Aníbal Cavaco Silva falou. Marcelo Rebelo de Sousa leu, interiorizou — mas não comentou. O texto do antigo primeiro-ministro e presidente da República, publicado esta semana no ‘Observador’, está a ser usado para reflexões sobre os dez anos de governação do social-democrata, os dez anos de presidência e os anos de agora.
No texto, Cavaco Silva dá os parabéns a António Costa pela maioria absoluta, recorda as suas maiorias e reformas que promoveu nesses governos e diz esperar que este executivo faça ainda melhor. Cavaco Silva pede desculpa pelo atraso com que felicita António Costa e considera: “Foi uma vitória da sua pessoa como líder do PS”.
Depois, começam os recados: “é certo que beneficiou dos erros do PSD e da benesse do PCP e do BE ao chumbarem o Orçamento do Estado para 2022, mas ninguém lhe pode tirar o mérito”, escreve Cavaco Silva, recordando que também ele beneficiou de uma benesse na conquista da primeira maioria, em julho de 1987: “a aprovação pela Assembleia da República da moção de censura ao governo apresentada pelo PRD”.
No artigo, lembra as maiorias absolutas que conquistou e enumera as reformas feitas no tempo dos seus governos, sublinhando que, nessa altura, foram dados alguns passos que abriram novas perspetivas à geração de Costa e que “facilitam” agora a tarefa do Governo: “Receio que, na excitação da tomada de posse, se tenha esquecido de que vários desses passos resultaram do diálogo e do consenso com o seu partido”, escreve.
António Costa leu, escutou e comentou: o primeiro-ministro classificou como “interessante” o artigo de opinião do antigo líder dos executivos entre 1985 e 1995, e adiantou que relativamente ao texto não tem muito a responder.
Afinal, “ele [Cavaco Silva] preocupa-se bastante com o seu lugar na História, o que acho muito importante. Eu estou preocupado sobretudo com o futuro dos portugueses. Quanto à mensagem de fundo desse artigo, é exatamente a que partilho: Temos de fazer mais e melhor e é para isso que estou a trabalhar”, declarou.
No plano político, o líder do executivo recusou que a parte substancial das críticas contidas nesse artigo o atinjam pessoalmente, contrapondo que lhe parece “que os visados são outros”.
“Quanto ao passado do professor Cavaco Silva, tenho tido o cuidado grande de valorizar aquilo que foi o trabalho dos meus antecessores. Seguramente, em 2025, quando passarem 40 anos sobre a posse do primeiro governo de Cavaco Silva, espero contar com ele para podermos fazer uma homenagem. Uma homenagem sobre os 40 anos desse já longínquo governo em que ele iniciou a sua governação”, acrescentou.
Entretanto, Cavaco Silva parece confirmar a perspetiva de António Costa: é que, num excerto já divulgado pela CNN Portugal de uma entrevista que será transmitida hoje à noite, Aníbal Cavaco Silva, considerou um “absurdo total” a demora na eleição do novo presidente do PSD, considerando que o partido esteve “cinco meses sem líder” — mas deixando elogios a Luís Montenegro.
“Muito negativo para o PSD nos últimos tempos foi o arrastar desta situação na escolha do novo líder. Cinco meses sem líder, podemos dizer assim. Eleições em 30 de janeiro e o novo líder só estará em plena efetividade de funções passado cinco meses, isto é um absurdo total”.
O antigo presidente do PSD deixou ainda um elogio ao recém-eleito líder dos sociais-democratas: “Tenho a ideia de que o doutor Luís Montenegro tem muito claro na sua cabeça como é preciso fazer oposição neste momento para dar um futuro melhor ao nosso país”, disse.
Na opinião do antigo primeiro-ministro, o PSD sob a liderança de Rui Rio “quase que pareceu um partido regional”. “Penso que muitos eleitores viram ao longo do tempo um PSD que era suporte do PS, quando às vezes era mesmo humilhado em debates na Assembleia da República pelo PS”, afirmou.
Por outro lado, para Cavaco Silva “foi um erro o PSD deixar-se enlear na dicotomia direita-esquerda”. “Era uma armadilha montada pelo PS e por alguns órgãos de comunicação social para desqualificarem o PSD e impedirem que alguns votantes saíssem do PS para votar no PSD”, sustentou.
Marcelo Rebelo de Sousa ainda não terá visto a entrevista — aliás, no meio dos livros, o presidente da República confessou mesmo que ainda não tinha lido o texto de Cavaco (entretanto, já leu, mas já lá vamos). Enquanto passeava pela Festa do Livro nos jardins do Palácio de Belém, em Lisboa, com o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, interrogado se já leu o artigo do antecessor, o chefe de Estado respondeu repetidas vezes: "Não li".
Ainda não arranjou tempo, mas assegurou que não deixará de o ler: "Ah, isso nunca perco. Eu aprendo sempre com os sucessivos presidentes da República. E aprenderei com os próximos, se estiver vivo muito tempo".
"Mas não li, ainda não li. Também desde já digo o seguinte: vou ler, vou interiorizar e não vou comentar, porque eu nunca comento antigos presidentes da República nem futuros presidentes da República", acrescentou o também antigo líder social-democrata e antigo comentador.
Por sua vez, Pedro Adão e Silva afirmou perante os jornalistas: "O ministro da Cultura foi muitos anos, como sabem, comentador. Agora já não se dedica ao comentário. Mas eu leio sempre tudo, sou um leitor compulsivo".
Marcelo, que tanta vez fala de leituras, acabou por ler a carta aberta de Cavaco, mas manteve o mantra, mudando-lhe os tempos verbais: "Li, interiorizei e não comento". E sobre a entrevista, o presidente da República também não quis comentar , nem fazer considerações sobre este "ressurgimento" de Cavaco Silva no espaço público: "O máximo que eu já disse uma vez, e que posso repetir, é que há várias maneiras de ser ex-presidente", observou Marcelo Rebelo de Sousa, considerando que "é legítimo escolher qualquer dos estilos".
Segundo o chefe de Estado, os quatro anteriores presidentes da República – António Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva – "tiveram todos eles comportamentos muito diferentes" quando deixaram a chefia do Estado: "Nuns casos, muito intervenientes, na vida política ativa, mesmo, exercendo cargos, candidatando-se a cargos muito para além do termo do segundo mandato presidencial. Noutros casos, intervindo opinativamente, em condições diferentes, em tempos diferentes, mas intervindo. Noutros casos intervindo mais raramente. E noutros casos não intervindo praticamente na vida interna, tendo funções externas, tendo magistério distante, mas não intervindo em questões da realidade política", referiu.
Marcelo Rebelo de Sousa não nomeou nenhum dos seus antecessores ao descrever estas "quatro maneiras legítimas de assumir o estatuto de ex-presidente".
"Eu também já vos disse qual é aquela que eu tenciono aplicar a mim mesmo, impor a mim mesmo, depois de ter sido tão interventor durante toda a vida, que é aproximar-me o mais possível da visão minimalista, contrastando com o maximalismo da minha vida quase inteira. Mas são opções", acrescentou.
Deixou a ressalva: "Não é nenhuma crítica, é olhar para a realidade e fazer uma análise. É assim. Cada pessoa é uma pessoa, e tem o seu direito a sê-lo, como cidadão. Não deixa de ser cidadão pelo facto de ser ex-presidente da República, e assume a cidadania de formas diferentes, não há duas pessoas iguais".
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