A devolução do diploma ao parlamento foi anunciada no sítio oficial da Presidência da República na Internet, depois de o Tribunal Constitucional ter divulgado na segunda-feira a sua decisão de inconstitucionalidade, tomada por unanimidade pelos sete juízes que integram o primeiro turno em período de férias judiciais.
Em resposta a um pedido de fiscalização preventiva de Marcelo Rebelo de Sousa, o Tribunal Constitucional entendeu estar em causa uma "restrição dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e das comunicações e à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática, enquanto manifestações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada, em termos lesivos do princípio da personalidade".
No acórdão, que teve como relatora a juíza conselheira Mariana Canotilho, considera-se ainda que as normas do artigo 17.º da Lei do Cibercrime, na nova redação estabelecida através deste diploma do parlamento, constituem "uma violação do princípio da reserva de juiz e das garantias constitucionais de defesa em processo penal".
O diploma agora vetado teve como base uma proposta de lei do Governo, da qual resultou um texto final apresentado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, aprovado em votação final global em 20 de julho, com votos a favor de PS, PSD, BE, PAN, PEV, Chega e das deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira, com abstenções de PCP, CDS-PP e Iniciativa Liberal.
No pedido de fiscalização preventiva que enviou ao Tribunal Constitucional, em 04 de agosto, o chefe de Estado assinalou que, além de proceder à transposição de uma diretiva europeia sobre combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário, o legislador aproveitou para alterar também o artigo 17.º da Lei do Cibercrime.
O Presidente da República enquadrou a alteração a este artigo como "uma mudança substancial no paradigma de acesso ao conteúdo das comunicações eletrónicas", em que se admite "que esse acesso caiba, em primeira linha, ao Ministério Público, que só posteriormente o apresenta ao juiz".
"Como bem alerta a Comissão Nacional de Proteção de Dados no seu parecer (parecer 2021/74), jurisprudência recente do Tribunal de Justiça da União Europeia, em caso semelhante, entendeu que o Ministério Público, por deter a ação penal, não possui a independência requerida para apreciar a necessidade de acesso ao conteúdo das comunicações, razão pela qual essa tarefa deve ser cometida ao juiz", referiu.
Marcelo Rebelo de Sousa acrescentou que "o regime agora aprovado se parece afastar, substancialmente, do disposto no Código de Processo Penal em matéria de correspondência, onde é sempre exigida a intervenção do juiz".
O chefe de Estado sustentou que o regime em causa seria "suscetível de introduzir novas restrições ao disposto no artigo 34.º [sobre a inviolabilidade do domicílio e da correspondência], em especial no seu número 4, e no artigo 35.º [Utilização da informática], todos da Constituição", e também poderia não respeitar "a exigência de proporcionalidade resultante do regime material dos direitos, liberdades e garantias, constante do n.º 2 do artigo 18.º [Força Jurídica] da Constituição".
"Ante o exposto, perante as dúvidas suscitadas, parece oportuno clarificar, antecipadamente, a potencial não conformidade constitucional deste novo regime, e a compreensível preocupação que pode suscitar em termos de investigação criminal", concluiu o Presidente da República.
Este é o terceiro diploma que Marcelo Rebelo de Sousa veta devido a inconstitucionalidades declaradas pelo Tribunal Constitucional.
Os anteriores vetos por inconstitucionalidades foram ao decreto do parlamento sobre a morte medicamente assistida, em março deste ano, e a alterações à lei da procriação medicamente assistida (PMA), em setembro de 2019, na sequência de acórdãos do Tribunal Constitucional em resposta a pedidos seus de fiscalização preventiva.
Na versão atualmente em vigor, o artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, que aprova a Lei do Cibercrime, determina: "Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal".
No diploma agora vetado, esta redação era substituída pela seguinte: "Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão".
Além disso, eram acrescentados novos números a este artigo, um dos quais admitindo que "o órgão de polícia criminal" pudesse "efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada" ou em casos de "urgência ou perigo na demora, devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas".
Outro número estabelecia que "o Ministério Público apresenta ao juiz, sob pena de nulidade, as mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto".
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