia.
O mundo é um lugar muito imperfeito, cheio de desigualdades, de intolerâncias cívicas e religiosas e racismos escondidos. E, certamente, precisa de muitas reformas. Só não acho que o discurso histórico deva ser instrumentalizado ou canibalizado para essas agendas. Deve-se assumir que existem ativismos, mas não disfarçados de discurso histórico. Até porque o passado não é alterável. Não é por dizermos que o homem branco massacrou muitos povos em África que esse massacre vai desaparecer. Mais vale estudar, porque se depurarmos a História, e esta deixar de ter todas as coisas más que teve, nós passamos a estar muito mal preparados para enfrentar todos esses males quando eles voltarem a aparecer.
E no que diz respeito a indemnizações por crimes históricos cometidos no passado, nomeadamente a escravatura, o que pensa sobre esta nova questão bandeira do Livre?
O Livre tem um discurso pós-colonial muito presente, em especial o seu líder, Rui Tavares, mas no que diz respeito a indemnizações acho que é algo muito difícil de calcular. E depois quem é que estamos efetivamente a indemnizar? Como é que se contabiliza o sofrimento humano?
Não é por termos tido um tetravô esclavagista que agora o somos, nem por termos tido um tetravô abolicionista que agora podemos dar lições de moral aos outros.
E é dever da geração atual pagar pelos erros dos antepassados?
Já nem vou a essa questão. Eu costumo dizer que nós não devemos pagar por aquilo que os nossos antepassados ou familiares fizeram, nem sermos recompensados por isso. Com isto, digo que não é por termos tido um tetravô esclavagista que agora o somos, nem por termos tido um tetravô abolicionista que agora podemos dar lições de moral aos outros. Portanto, devemos ver a História como algo que já aconteceu, que deve ser vista com os seus aspetos negativos e positivos, e que deve ser compreendida.
Fala sobre estes temas nas aulas?
Tento que a minha História fale dos bons e dos maus exemplos. O que eu digo aos alunos é que devem ficar com todos os elementos da História, para depois poderem formar a sua própria opinião.
Quando dou aulas sobre a guerra fria, espero estar a habilitá-los para saberem o que é o comunismo, mas não lhes estou a dizer para não serem comunistas. Dou-lhes dados e exemplos históricos e depois a opinião ficará com cada um.
Surgem cada vez mais trabalhos académicos sobre temas pós-coloniais?
Sim, cada vez mais. Os estudos africanos, imperiais e pós-imperiais têm muita saída hoje em dia. Muitas vezes são também financiados e existe interesse quer dos governos quer das próprias pessoas.
O jornalista faz História da atualidade, o historiador faz uma espécie de jornalismo do passado.
Eu nunca estudei questões coloniais isoladamente, mas posso dizer que não existem maus temas, podem é existir historiadores incompetentes. Nisto, o historiador é muito parecido com um jornalista. A primeira coisa que um historiador tem de fazer é dispor os factos, e depois pode interpretá-los e ouvir todos os lados. O jornalista faz História da atualidade, o historiador faz uma espécie de jornalismo do passado.
O confronto entre a História e as ideologias individuais no contexto da sala de aula
Nas suas aulas, existem intervenções discordantes ou dá-se o caso de alguém se levantar e transmitir a sua agenda?
Tenho tido um ou outro caso desses, mas as pessoas têm direito à sua opinião política, que é algo que eu respeito. Eu nunca pergunto numa aula qual é a convicção política de um aluno, nem religiosa. Estou ali para dar uma narrativa, que é a minha, e para que cada um densifique as suas narrativas históricas.
Só citar os que pensam como nós é empobrecedor.
Quando hoje em dia se escolhe uma bibliografia para uma disciplina de História, já se tem em atenção um certo policiamento no que diz respeito a questões mais sensíveis?
Sei de universidades e países onde isto acontece. Já existem listas dos autores que se pode citar e dos que não é aconselhado fazer-se. Não vou ao ponto de dizer que já há um índex ou censuras, mas provavelmente já haverá alguma dimensão disso, mas eu não concordo com isso.
Eu sou capaz de dar aos meus alunos um autor marxista e um autor conservador, para que que possam perceber que existem diferentes versões sobre o mesmo facto.
Mas como se sabe, hoje em dia, o wokismo tem os seus dogmas, os seus oráculos e os seus autores favoritos.
Autores falsos?
Não, mas autores que contam a outra História. Um autor woke não vai citar, a não ser que seja para bater nele, um autor branco, homem, que faz História do imperialismo segundo as potências europeias, e isso é falsear as histórias e criar uma narrativa fechada. Só citar os que pensam como nós é empobrecedor.
Acha que existem pessoas que escolhem a universidade baseando-se nas ideologias dos professores?
Cá em Portugal acho que não. Para alguma coisa sirva estarmos numa ponta e sermos mais isolados e atrasados. Mas, no ambiente académico norte-americano, inglês, entre outros, sim, isto acontece. Já existem universidades com uma causa ou outra.
Em Londres, por exemplo, existem livrarias com livros como “A história homossexual de Inglaterra” ou “A história negra de Inglaterra”. Isto não são obras sobre a História destes grupos no Reino Unido, mas sim a visão que os mesmos têm da História daquele país. Isto porque, alegadamente, todas as histórias de Inglaterra feitas até agora teriam a visão patriarcal, heterossexual, etc. Eu francamente não acho que isso seja verdade.
Não existe uma história homossexual de Portugal, por exemplo. Existe uma História de Portugal, onde podem caber narrativas várias, onde estas minorias foram muitas vezes invisíveis e esquecidas e onde o discurso começou a mudar. Agora, penso que não devemos amaldiçoar toda a nossa História porque essas minorias não foram visíveis.
Se deitarmos abaixo uma estátua de um colonizador, não se muda o presente, porque o colonizador já não existe.
Existe um autor inglês politicamente incorreto, John Vincent, assumidamente politicamente incorreto, que tem um livro chamado ‘An Intelligent Person's Guide to History’, ('Um guia de uma pessoa inteligente para a História', em tradução livre) em que diz qualquer coisa como: a História ser incorrigivelmente masculina, incorrigivelmente branca e incorrigivelmente ocidental, é a História que nós temos. Se deitarmos toda esta História fora ficamos sem memória, porque ficamos sem antiguidade, sem idade média, sem idade moderna, sem monarquias absolutas, e sem regimes liberais onde a mulher teve de lutar para ter voto. Sobrar-nos-ia só o século XX ou mesmo o século XXI, é isso que se quer. E isso é apagar a História, é um ato de censura.
E depois lembro que, muitas vezes, são estas pessoas que tanto escrevem contra as censuras que os regimes ditatoriais de direita faziam, o índex e os livros que não se podiam ler. Agora fazem precisamente isto, índex e autos-de-fé mentais. Não se queimam pessoas, mas faz-se censura e cancelamentos de pessoas.
Como é que se pode criticar as censuras do passado e criar censuras no presente? Ainda por cima sobre um passado que não se pode defender, porque já não existe. Se deitarmos abaixo uma estátua de um colonizador, não se muda o presente, porque o colonizador já não existe. Mas existe muita gente hoje que faz mal, e é tolerado por estes wokismos e esse ativismos tanto à direita como à esquerda.
A ascenção do Chega
O aparecimento do Chega, e de outros partidos de extrema-direita na Europa, motivaram o interesse dos jovens?
Posso dizer que o fenómeno Chega, o fenómeno André Ventura, já motiva teses sobre o assunto, nomeadamente sobre a sua projeção mediática. Mas nos alunos causa um fascínio e curiosidade por ser uma coisa nova. Questionam o que é este fenómeno de populismo e de estridência, que era uma coisa que em Portugal não existia.
Uma das coisas que a História nos pode mostra é que o Chega não é fascista. O Chega é muita coisa - populismo, xenofobia, ciganofobia, mandar bocas contra tudo e contra todos - , mas não é fascismo.
Colocam questões se este é um fenómeno internacional que está a chegar cá, se Ventura é comparável com Salvini ou Le Pen, tudo questões dos meus alunos hoje em dia.
Começa também a ser questionado na cabeça de alguns, inclusivamente aqueles que votam no Chega, o que faz dele um caso de êxito, e por isso é um ótimo estudo de caso para os malefícios da política que o próprio André Ventura defende.
O Chega é um partido fascista?
Uma das coisas que a História nos pode mostrar é que o Chega não é fascismo. É muita coisa, mas não é fascismo, e é importante que os jovens não esqueçam uma importante lição histórica, que é distinguir o que foi o fascismo.
É importante sabermos, porque se um dia nos depararmos com um fenómeno verdadeiramente fascista, temos de saber dizer que esse será fascista. O Chega é muita coisa - populismo, xenofobia, ciganofobia, mandar bocas contra tudo e contra todos - , mas não é fascismo.
Eu não voto Chega, voto à direita, mas não voto Chega, e desafio as pessoas que diabolizam o discurso de André Ventura a mostrarem o que é que no seu discurso carateriza um fascista. André Ventura fala de uma nova constituição, de uma nova república, mas nunca falou em fechar a Assembleia da República ou em militarizar a sociedade. Ele nunca disse que iria governar ditatorialmente ou condicionar a liberdade de expressão, logo não é fascista.
Por cada Mariana Mortágua existe uma Rita Matias, e por cada Joana Amaral Dias existe uma Rita Matias.
Existem muitos alunos do Chega nas suas aulas de História?
Já tive alunos a dizer-me nas aulas que Ventura é um estadista, e nesses momentos é muito complicado manter a minha independência, que tenho que manter. Apetece-me dizer: Pára tudo!
Mas repare-se: Tem o seu discurso, que tem o seu espaço, podem expô-lo e aos outros cabe ouvir e discordar, se for o caso. Veja que por cada Mariana Mortágua existe uma Rita Matias, e por cada Joana Amaral Dias existe uma Rita Matias.
Em Portugal temos mais tolerância pelos wokismos de esquerda ou pelos wokismos de direita?
Naturalmente, por questões históricas, e eu dou isso nas aulas, em Portugal somos absolutamente intolerantes com regimes totalitários de extrema-direita, e devemos ser, mas não temos a mesma intolerância para com totalitarismos à esquerda, e também devíamos ter.
Isso está relacionado com a presença muito significativa do Partido Comunista Português (PCP) no pós-revolução?
Da mesma maneira que a União Soviética venceu a Segunda Guerra Mundial e capitalizou essa imagem, o PCP entrou para a revolução, e isto é algo que os jovens deviam saber. Entrou para a revolução e instalou-se em cima da democracia como um dos vencedores, apesar de ter sido vencido em 1975.
Porém, se olharmos para o que marca a democracia em Portugal, existe um certo entendimento de uma certa esquerda alargada, que vai do comunismo ao socialismo, e que acha que só eles foram os autores da democracia, quando existem muitos protagonistas de centro direita, como Sá Carneiro, Freitas do Amaral, entre outros, que também lutaram pela democracia.
De facto, o PCP, se formos a ver, é um partido comprovadamente anti-democrático mas ninguém fala disto.
Nem com a posição atual que tem sobre a guerra na Ucrânia?
A tolerância que o jornalismo e a opinião pública têm sobre a extrema-esquerda não se compara com intolerância perante a direita radical. Nós temos de ser intolerantes sobre todos os extremismos, não pode ser só alguns.
Com a guerra existe uma relativa mudança, por culpa própria, e existe eleitorado do PCP a fugir para o Chega, por semelhanças na maneira de pensar e nos valores. Nas questões de igualdade de género e morais, o PCP sempre foi bastante conservador e continua a ser.
Como podemos acautelar extremismos e evitar que a história esteja condenada a repetir-se?
Com a história, é possível descobrir regularidades, tendências, sinais, coisas que funcionaram bem no passado e podem voltar a ser feitas no futuro ou o contrário, coisas que não funcionaram bem e que não devemos deixar repetir, como é o caso dos “neo” atuais, os “neo-fascismos”, “neo-nazismo”, “neo comunismo”, entre outros. Observando isto, podemos tornar o futuro mais expectável, a que os ingleses chamam “informed guess working” (adivinhação informada, em tradução livre), ou seja, não é deitarmos-nos a adivinhar o que vai acontecer, mas é perceber que há caminhos.
Em países mais desenvolvidos culturalmente, não é nada raro encontrar empresas que têm nos seus quadros historiadores como assessores e consultores, até para lidar com a interculturalidade.
Mark Twain, grande romancista, dizia que “A História não se repete, mas às vezes rima”, o que nos faz concluir que as coisas têm aspetos semelhantes, isto é, não são exatamente a mesma coisa, mas provêm da mesma coisa, o que nos permite ter alguma compreensão de para que é que a História serve.
Se perguntarem hoje a uma pessoa de humanidades como se mede a História, nós não conseguimos responder, a História não dá lucro, não é uma empresa, mas é curioso como em países mais desenvolvidos culturalmente, como Inglaterra ou os Estados Unidos, não é nada raro encontrar empresas que têm nos seus quadros historiadores como assessores e consultores, até para lidar com a interculturalidade. Repare-se como é útil, para trabalhar no sistema chinês, saber-se como funciona aquela cultura, o sistema mental daquelas pessoas, aquela sociedade. Em Portugal, isto ainda não é visível e estes cursos como o Doutoramento Interuniversitário em História podem ajudar. Todas as áreas podem ganhar mais mundo com a História.
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