As expectativas estavam em altas por todo o lado. Com quem quer que se falasse, a resposta era sempre a mesma: "quero muito viver a Vigília com o Papa e a Missa Final". Sabia-se que seriam os dias mais exigentes, mas eram também aqueles que trariam as melhores recordações a toda a gente.

Agora a Jornada Mundial da Juventude já acabou e é tempo de traçar memórias. E nada melhor do que pela experiência do que se observa enquanto peregrino.

1. Sardinhas em lata, mas sem pressas

Quem chegava ao Campo Grande no sábado para se dirigir para o Parque-Tejo (Campo da Graça), percebia que a maioria das pessoas com a mesma intenção estava perdida com o que fazer. O Metro existia, mas com constrangimentos. Ter a estação do Saldanha fechada significava que também não tinha correspondência com a Linha Vermelha? Seria melhor apanhar a Linha Amarela até Picoas, andar uns minutos a pé até à estação de S. Sebastião e apanhar aí a Linha Vermelha, até onde fosse possível para se ficar mais perto? Qual era o autocarro da Carris ali perto que podia servir o propósito de tantos?

Os estrangeiros tentavam pedir informações aos portugueses, mal viam as bandeiras. Mas nem esses sabiam bem o que fazer. Só uma coisa era certa: para algum lado tinham de ir, então era entrar no Metro — e depois logo se via.

E viu-se mesmo: um Metro preparado para as enchentes, com trabalhadores a controlarem o fluxo de pessoas entre as escadas e a plataforma de embarque. Um Metro que, incrivelmente até funcionava com o caos, com tempos de espera curtos. Mas, mais do que isso, o verdadeiro espanto: estava cheio de gente que, tendo pressa para ir a algum lado, não tinha aquela pressa desmedida que faz empurrar pessoas, espremê-las umas contra as outras nas carruagens até surgirem uns míseros centímetros para caber ali. Impressionante, não é?

2. Um borrifador é o melhor amigo dos peregrinos

A caminhada fez-se entre o Oriente e o Parque-Tejo, em plena hora de almoço. Péssima escolha, mas em hora nenhuma o calor ia fazer tréguas em Lisboa. Foram cerca de 9 km no total. Bandeiras de todos os países, um Papa Francisco em modo boneco de pano numa berma, dois rapazes com cartazes improvisados em pedaços de cartão. Dizia um deles: “procuro namorada, mas tem de ser católica”. Talvez tenha tido sorte.

Contudo, o grande sucesso foi outra coisa: um borrifador azul, que ia disparando água às caras cansadas. Ao grupo que o levou e a todos os que passavam, crianças de colo incluídas. “Melhor que água benta”, atirou uma peregrina.
Mais à frente, quase a chegar às entradas do recinto, os bombeiros elevavam a brincadeira da água. O borrifador transformou-se num jacto que deu banho a muita gente. No momento certo, diga-se. Fica um obrigado em nome de todos os peregrinos.

3. O Parque-Tejo é uma coisa, o Trancão é outra

Quem viu as imagens divulgadas por todo o lado do Parque-Tejo imaginava que a noite da Vigília não podia ser assim tão complicada. É certo que seria uma noite ao relento, que podia fazer frio pela proximidade dos rios e que as melgas ou mosquitos seriam um problema para muitos (viva o repelente!). Porém, o terreno parecia mais ou menos simpático para estender uma esteira e um saco-cama. E foi, no geral, entre o palco e a ponte pedonal.

A experiência conta que o sector C12 — e outros (ou todos) do lado de Loures — foi o indicado para uma Vigília em sacrifício. À chegada, as reações gerais foram de espanto. Havia árvores, umas pequenas oliveiras que pouca sombra faziam, mas pelo menos serviam para atar mantas e outros apetrechos. Só que o chão não tinha relva nem era plano. Torrões de terra, pedras, silvas e ervas aos molhos.

A Vigília foi bonita — exceto o início conturbado, com barulho em volta, grupos a encherem colchões, tendas que supostamente eram proibidas e um ecrã a apagar, como se não bastasse já ter uma árvore à frente —, o Papa surpreendeu como sempre, as pessoas comoveram-se e bateram palmas, num misto de emoções com as quais ninguém sabe lidar muito bem. O verdadeiro problema veio depois.

Como é que peregrinos cansados do calor, muitos deles já depois de terem sofridos algumas quebras de tensão, conseguem dormir num chão que “nem para plantar batatas servia”, como se ouviu nas bocas de gentes do Oeste? Apesar das dificuldades em encaixar pedras entre as costelas, dos arranhões das silvas e do pó que se levantava com o vento, o facto é que quase toda a gente acordou bem disposta — e muitos ainda antes de se ouvir a música do Padre Guilherme, DJ.

4. As surpresas de uma noite

O Papa estava a chegar ao palco quando um forte barulho se ouviu. Muitos dos peregrinos não perceberam imediatamente o que estava a acontecer e ouviram-se as mais variadas perguntas, mas nenhum pânico ou medo pelo estrondo repentino. Não eram mais do que dois caças da Força Aérea, que sobrevoaram o Parque-Tejo a toda a velocidade. A certeza da segurança nos céus, para Francisco.

E o céu continuou a ser motivo de admiração durante a Vigília, ou não tivesse sido a coreografia em palco completada pelas luzes de drones no firmamento, que escreveram “levanta-te” e “segue-me”, duas expressões tão características de tudo o que estava a acontecer na JMJ — e do que pede a Igreja.

Se as letras falam, também muito diz o silêncio. E nunca deixa de ser estranho — e fascinante — a forma como muitas pessoas no mesmo local (um milhão e meio, neste caso) conseguem calar-se por largos instantes. Assim aconteceu também na Vigília, após a exposição do Santíssimo Sacramento no altar. Momento que foi depois seguido de Carminho a cantar. Resta a frase "Tu és a estrela e eu sou o peregrino", que levou a que tantos se entreolhassem naquele instante.

5. A energia e a falta dela

Passava da uma da manhã e ainda havia movimento no recinto. Muitos peregrinos já estavam deitados e o sono deixava ouvir frases entrecortadas. Um vídeo falava do planeta e da Amazónia. Mais uma forma de levar Laudato Si até aos jovens, com a preocupação com a "casa comum".

Enquanto uns apenas queriam dormir, outros ainda rezavam a cantar. Ao longe, um grupo — possivelmente do Caminho Neocatecumenal, pelo estilo de música — cantava animadamente, acompanhados pelo som do djembê e da pandeireta. Assim continuaram por altas horas.

Durante toda a noite, muitos foram os peregrinos que circularam no recinto. Fosse para ir à casa de banho, para ir buscar comida ou para tentar sair do recinto por algum motivo. Mas também houve quem, no meio dessas movimentações, se tivesse perdido pelo meio do emaranhado de sacos-cama, sapatos e mochilas. Um jovem de camisola amarela, do Algarve, acordou um grupo de portugueses para ver se obtinha ajuda. "Deixei o meu saco-cama no meio de um grupo de voluntários e não dou com ele, no C8", ouviu-se. Tal como a camisola, também o objeto perdido seria amarelo. Ali não estava e, além disso, o sector era o C12, por isso era procurar a bandeira identificativa do sítio certo. Uma jovem ensonada atirou a resposta pronta que muitos pensaram e que provou risos de seguida: "Vai andando que hás-de encontrar". A cara que recebeu a resposta mostrava demasiado sono para saber como ir parar ainda a outro lado.

6. Um dia que amanhece com problemas, mas com alegria

O cansaço da noite é algum. É domingo. O dia veio novamente com calor, mas o Papa está para chegar. A Missa de Envio, às 09h00, obriga a toda uma logística. Pequeno-almoço e todas as rotinas necessárias de quem acabou de sair da cama, mesmo que esta tenha sido diferente e no chão.

A semana foi longa e o corpo dá sinais disso. Há várias pessoas que se sentem mal no Parque-Tejo. De vez em quando, alguém a chamar outro alguém: "Traz o leque", "Levanta-lhe as pernas", "Empresta-me a almofada", "Tens água?", "Dá-lhe bolachas ou doces". Alguns têm de ser encaminhados para as tendas de primeiros socorros.

Ao fundo, o Papa vai falando, a missa acontece. Parte dos grupos nem ouve, seja porque estão distraídos com alguma coisa, seja porque se vão sucedendo as más disposições.

Uma coisa ouviram, no fim: o Papa espera todos em Roma, em 2025, para o Jubileu, e em 2027 em Seul, na Coreia do Sul, para a próxima Jornada Mundial da Juventude. Nesse momento, a alegria foi constante por todo o lado, entre a dúvida de terem ouvido bem ou não. Uma boa disposição depois de tudo o resto, a que se seguiu o hino oficial da JMJ, cantado a plenos pulmões essencialmente pelos portugueses e ignorado por quem já estava com pressa em arrumar as malas para seguir para outro destino.

Afinal, o mundo veio a Lisboa e agora tem de voltar aonde sempre esteve.