O relatório, divulgado na tarde de quarta-feira, 23 de outubro, em algumas capitais europeias (entre as quais Lisboa e Londres, onde foi apresentado no Parlamento britânico) apresenta outras conclusões: em várias zonas de África, os cristãos são ameaçados sobretudo por grupos islamitas; situações como as das Filipinas ou do Sul e Leste da Ásia mostram que a ameaça provem em simultâneo dos grupos que se reivindicam do islão radical, do nacionalismo populista e dos regimes autoritários.
A outra região onde se verificam mais perseguições e mortes é a África Central. Na apresentação do documento em Lisboa, que contou com a participação do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, o padre nigeriano Gideon Obasogie, da diocese de Maiduguri, testemunhou as situações dramáticas e o terror vividos na zona onde vive, que tem sido atacada pelo Boko Haram. O relatório recorda que se calcula que, em 2018, mais de 3700 cristãos terão sido mortos naquele país.
“Há um silêncio estranho, porque não se fala destas coisas”, disse o padre Obasogie, que referiu o muito que há a fazer nas zonas que a violência terrorista mais atingiu: reconstruir igrejas, capelas, seminários e outras estruturas é importante, disse, mas “reconstruir a vida das pessoas” é o mais necessário. O que faz com que se devam “substituir sentimentos de ódio e vingança pela reconciliação”.
Na África, a AIS regista problemas graves em países como a República Centro-Africana, Burkina Faso, Mali, Níger e Tanzânia, bem como Madagáscar e, mais recentemente, também Moçambique, com episódios de violência, sobretudo no norte do país.
AIS aponta o cristianismo como “a religião mais perseguida do mundo”
Num pequeno filme de resumo do relatório, que o 7MARGENS também divulgou, a AIS aponta o cristianismo como “a religião mais perseguida do mundo”, mas de cuja dimensão não há uma ideia muito clara. E acrescenta-se que, em países como o Sudão, Marrocos ou Eritreia, “a principal ameaça para os cristãos vem do Estado, com renovados actos de repressão”, ao mesmo tempo que se recorda “dois dos ataques mais graves contra cristãos” ocorridos entre 2017 e 2019, que ocorreram no Sri Lanka e nas Filipinas, provocando centenas de feridos e mortos.
O relatório nota que diminuiu a violência contra os cristãos em países como a Síria ou o Iraque, tendo em conta a derrota militar do Daesh. Mas a situação precária que se vive e as consequências do que se passou nos últimos anos podem significar que a recuperação já será impossível. E se os grupos extremistas se recompuserem podem lançar uma nova campanha de terror contra os cristãos, avisa o documento. O que, paradoxalmente – ou não – pode acontecer com episódios como a retirada, nas últimas semanas, das tropas norte-americanas do território curdo na Síria e a abertura à operação militar da Turquia contra os curdos, que terá ocasionado já a fuga de centenas de militantes do Daesh que estavam presos.
Aliás, o relatório não aborda a contradição da política ocidental – o objectivo é descrever a situação – mas ainda há um mês, no Journal de Montréal (Canadá) se denunciava vigorosamente isso mesmo. O articulista Loïc Tassé referia a ida do Presidente dos EUA às Nações Unidas para pedir mais liberdade religiosa, mas ainda na véspera se encontrara com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, que apoia o nacionalismo religioso hindu; e, ao mesmo tempo, os Estados Unidos (tal como vários países europeus) continuam a vender armas à Arábia Saudita, “um regime totalitário religioso sunita”, que ataca muçulmanos não-sunitas e proíbe qualquer culto de outra religião, punindo com a morte quem renuncie ao islão.
Alguns números do relatório dão uma pálida ideia da realidade: a Síria e o Iraque são os únicos dois dos 13 países analisados em que se registaram progressos na situação dos cristãos; em outros cinco, a situação está idêntica à de há dois anos e em seis países está pior; na Índia, houve mais de 1.000 ataques a cristãos e mais de 100 igrejas foram fechadas; no Iraque, os cristãos passaram de um milhão e meio, antes da invasão do país pelos EUA em 2003, para os 120 mil actuais (ou seja, 90% menos, em apenas 15 anos, por causa de uma situação claramente forçada pelas potências ocidentais); em Alepo, a segunda cidade mais importante da Síria, o número de cristãos passou de 180 mil antes da guerra para 32 mil quando a cidade foi recuperada pelo regime de Bashar-al-Assad, mas o êxodo dos cristãos continuou e neste momento há menos de três mil no que resta da cidade – na Síria, os cristãos são também menos dois terços do que em 2011, quando a guerra civil começou.
Depois da violência, a pobreza extrema
Um dos poucos factos positivos é o regresso de 10 mil famílias cristãs às suas casas da Planície de Nínive e do Curdistão Iraquiano, de onde tinham fugido depois de Mosul ter caído às mãos do Daesh. Mas ele é contrariado por factos como a pobreza extrema ser hoje a realidade para muitos dos cristãos que ficaram nos seus países, como regista o relatório em relação a muitas zonas da Síria.
Já esta semana, aliás, o arcebispo católico caldeu de Erbil, Bashar Warda, disse à AIS que o mundo não pode continuar a ignorar a ameaça que paira sobre cristãos e yazidis nas regiões onde eles sempre viveram. E alertava mesmo para a “complexa situação” que a intervenção turca no norte da Síria pode vir a ter na sua região, já que Erbil é a capital do Curdistão iraquiano.
Em Londres, um dos responsáveis da AIS chamou a atenção para o risco de a presente intervenção turca poder levar o caos à região. E de a libertação dos militantes do Daesh poder ser uma ameaça existencial para os cristãos”, acrescentou, citado pelo Crux.
Também esta semana, a AIS recebeu notícias de que várias casas de cristãos, na zona onde a intervenção turca se está a fazer sentir, terão sido marcadas. Apesar de a informação ainda carecer de confirmação, organizações sírias de defesa de diretos humanos terão registado esses incidentes pelo menos na cidade de Tel Abyad.
Na Índia, o nacionalismo hindu, que tem ganho força no Governo, tem levado a campanhas de intimidação e actos de violência contra os cristãos; no Sri Lanka, o mesmo extremismo hindu tem tido muçulmanos e cristãos como alvo, mas o país registou na Páscoa deste ano um dos atentados mais graves contra cristãos; na China, o relatório regista a deterioração da situação; a Coreia do Norte é “o lugar mais perigoso para se ser cristão”; no Paquistão, os cristãos estão sujeitos a perseguições várias e a discriminações generalizadas.
“A perseguição de uma religião pode assumir muitas formas”, escreve Joseph Coutts, arcebispo de Karachi, no prefácio do relatório. “Podem ser aos ataques directos e brutais realizados pelo Daesh no Iraque e na Síria contra os cristãos e os yazidis, ou podem ser formas mais subtis, como por exemplo discriminação, ameaças, extorsão, rapto e conversão forçada, negação de direitos ou restrições à liberdade”. No Paquistão, os cristãos enfrentaram todas essas limitações “ao longo dos anos”, acrescenta.
Na apresentação do relatório em Lisboa, Paulo Portas concordava com a definição de genocídio aplicada pela AIS à situação presente. “Temos o dever de lembrar às sociedades ocidentais que há muitos cristãos que são perseguidos, que não podem viver em liberdade, que uma parte da sua dignidade está capturada e que precisam de ser lembrados, que precisam de ser falados e que se actue mais em sua defesa”, afirmou o antigo ministro.
Comentários