“A Organização das Nações Unidas (ONU) precisa de voltar a afirmar-se em áreas cruciais da política, segurança e economia internacional, e isso só se faz com uma pessoa do calibre de António Guterres”, defende Miguel Monjardino, docente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, em entrevista ao SAPO24. “Qual é a dificuldade? É que aumentar o perfil, a visibilidade e a influência da ONU exige um Secretário-Geral e não meramente um secretário”, explica.
Ban Ki-moon é “um diplomata profissional”, um “secretário” das Nações Unidas que “estava perfeitamente de acordo com os interesses dos estados mais poderosos do Conselho de Segurança”, mas que acabou por “baixar muito o perfil internacional” da organização. Agora é preciso inverter a tendência com um “verdadeiro Secretário-Geral”, diz professor e investigador.
E é por isso que o cargo de Secretário-Geral é descrito como o cargo mais impossível do mundo
Guterres surge como uma resposta a esta necessidade, ficando por apurar como é que alguém que assume este papel se vai entender com os membros permanentes do Conselho de Segurança (Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China). Basta pensar no conflito sírio para encontrar uma tema caro a Guterres, ex-Alto Comissário da ONU para os Refugiados, e sobre o qual a Rússia e os EUA não conseguem chegar a consenso. No passado dia 3 de outubro foram suspensas as conversações entre os dois países sobre a reativação de um cessar-fogo e a criação de uma força conjunta de combate aos grupos extremistas.
Para Miguel Monjardino, “um verdadeiro Secretário-Geral, mais tarde ou mais cedo, terá de enfrentar os membros permanentes do Conselho de Segurança, seja em privado ou em público” e isso exige um “enorme talento diplomático e grande capacidade política. E é por isso que o cargo de Secretário-Geral é descrito como o cargo mais impossível do mundo”, acrescenta.
A acrescer a este desafio de conciliação, há ainda que considerar a enorme máquina burocrática que é a ONU, com centenas de funcionários divididos por várias agências. “Portanto, há sempre aqui uma tensão: se o Secretário-Geral quiser tomar conta da burocracia da ONU, diminui o tempo disponível para as funções políticas ao mais alto nível. Se quiser desempenhar as funções políticas de inspiração, liderança e de negociação internacional tem menos tempo para a parte da gestão do secretariado”.
A escolha de Guterres ainda é desconhecida, mas “as opções que fará - ou que forem negociadas - nas próximas semanas e meses vão mostrar o que pretende”, diz Monjardino. Em causa está a escolha de nomes para cargos de relevo como o de Secretário-Geral Adjunto.
Ventos de leste
Sobre a posição alemã no processo de candidatura e o apoio à búlgara Kristalina Georgieva - que Marcelo Rebelo de Sousa comparou a “um concorrente que entra nos últimos 100 metros para tentar ganhar a maratona” -, Miguel Monjardino considera que Merkel teve de fazer “opções difíceis” e que não estava sozinha, Bruxelas acompanhava-a.
“Quando Merkel se move para apoiar Kristalina Georgieva compra, basicamente, uma irritação com Paris, que é um membro permanente do Conselho de Segurança e com quem precisa de ter um bom relacionamento. A explicação, do meu ponto de vista, está na necessidade de a Alemanha e de Bruxelas segurarem o Grupo de Visegrado - composto pela República Checa, Hungria, Polónia e Eslováquia -, e também a Bulgária e a Roménia. No fim de contas, estes países estão cada vez mais no centro de uma fortíssima disputa geopolítica”, salienta o professor, fazendo referência a uma Rússia “determinada a recuperar a influência geopolítica e económica na sua tradicional área de influência” e a uma União Europeia também empenhada em “defender a sua linha de influência que vai até à fronteira da Rússia”.
Entendo a euforia nacional, mas é importante que as expectativas em relação ao papel de António Guterres na ONU sejam realistas. O mundo não vai mudar amanhã.
Seguro será dizer que o tiro saiu ao lado. Georgieva não foi além do sétimo lugar na sexta votação (a única em que participou e aquela que consagrou Guterres), com sete votos de desencorajamento e dois vetos de membros permanentes, ficando inclusivamente atrás da sua compatriota Irina Bokova.
O sucesso de Guterres no processo de candidatura deve-se a três fatores, nomeadamente, “à natureza do processo de decisão”, ao “talento pessoal do candidato” e a “todo o trabalho diplomático que o país soube fazer ao mais alto nível na disputa por um cargo extraordinariamente apetecível”, diz Monjardino.
Apesar de vencedor em todas as votações, o ex-primeiro-ministro português não tinha caminho facilitado. Além do critério regional - a preferência por um candidato do Leste -, havia ainda quem desejasse ver uma mulher na liderança da ONU. Irina Bokova e Kristalina Georgieva cumpriam os dois requisitos, o que falhou? “Suspeito que o critério de preferência regional colidiu com o desejo de ser uma mulher porque, no fim de contas, as mulheres que apareceram da Europa de Leste acabaram por não se conseguir afirmar” ao longo do processo de candidatura.
Euforia nacional
“Entendo a euforia nacional, mas é importante que as expectativas em relação ao papel de António Guterres na ONU sejam realistas”, alerta Miguel Monjardino. “O mundo não vai mudar amanhã”, ressalva.
A nível interno, Guterres tem em mãos uma organização que precisa de “prestar contas” por situações graves - desde a polémica epidemia de cólera no Haiti até ao escândalo sexual dos capacetes azuis na República Centro-Africana - e reabilitar a sua imagem.
A nível internacional é de destacar o conflito sírio, o problema nuclear na Coreia do Norte e os esforços para combater as alterações climáticas.
“O espetro dos desafios e da atuação política que se espera de um Secretário-Geral é amplo”, conclui Monjardino. Certo é que Guterres não terá mãos a medir nos próximos cinco anos.
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