Hoje, 29 de Março de 2017 é uma data que ficará para a História: o Governo de Sua Majestade Britânica entrega oficialmente em Bruxelas o pedido para sair da União Europeia, de acordo com o artigo 50º do Tratado de Lisboa. A carta, escrita à mão por Theresa May, com uma caligrafia floreada que remete a documentos medievais (conforme mostraram as TVs britânicas), é curta e simples. Mas as consequências que dela advirão são impossíveis de avaliar.
Há muito para fazer a partir de hoje. Há as minudências de separar entidades que estiveram unidas durante 47 anos, formando uma teia complexa de legislação e interdependência. Há as complexidades de desfazer acordos, consensos e relacionamentos que já ultrapassam uma geração. Há ainda as decisões sobre qual será o estatuto do Reino Unido em relação à UE, se um parceiro privilegiado, uma espécie de familiar enjeitado ou um ex-sócio ligado por contratos impossíveis de desfazer. Ainda, as questões do estatuto dos três milhões de cidadãos comunitários que vivem nas ilhas britânicas e do milhão de “brits” que se mudaram para o “Continente”. E a dúvida do que irão fazer os milhares de empresas que se estabeleceram em vários países.
O artigo 50º prevê dois anos para estas difíceis negociações, mas alguns especialistas chegam a afirmar que nem vinte anos serão suficientes. Tudo depende da boa vontade duns e doutros e, evidentemente, das concessões mútuas. Para já, os europeus assumem maioritariamente uma posição dura, não só para “castigar” a rejeição inglesa, mas também para que sirva de exemplo a outros eventuais separatistas. Quanto ao Governo britânico, apresenta uma fachada de optimismo, sugerindo que existem muitas vantagens e poucas desvantagens para os súbditos de Sua Majestade e para a economia insular.
Ouvindo os ingleses mais influentes, mais bem colocados na pirâmide social e no ordenamento dos negócios, fica-se com a impressão de que a maioria é contra a separação ou está arrependida; mas uma sondagem feita neste domingo mostra que 50% da população como um todo espera que o Brexit seja positivo, 32% negativo e 18% (dezoito por cento!) ainda não sabem. Isto, no quadro geral do Reino Unido, que inclui a Inglaterra, Escócia, Gales e a Irlanda do Norte. Porque quando se mede a opinião (e a votação no referendo) das nações sob a Coroa, os resultados são muito mais divergentes. E aqui começa o grande problema do Governo de Sua Majestade, um problema que pode ser mais destrutivo para o país do que a sua relação vis-a-vis a Europa.
Há o caso da Escócia, que faz parte do Reino Unido desde 1707, mas que sempre manteve um sentimento independentista muito forte. Até ao século XVIII, os escoceses foram incontáveis vezes invadidos pelos ingleses e incontáveis vezes resistiram, com maior ou menor sucesso, até finalmente se submeterem, aceitando o rei inglês e integrando os dois parlamentos. Até hoje, a Escócia mantém instituições legais, educativas e religiosas próprias, com uma cultura e uma identidade nacionais distintas.
Em 1997, um referendo reinstituiu o parlamento escocês, com tutela dos assuntos internos do país. O Partido Nacional Escocês, com uma plataforma abertamente independentista, ganhou as eleições de 2011, o que lhe permitiu levar a cabo um referendo sobre a separação da Escócia do Reino Unido. 55% votaram contra e 45% a favor, dando uma medida de como os escoceses estavam divididos sobre a questão. Mas isso foi em 2011, quando ainda não se falava do Brexit. No referendo sobre a saída ou permanência do Reino Unido na União Europeia, 62% dos escoceses votaram a favor de ficar na União Europeia.
Essa maioria deu argumentos ao Partido Nacional Escocês, dirigido pela primeira-ministra Nicola Sturgeon, para pedir um novo referendo, alegando que o país não quer sair da União Europeia.
Ontem, nas vésperas do governo britânico dar andamento ao artigo 50, o parlamento escocês votou maioritariamente um novo referendo, a realizar algures entre 2018 e 2019, quando os contornos do Brexit estiverem melhor definidos. Segundo Sturgeon, os escoceses não querem sair da Europa, mesmo que tenham de abandonar o Reino Unido. O percurso seria tornarem-se independentes do Reino Unido e depois pedir adesão à União Europeia.
Contudo, assim como o governo inglês parece demasiado optimista quanto ao acordo que fará com a UE, também o governo escocês desvaloriza os obstáculos à sua eventual entrada na Europa. Para ser aceite, precisa da aprovação de todos os estados membros: ora, já se sabe que a Espanha se oporá determinantemente, para não incentivar a independência da Catalunha e do País Basco. Por outro lado, não se sabe realmente como a economia da Escócia se aguentaria sozinha, uma vez que está totalmente integrada no Reino Unido.
Mas, se a situação da Escócia parece complicada, muito pior é a situação na Irlanda do Norte. A Irlanda, católica e ocupada pelos ingleses desde 1542, também tem uma longa história de maus tratos pela potência ocupante e resistência sob as mais variadas formas. No Norte, onde a população era mais aguerrida, no século XVII os ocupantes executaram um programa de colonização forçada com ingleses anglicanos e escoceses presbiterianos, que acabaram por formar uma maioria na actualidade. Quando o Sul se tornou independente, em 1921, ao fim de duas décadas de luta violenta, seis condados do Norte preferiram manter-se no Reino Unido, formando a Irlanda do Norte.
Em 1960, os constantes atritos entre a minoria católica e a maioria protestante (os “unionistas”) transformaram-se numa sangrenta guerra civil que fez mais de cinco mil mortos e cinquenta mil feridos. Finalmente, em 1998, o Acordo da Sexta-feira Santa pôs fim à violência, e desde então a Irlanda do Norte é governada por uma coligação de unionistas e católicos (Sin Fein).
A paz tem 18 anos, o que significa que muitos dos inimigos de então ainda estão vivos. Para a convivência pacífica muito tem contribuído a União Europeia, que ajudou a desenvolver e homogeneizar a zona de fronteira entre as duas irlandas. Com o Brexit, vai criar-se uma situação complicada, com a necessidade de uma fronteira entre a República da Irlanda, que continua na UE, e a Irlanda do Norte, que sai. Por um lado, há o problema da porosidade dessa fronteira, por onde circulam milhares de pessoas que trabalham dum lado e vivem no outro, além da livre circulação de mercadorias, indispensável para a sobrevivência da região. Por outro, a difícil convivência será perturbada novamente com uma barreira que traz de volta divisões mal saradas.
Bastou a proximidade do Brexit para começarem os problemas. O Sin Fein já pediu um estatuto especial para a Irlanda do Norte que, pelo menos à partida, parece impossível: manutenção do acesso ao mercado comum, aos fundos de apoio e às instituições europeias; direito ao trabalho, segurança social e emprego dentro da UE. Na verdade, o que o Sin Fein propõe é uma espécie de dupla nacionalidade, europeia e inglesa, para cidadãos e para a economia. Isso é impossível, não só pela dualidade legal, mas também porque colocaria uma parte do Reino Unido dentro da União Europeia, o que logo seria aproveitado por ambos os lados para contornar muitas decisões tomadas nas negociações do Brexit.
Ninguém propôs sequer uma solução exequível para este pesadelo legal e administrativo. Enquanto os irlandeses batem com os pés cada vez com mais força, Londres faz de conta que não se passa nada. No passado, esta atitude deu maus resultados.
Quanto ao Pais de Gales, parece ser o único que não apresenta problemas. Os galeses, descendentes dos Celtas, foram conquistados pelos ingleses no século XIII (1282) e, apesar de manterem uma língua e cultura própria, estão perfeitamente integrados no ordenamento da Coroa. Votaram maioritariamente pelo Brexit.
Outro pequeno problema que se apresenta é o de Gibraltar. A ilha sempre foi uma unha encravada da Espanha, que não teve outro remédio se não aceitar a situação, dado o poderio britânico; e a UE veio aliviar a situação, tornando todos europeus. Agora, os 30 mil habitantes, que dependem da Espanha para os seus negócios – a ilha tornou-se um paraíso fiscal para toda a Europa – não sabem o que os espera. Sobretudo não querem voltar aos tempos em que Franco lhes fechou as portas, isolando-os do mundo. Muitos pensam que seria a altura de voltar para a Espanha, apesar dos inconvenientes.
Theresa May e os brexitiers têm um longo caminho pela frente.
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