Algumas mães não puderam ter o apoio de um acompanhante enquanto davam à luz. A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto (APDMGP) escreve no Instagram que muitas mulheres "acabaram mesmo a parir sozinhas”.
A APDMGP tem vindo a alertar para o desrespeito dos direitos das mulheres no que toca à possibilidade de uma grávida ter uma pessoa à sua escolha a acompanhá-la durante o parto, e defende “o levantamento imediato desta proibição de acompanhante, lesiva e desproporcionada”.
Este grupo, fundado em dezembro de 2014, junta mães, pais e filhos. São cerca de 20 pessoas, entre profissionais do mundo da maternidade (médicos, doulas, enfermeiros e terapeutas) e ainda empresários, biólogos, juristas, advogados, conta ao SAPO24 Pita Santos, sócia efetiva da APDMGP e doula de profissão.
A associação, que foi criada porque os membros sentem que "legalmente temos opções em Portugal, mas não estão disponíveis a toda a gente", ajudou a redigir as alterações introduzidas na Lei 110/2019, de 9 de setembro, sobre as regras gerais de acompanhamento do utente dos serviços de saúde, e agora dá conta do seu incumprimento.
O artigo 12º desta lei explicita que nos serviços do SNS “no caso da mulher grávida, é garantido o acompanhamento até três pessoas por si indicadas, em sistema de alternância, não podendo permanecer em simultâneo mais do que uma pessoa junto da utente”.
Carla Pita Santos explica ao SAPO24 a posição da associação: “O nosso entender é que a DGS lavou as mãos desta decisão. O que pode fazer é lançar recomendações e a que lançaram foi extremamente vaga: que cada hospital decide de acordo com as suas condições físicas.”
“Gostaríamos que a DGS tomasse uma posição na perspetiva de defender os direitos dos utentes e o direito que está na lei é que haja um acompanhante”, explicita Carla.
A representante propõe uma solução: “Talvez o mais interessante fosse arranjar uma estratégia para garantir que a mulher não tinha de prescindir dos seus direitos para ter o seu bebé, mas sim que se adaptem as unidades hospitalares que promovem esse serviço.” E ressalva que “se existe aqui a falha de alguém não é da mulher. É das unidades hospitalares que se têm de atualizar e resolver esta questão – até porque estamos a falar de um acompanhante do mesmo agregado familiar".
No início deste mês, a APDMGP fez a campanha “Parir Sozinha Não”, que “comparativamente a outras campanhas teve muito sucesso”. Na comunicação que partilhou usavam a formulação "Mais vale parir em...", usando os exemplos dos centros comerciais, festas, restaurantes e transportes públicos, onde é possível estar mais do que uma pessoa.
A associação trabalha no sentido de dar apoio a quem precisa de informação e os pedidos de esclarecimento e apoio intensificaram-se com a campanha iniciada a 9 de setembro. "Pela primeira vez os pais estão a ser muito expressivos”, explica Carla.
Se por um lado esse envolvimento é positivo, a razão pela qual pais e mães se exprimem não o é: “Ver a obstrução da existência de um acompanhante durante o trabalho de parto não é novo, já acontece há muitos anos. Ganhou foi uma nova roupagem com a Covid-19”. A lei de 2014 foi atualizada em 2019 e a associação vê a acontecer “um atropelo à legislação, que não deixa de existir com o estado de emergência”.
A representante dá o exemplo do Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim e do Hospital Garcia de Orta, em Almada, que tentaram ter o acompanhamento por uma pessoa escolhida pela mãe no parto, apesar das suas condições.
A APDMGP diz que estas duas instituições públicas mostram que “há uma forma mais humana de tratar o parto, que é um evento natural”. Carla explica ainda que “maior parte das grávidas são de baixo risco” e que as de alto risco não ficam inibidas de ter um acompanhamento “porque emocionalmente estão mais sensibilizadas”. É nesse sentido que a legislação de 2019 consagra o direito de um acompanhante permanentemente.
Carla sublinha que isso não estava a acontecer antes da pandemia e que, a chegada da Covid-19 “foi um pretexto válido para os profissionais de saúde usurparem este direito sobre o escudo de proteção das mulheres, o que não é mais que uma falácia”, para a representante, “porque estamos a falar do mesmo agregado familiar”.
Acompanhamento como prevenção de depressão pós-parto
E qual a importância de um acompanhante durante o parto para a saúde mental das grávidas? "A importância é toda", diz Carla Pita Santos, "por dois lados: o de apoio à mãe, que está num momento frágil. Uma mulher que está em trabalho de parto age de forma muito instintiva e perde a capacidade de tomar decisões na hora e é, por isso, muito importante ter alguém com ela que a conheça, que perceba como está, que dê a mão e encoraje. É uma fase em que a mulher se pode sentir muito sozinha - ninguém gosta de ir ao hospital sozinho".
O segundo lado tem que ver com ter o companheiro ou companheira na equação: "estamos a retirar a possibilidade de os pais verem os seus filhos nascer em conjunto. Isto é muito forte porque conseguimos recentemente, como sociedade, trazer os pais para o cenário de trabalho de parto e isso está a deixar de acontecer".
Carla acrescenta que a APDMGP tem noção de que existe depressão pós-parto para as mulheres, mas que também é uma realidade para os homens. "Uma grande fatia na depressão pós-parto nos homens vem de não se sentirem incluídos no processo - e é exatamente isso que estamos a fazer", conclui.
A associação incentiva à denúncia de situações ao Ministério da Saúde, à Direção Geral da Saúde, através da carta tipo que fornecem ou com as próprias palavras, bem como expressar-se junto do hospital da pessoa, já que os hospitais “são os últimos decisores”, diz Carla.
“Outra coisa que está a acontecer agora é o aumento significativo de induções de trabalho de parto e o aumento exponencial de cesarianas também devido à realidade da Covid-19”, diz Carla, que em representação da associação reconhece os cuidados sanitários dos hospitais, mas diz que os direitos das mulheres estão “a ser atropelados”.
A organização defende que “devem ser os organismos a adaptarem-se à realidade das mulheres e não o contrário”. Já a Organização Mundial de Saúde explica que uma mulher, sendo suspeita de infeção de Covid-19 ou infetada, não precisa de realizar uma cesariana. E o conselho da OMS é que “as cesarianas sejam feitas quando forem medicamente justificadas”, sendo que o “modo de parto deve ser individualizado e baseado nas preferências da mulher e das indicações do obstetra”.
O alargar do fosso
Uma outra preocupação da APDMGP é que “está a haver diferença significativa entre as mulheres com menos poder económico e as mulheres com mais”. A sócia efetiva da associação explica que as primeiras não têm forma de mudar de médico quando este não faz o acompanhamento de que elas precisam ou, por exemplo, quando esse médico não está a solucionar a questão do acompanhante não têm forma de pagar um serviço privado de saúde, onde o seu companheiro ou companheira possam estar durante o parto".
Carla Pita Santos diz que esta é uma das bandeiras da associação e que veem uma “desproteção gigantesca das pessoas com menos capacidade financeira”, que faz um “fosso muito grande”.
A agravar a situação, “muitos hospitais privados insistem com a questão dos testes de Covid porque não querem ter casos dentro da instituição”. Apesar disso, a associação não deixa de louvar os hospitais privados, que “foram os primeiros a desbloquear a questão do acompanhante – provavelmente acreditando que os restantes hospitais iam seguir o exemplo, mas a verdade é que o serviço público manteve-se obstinadamente a vedar o acesso ao acompanhante”.
Carla dá conta da ansiedade e frustração das futuras mães e famílias, a partir dos relatos e pedidos de ajuda e informação que chegam à associação através da linha de apoio por e-mail e pelas redes sociais Instagram e Facebook. “Tem sido incrível o volume de mulheres e homens que nos procuram para tentar saber o que podem fazer. E sentem-se frustrados porque não têm respostas personalizadas à sua situação”.
Carla Pita Santos sublinha que “está a ser muito duro principalmente para as mulheres com menor capacidade económica porque elas não têm saída: não conseguem pagar um hospital privado para terem um acompanhante consigo e não conseguem pagar testes à Covid-19 permanentemente até terem o bebé. É muito injusto”, conclui.
Perante este cenário, Carla explica que a única coisa que a APDMGP pode fazer é “apelar a que as pessoas usem as suas vozes, colocar a sua situação às claras e mostrar à sociedade portuguesa o que as pessoas pedem: ter um acompanhante consigo, como pede a Organização Mundial da Saúde; e ter o seu bebé consigo para que possa amamentar”. Neste último caso, da amamentação, a associação diz que “são raros os hospitais que são adversos a isso”.
A OMS explica que “todas as grávidas e os seus recém-nascidos, incluindo aqueles que sejam casos confirmados de Covid-19, têm o direito a cuidados de alta qualidade antes, durante e depois do parto, incluindo de saúde mental” e que “uma experiência de parto segura e positiva inclui: ser tratada com respeito e dignidade e ter um companheiro durante o parto”.
No sentido de solucionar as situações, a APDMGP contactou a DGS e diz que a primeira comunicação teve uma resposta muito rápida. “Reconhecemos que a DGS não tem um papel fácil e que estão a dar a melhor resposta que conseguem face a esta situação de pandemia, com a qual ninguém está a saber lidar. Reconhecemos o trabalho brilhante tanto da DGS como de todos os profissionais de saúde”, explica Carla Pita Santos, “no entanto as respostas são politicamente corretas e muitas das vezes empáticas, mas gostávamos de ver isto traduzido numa ação mais assertiva por parte da DGS”.
Ser mais assertivo, para a associação, é ir para além de reconhecer a necessidade de haver um acompanhante no parto e de deixar a decisão da sua presença tendo em conta as condições físicas da instituição “porque isso é o que os hospitais vão sempre argumentar”.
“Claro que a DGS também reconhece a necessidade de haver segurança e compreendemos que seja uma decisão muito difícil de tomar, mas é necessária porque o parto não é um evento único na maternidade. É só mais uma fase da maternidade e depois temos o pós-parto (que é todo o restante tempo em que aquela família vai estar com o bebé)”.
Carla explica que “em situações em que existam experiências traumáticas de parto, o número de depressões pós-parto é significativo e isso afeta o bebé. É uma pescadinha de rabo na boca e vamos ter famílias com mais problemas psicológicas”.
"A maior parte dos países já tem casas de parto"
Esta segunda-feira, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresentou ao Parlamento uma proposta para a criação de casas de parto, uma solução que diz ser mais barata para o SNS, bem como mais segura e confortável para as mães.
Os também designados centros de nascimento estariam "destinados a mulheres saudáveis, que tenham gravidezes de baixo risco, sem complicações". Estas casas de parto estariam localizadas “em unidades hospitalares que possuam a valência de ginecologia e obstetrícia, constituindo ou uma ala desta unidade ou um edifício próprio e autónomo, desde que situado na imediação dos hospitais, para, no caso de haver alguma complicação, as mulheres poderem ser imediatamente transferidas para os hospitais", disse Cristina Rodrigues.
Carla Pita Santos diz que "a maior parte dos países já tem casas de parto", sendo os países mais expressivos o Reino Unido e a Holanda, e confirma que a deputada não inscrita consultou a associação em busca de informações. "Demos-lhe alguns contactos, como as 'Encas' (a European Network of Childbirth Associations), um grupo internacional que apoia quaisquer necessidades de outros países para abrir uma casa de partos.
"O que a deputada não inscrita Cristina Rodrigues fez de forma muito inteligente foi resolver duas coisas: a questão do risco porque as grávidas de baixo risco não tinham a necessidade de 'entupir' as urgências obstétricas, ao se dirigirem a uma casa de partos; e a casa de partos, estando inserida num contexto hospitalar, numa ala separada, teria contacto direto caso houvesse uma emergência", explica Carla.
A associação sublinha que o PAN, Bloco de Esquerda, Iniciativa Liberal e a deputada não inscrita Cristina Rodrigues entraram em contacto com a APDMGP nos últimos dias, para fazerem propostas de resolução ao governo.
Uma tríade de sapatos pelos acompanhantes
Esta quarta-feira, 23 de setembro, a APDMGP vai levar a cabo uma ação de protesto no relvado da Alameda D. Afonso Henriques, junto à DGS, em que convidam a deixar um par de sapatos no chão para representar a não separação da mãe e do ou da acompanhante. “A nossa utopia é que tragam um trio de sapatos, para simbolizar a mãe, o/a acompanhante e o bebé. Em tempos de Covid-19 não íamos pedir às pessoas para participar numa manifestação e a forma mais segura que encontrámos foi esta expressão simbólica da colocação dos sapatos à frente da DGS e que pessoas fora de Lisboa que o façam à frente dos hospitais da sua área de residência”.
Os sapatos podem ser colocados a partir das 8h00 da manhã e levantados a partir das 18:30, “de forma ordeira e evitando aglomerações”. A associação convida a quem está sensibilizado pela situação que deixe pelo menos um par. Os pares que não forem recolhidos após a hora vão ser doados “a uma associação que careça desse apoio”.
Pesquisa e testemunhos por Magda Cruz
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