Ao longo de 50 anos de democracia, os partidos fizeram alianças à esquerda e à direita - algumas inesperadas - para aprovar as contas do país. Antes mesmo da “geringonça”, em 2015, até o PCP o fez em 1977, era primeiro-ministro Mário Soares, líder histórico do PS, adversário dos comunistas nos anos quentes da Revolução dos Cravos.
O cenário de incerteza volta a colocar-se em 2024. O PSD e CDS estão no Governo, sem maioria absoluta na Assembleia da República. Estão em curso negociações com o PS, mas o resultado é ainda uma incógnita.
Crises e acordos no pós-25 de Abril
Os primeiros anos de democracia foram caracterizados por grande instabilidade governativa: nenhum dos governos conseguiu cumprir o seu mandato, apesar de cinco deles (PS/CDS, Aliança Democrática e Bloco Central – PS/PSD) terem governado com maioria no parlamento.
Dois anos depois da Revolução dos Cravos, em 1976, as primeiras legislativas em democracia ditaram a vitória, com 34,9% e 107 dos 250 deputados, ao PS e a Mário Soares. Em vez de quatro anos, o I Governo Constitucional durou metade e caiu com o chumbo de uma moção de confiança, em que pesaram os votos do PCP.
Soares conseguiu ver aprovado o Orçamento do Estado de 1977 com a abstenção de partidos da oposição, o PPD de Sá Carneiro, o PCP de Álvaro Cunhal e o CDS de Diogo Freitas do Amaral. Votaram contra Acácio Barreiros, da UDP, e dois dissidentes dos socialistas – Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira, que fundaram um partido já extinto, o POUS (Partido Operário de Unidade Socialista).
Para justificar a abstenção, o deputado do PCP Carlos Aboim Inglês até elogiou “a abertura” do executivo que “se traduziu em alterações e aditamentos” no documento.
O II Governo Constitucional também não durou muito tempo, mas por divergências entre os dois partidos que formaram uma “aliança” pouco usual – o PS, à esquerda, e o CDS, à direita.
Em 1978, Orçamento só passou à segunda
Carlos Mota Pinto foi o primeiro-ministro do IV Governo, que durou menos de um ano e caiu após o processo orçamental, quando Portugal estava sob resgate do Fundo Monetário Internacional e a cumprir um programa de austeridade.
Uma primeira versão do orçamento foi chumbada devido à pretensão de fazer cortes no subsídio de Natal e uma descida dos salários reais.
O orçamento do Estado só passou à segunda, depois de serem retiradas as propostas mais controversas. Foi, porém, o chumbo das Grandes Opções do Plano que justificou a demissão de Mota Pinto.
Seguiu-se um terceiro executivo que Maria de Lurdes Pintasilgo chefiou por 100 dias, não tendo elaborado qualquer orçamento. Foi a primeira e única vez que uma mulher chefiou um Governo em Portugal, em 1980.
Primeiro orçamento de Cavaco com abstenção do PS e PRD
Depois das maiorias absolutas da Aliança Democrática (AD), de 1979 a 1983, o país vai a votos e ganha o PS que precisa de um parceiro para ter maioria no parlamento. Nasceu aqui o primeiro acordo do chamado “centrão”, que ficou para a história como Bloco Central, com Mário Soares (PS) e Mota Pinto (PSD). Durou dois anos e meio, até 1985, quando, após a morte de Mota Pinto, Cavaco Silva passa a liderar o PSD e rompe com Soares.
Nessas legislativas, o PSD teve 29,9% e, em minoria, o primeiro orçamento foi viabilizado pela abstenção do PS e do Partido Renovador Democrático (PRD), partido inspirado no Presidente da República, Ramalho Eanes, que elegeu 45 deputados. O CDS votou a favor. O Orçamento de 1987 passou de novo com a abstenção dos renovadores.
Em 1987 há eleições antecipadas – resultado de uma moção de censura do PRD – e PSD ganha as eleições com maioria absoluta, a primeira em democracia, que se renova em 1991. Cavaco governou até 1996.
Guterres negociou orçamentos à direita
Em 1996, António Guterres, do PS, sucedeu a Cavaco Silva. Sem maioria absoluta, o executivo socialista negociou sucessivos orçamentos, primeiro com o CDS, então liderado por Manuel Monteiro, e depois com os deputados do PSD dos Açores e da Madeira. Apesar de minoritário, concluiu o mandato.
Há 28 anos, Marcelo Rebelo de Sousa, hoje Presidente da República, é o líder do PSD e deixA passar os orçamentos de 1997, 1998 e 1999, em nome do interesse nacional numa fase em que Portugal se preparava para aderir à moeda única.
Os portugueses vão de novo a votos e em 1999 as urnas deram um resultaram inédito: um empate 115-115 entre o PS e a oposição, de esquerda e direita.
António Guterres opta, então, por negociações ainda mais à direita e o orçamento de 2000 passou com abstenção do CDS, liderado por Paulo Portas, depois de ter negociado um aumento de pensões rurais e deduções de IRS para famílias com idosos a cargo.
Orçamento limiano passou por apenas um voto
António Guterres (PS) é, ainda hoje, o primeiro-ministro que conseguiu um orçamento aprovado pela margem mínima: um deputado, Daniel Campelo (CDS).
Campelo chegou a fazer uma greve de fome no parlamento - a ponto de dormir tapado com uma manta num sofá de São Bento - contra o encerramento de uma fábrica de queijo em Ponte de Lima. O deputado violou a disciplina de voto do seu partido e ajudou a aprovar o orçamento. Em contrapartida, o Governo comprometeu-se a fazer melhoramentos em estradas e infraestruturas na região de Viana do Castelo.
E foi este o Orçamento do Estado aprovado com a margem mais curta – apenas um voto. A votação repetiu-se no ano seguinte, para o Orçamento de 2002.
Sócrates e a abstenção negociada com PSD
Pela primeira vez, em 2005 o PS, com José Sócrates, governa com maioria absoluta, mas perde-a quatro anos depois. Caiu em 2011, já depois da crise que levou o país a pedir a intervenção da ‘troika’.
Mas antes, e em plena crise, o PSD, com Manuela Ferreira Leite na liderança, viabilizou, pela abstenção, os orçamentos de Sócrates. O mesmo aconteceu com Pedro Passos Coelho, já na liderança do PSD, em 2010, fruto de uma negociação direta entre o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e um antigo ministro da pasta, Eduardo Catroga, pelos sociais-democratas.
Seguem-se quatro anos de maioria de direita PSD/CDS, até 2015, com um executivo PSD/CDS, com Passos Coelho e Portas, medidas de austeridade rigorosas e cortes salariais.
Em 2011, o secretário-geral do PS é António José Seguro e foi ele, em plena crise, a viabilizar um orçamento com uma "abstenção violenta". “Este não é meu orçamento, mas os interesses de Portugal estão primeiro”, disse Seguro, descrevendo o voto do PS como uma abstenção “violenta, mas construtiva”.
Governo PSD/CDS cai, ganha maioria de esquerda na AR
Em 2015, mais um inesperado acontece: a coligação PSD/CDS ganha as legislativas, mas na Assembleia da República há agora uma maioria de esquerda que, pela primeira vez em democracia, se entende para um acordo parlamentar de apoio a um executivo – é do PS e minoritário.
Apelidado de “geringonça”, pela aparente fragilidade, durou de 2015 a 2019, quando o PS ganha as eleições, sem maioria. Nos primeiros quatro anos, as negociações para o orçamento com PCP, BE e PEV eram feitas abertamente, em reuniões no parlamento, muitas vezes longas. Daí que a sala onde decorriam ter ficado conhecida pela “sala das bolachas” - bolachas que serviam para acalmar a fome dos negociadores, acompanhadas com chá ou café, quando as negociações se prolongavam.
“Chumbo” de Orçamento do PS, o primeiro a causar eleições
Com o PS no poder sem maioria absoluta, e com a recusa dos parceiros em assinar novos acordos, o equilibro foi instável na segunda fase de “geringonça”, depois de 2019.
O chumbo do orçamento de 2022 foi o primeiro, em democracia, a resultar diretamente na convocação de eleições. Embora tenha sido o segundo a ser recusado no parlamento – o primeiro aconteceu em 1979 quando os deputados reprovaram um primeiro Orçamento do Estado do Governo de Mota Pinto, mas aprovaram depois uma segunda versão.
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