PRÓLOGO

Chamo-me Berta e perderei em segundos a consciência do mundo embalada pelos químicos que a ciência criou. Sou um funâmbulo sem rede. A partir deste instante, acordar num par de horas ou dormir para sempre não será mais do que pura sorte ou destino.

Apesar da incerteza, não são essas as considerações que me ocupam os pensamentos. Há muito que aceitei a imprevisibilidade da vida. Não digo que entrei nesta sala de ânimo leve. Ainda que assim fosse, o ambiente ter-me-ia chamado à razão. Por entre máquinas que monitorizam oxigénio e batimentos cardíacos e instrumentos cirúrgicos arrepiantes, é quase impossível não pensar no que será de nós quando o corpo se encontrar indefeso, entregue a um sono induzido. O que me inquieta não é tanto o medo de não acordar, mas sim de não ter oportunidade de dizer o que quero dizer.

O momento é agora:

— Doutor Gonçalo Furtado, diga à Alice que nunca me esqueci dela. Nem dela, nem da Carlota.

Consigo ver nos seus olhos a surpresa da revelação. Um segundo depois, adormeço.

PRIMEIRA PARTE

ALICE

Respirei fundo três vezes antes de pegar no telefone.

encher a barriga de ar até ao limite, e não o peito, expelir o ar no dobro do tempo gasto a inspirar, eis a forma de aquietar a mente e desacelerar o coração.

O número gravado nos contactos é usado apenas em datas estipuladas pelo calendário, e pouco mais. Houve um tempo — o início de todos os tempos — em que as nossas vidas se confundiam uma com a outra. Por essa altura, os aparelhos de comunicação estavam ainda agarrados a um fio preso à parede e os contactos eram registados em pequenas agendas, guardadas de forma religiosa na primeira gaveta da secretária. Depois o nosso tempo mudou. Não deixámos de ser parte da essência uma da outra, mas deixámo-nos ir por caminhos diferentes. Soltámo-nos, como os aparelhos de comunicação se viriam a soltar das amarras dos fios que os prendiam. Descartámos, todos, as agendas tão bem guardadas e passámos a trazer dezenas de contactos no bolso. Criámos listas de acesso rápido que transformámos em vias rápidas para emergências e obrigações, ao invés de atalhos que permitam encurtar o caminho de chegada a quem trazemos no peito. No tempo em que as nossas vidas se confundiam uma com a outra, teria sido este o contacto a encabeçar a lista dos favoritos.

Aproximei o telemóvel do ouvido e o sinal de chamada soou, numa cadência inversamente proporcional ao ritmo das batidas do meu coração. Estava quase a desistir, quando ouvi a voz por que esperava.

— Hello! Carlota speaking!

— Olá, Carlota. É a Alice.

— Alice?!

Do outro lado fez-se silêncio. Como se a ligação tivesse caído. Como se naquele vazio coubesse toda a distância que vai de Lisboa aos arredores de Londres.

*

Lembrei-me do dia em que fiz sete anos e me ofereceram uns walkie-talkies. A supremacia da comunicação a distância. Passámos o dia a brincar aos agentes secretos, de casa para casa, de jardim para jardim. Criámos estórias e cenas de crimes. Revezámo-nos no uso dos aparelhos mágicos. Eram só dois, e nós éramos três. Uma de nós seria o criminoso em fuga para que as outras duas pudessem ser as agentes da lei, prontas para encontrar o foragido à justiça e, em pleno uso da mais moderna tecnologia, salvar o mundo. Era um jogo das escondidas no seu êxtase. No dia seguinte, mudámos o jogo. Já não éramos protagonistas de um cenário de crime, mas sim donas de uma mercearia que recebiam encomendas pela mais moderna forma de comunicação, fazendo entregas ao domicílio. Íamo-nos revezando entre vendedora, compradora e senhora das entregas. Criámos uma loja que para nós era real no jardim da minha casa. Dois tijolos com uma tábua por cima faziam de balcão. Por trás, num banco de madeira corrido, dispúnhamos os artigos para venda. Pacotes de arroz, de massas, de açúcar, ovos, tudo devidamente exposto e materializado em folhas de árvores, pedras e plantas que conseguíamos tornar no que a imaginação entendesse.

É Desta Que Leio Isto: Ela tinha o dever de deslumbrar. Em maio, Filipa Martins traz-nos a biografia de Natália Correia

Filipa Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de maio, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "O Dever de Deslumbrar. Biografia de Natália Correia", que chegou às livrarias a 16 de março, dia em que se cumpriram 30 anos sobre a morte da poetisa.

Esta obra mostra Natália Correia como símbolo das inquietações do século XX português e uma mulher "precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada".

Finalista dos Prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, Filipa Martins dedicou-se – nos últimos seis anos – a estudar a vida e a obra de Natália Correia, tendo sido coautora de um documentário e coargumentista de uma série de televisão sobre esta escritora açoriana.

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No «balcão da loja», o walkie-talkie pousado. Ligado na frequência combinada para dar sinal de vida assim que a outra estivesse pronta para iniciar a ação.

A cesta de verga aguardava ao lado do balcão e, à medida que o pedido era feito, enchia-se das folhas mais comestíveis de que há memória. Os pagamentos eram parte importante do enredo e as notas do Monopólio serviam o propósito.

Assim passávamos dias e dias. Reconheço o privilégio de termos crescido num lugar onde se podia brincar na rua, em segurança, em plena Lisboa. Uma praceta composta por moradias com jardim, habitadas por quem considerávamos amigos e não apenas vizinhos. Sendo uma via sem saída, apenas os carros que ali pertenciam circulavam e faziam-no com o cuidado de quem sabe ser certo que as crianças andariam por ali, a brincar aos polícias e ladrões, às donas de mercearias ou ao que a sua imaginação ditasse na altura. Como certo seria encontrarem-nos juntas. A mim, à Carlota e à Berta.

*

Se a Carlota não constava da minha lista de favoritos, eu, por algum motivo estranho, devia ter deixado de fazer parte de toda a sua lista de contactos, a julgar pelo espanto ao ouvir a minha voz.

— Que surpresa!! Está tudo bem?

Para a pergunta inevitável não havia uma resposta linear. tudo bem? Dependia do que se entendesse por tudo. Se nos referíssemos à vida tal como hoje a conhecemos — a mim, ao Gonçalo, aos miúdos, aos meus pais e irmão, aos pais e irmão da Carlota —, então sim, estava tudo bem. Mas a vida é sempre mais do que o nosso quotidiano. O momento presente confunde-se muitas vezes com o passado, e aí, aí, seguramente não está tudo bem. Nem hoje. Nem há vinte anos. E quem sabe se amanhã.

— Sim, tudo bem. E tu também, pelo que sei! Falei ontem com a tua mãe e ela contou-me as novidades. William, certo?

— William, sim! O que te posso dizer? Estou apaixonada! Vais gostar dele quando o conheceres. É como tu: calmo, ponderado e com um sentido de justiça vincado. Mas não deixa de ser um homem, which means, uma criança num corpo de adulto com quase quarenta anos!

Consigo imaginar a cara da Carlota a dizer isto. Sinto-lhe o riso na voz. Não um riso trocista, mas sim condescendente. E acredito que a condescendência é muitas vezes uma forma de altruísmo, uma prova de amor ao outro. Um riso de quem aceita as coisas como elas são e que tenta aproveitar ao máximo o que a vida lhe dá. Os olhos claros, grandes e abertos, que expressam tudo o que lhe vai na alma ainda que ela não queira. Tenho muitas vezes saudades desses olhos.

— E o William, também trabalha em publicidade?

— Não, mas vem das artes, como eu. É ator, e dos bons! Está neste momento a ensaiar uma peça nova de que já toda a gente fala!

— A sério? Que bom! E quando é a estreia?

— Daqui a um mês. Tu e o Gonçalo podiam tirar uns dias e vir assistir. Ainda por cima, será novembro. Sabes como Londres é magnífica nas vésperas de Natal!

— Não é nada má ideia! Rever-te, conhecer o William, Londres, compras de Natal, uns dias para namorar… está a parecer-me uma excelente conjugação. Vou ver se conseguimos! Sabes como é, eu com os criminosos imprevistos, não sei porquê, são cada vez mais, e o Gonçalo com as consultas e as cirurgias, nem sempre é fácil conciliar tudo.

— A tua profissão é que dava um excelente enredo para uma peça de teatro. A Criminal Profiler in a Land of Poets. Até podia ser em verso, e tudo!

A Carlota dá uma gargalhada, e eu não contenho o riso. Sempre admirei esta sua capacidade de, com tudo, fazer uma piada. A Carlota nunca percebeu como acabei a traçar perfis comportamentais e psicológicos de criminosos. Quando a informei de que ia desistir do curso de direito para seguir psicologia e mais tarde especializar-me em psicologia forense, ela disse que eu estava louca. Ouvira-me afirmar desde sempre que queria seguir advocacia, quem sabe, ser juíza, aplicar a justiça, que era a única forma de sermos livres. É verdade que esse era o meu princípio, mas houve um momento em que a justiça deixou de me fazer sentido, e perceber os caminhos insondáveis da mente revelou-se uma prioridade.

Livro: "Viradas do Avesso"

Autor: Joana Kabuki

Editora: Clube do Autor

Data de Lançamento: 10 de maio

Preço: € 16,50

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— Mas agora a sério, Alice. Organiza-te e vem a Londres. Já não nos vemos há tanto tempo. Era uma excelente oportunidade. E conhecias o William. Vais adorá-lo!

Sempre foi assim, a Carlota. Quando arranjava um amigo ou um namorado novo, não descansava enquanto eu e a Berta não o conhecêssemos. A maioria das vezes para assegurar que eu o iria adorar, mas a Berta, nem tanto. Os namorados da Carlota eram sempre «alternativos». Que é o mesmo que dizer que eram rapazes fora da caixa, ligados às artes: aspirantes a músicos, a artistas plásticos, a poetas. Espíritos como o da Carlota, que se diziam «livres», mas que na verdade procuravam apenas marcar a diferença, chocar os outros, fosse pelas roupas fora de época, pelos cabelos compridos ou pela afirmação constante de que o «sistema» não os balizava, nem corrompia. Eu até achava uma certa graça à postura, embora não me revisse nos princípios, mas a Berta não suportava aquela forma de expressar a individualidade. Não por conservadorismo ou falta de criatividade. Defendia que também ela nascera com alma de escritora — logo, de artista — e nem por isso sentia necessidade de fazer tudo ao contrário do que estava socialmente instituído. Para a Berta, não se tratava de ser ou não uma alma livre, mas de querer dar nas vistas.

A Carlota fazia questão de marcar a diferença que acreditava existir entre nós as duas e a Berta. Nós tínhamos irmãos; ela, não. Nós tínhamos avós; ela, não. Nem sequer família conhecida, além da nuclear. Nós éramos extrovertidas, gostávamos de falar com toda a gente e não perdíamos uma oportunidade para troçar de alguma coisa. A Berta era o que se poderia chamar low profile. Não criava ondas, deixava-se ir na corrente. Parecia uma mosca morta, disse-me muitas vezes a Carlota, quando a adolescência se apoderou das hormonas e acentuou as diferenças entre ambas. já viste que até é canhota, coisa que nenhuma de nós é? Como se isso fosse a prova irrefutável da sua tese. Eu insurgia-me perante estes comentários, que considerava depreciativos. Para mim, a amizade exigia outro tipo de postura.

Lembro-me desta fase, em que deixámos de ser meninas para passarmos a mulheres. Foi a Berta quem viu crescer as maminhas mais cedo e a quem surgiu primeiro a menstruação. Isso enlouqueceu a Carlota. Os poucos meses que a ditavam como a mais nova das três eram-lhe demasiado penosos, e ela acalentava a esperança de superar esse demérito tornando-se a primeira a quem a puberdade se faria evidenciar.

Para a Berta, aquilo não era sequer um tema, e no dia em que nos disse que ia sair com a mãe para comprar sutiãs, lia-se na expressão mais aborrecimento do que entusiasmo. Ter ou não maminhas que se vissem era-lhe completamente indiferente, e quanto à menstruação, quanto mais tarde, melhor. Dizia que se tivesse sido eu a primeira, era quase certo que a Carlota não levaria tão a peito. O problema seria a própria Berta, e não a impossibilidade de usar sutiã ou de se vangloriar por «já ser uma mulher». Eu sentia amor por parte da Carlota em relação à Berta, mas havia, de facto, muitas atitudes que pareciam indicar o contrário. Gostava de um dia perceber o porquê, bem como de saber se existe alguma espécie de arrependimento dentro dela.

Quando fiz quinze anos, os nossos pais concordaram que fôssemos jantar com amigos a uma pizaria, com hora certa para voltar: onze da noite. Em ponto. Nem mais um minuto. E os rapazes tinham de nos acompanhar até à porta de casa. Eles moravam na praceta adjacente à nossa e todas as famílias se conheciam, o que parecia descansar os nossos progenitores. Não se pode dizer que fossem «meninos de coro», pois não raras vezes fomos nós quem evitou que se metessem em confusões, mas a verdade é que ninguém podia ousar tocar-nos com um dedo, que eles levavam muito a sério o papel de guarda-costas.

Andámos numa excitação durante dias. Éramos adolescentes e íamos jantar fora com amigos pela primeira vez! Quem convidar e que restaurante escolher? O que vestir? De que cor pintar as unhas? Usávamos ou não maquilhagem, e qual? Talvez fosse melhor levar a maquilhagem no bolso para os nossos pais não verem. E, entre o caminho de casa e o jardim onde nos íamos encontrar com o resto do grupo, havíamos de descobrir um café com um espelho suficientemente grande e iluminado para passarmos de meninas a mulheres num instante. A Berta não concordava. Nem com a maquilhagem, nem com os cigarros que a Carlota começara a fumar às escondidas — acreditando que isso a emancipava aos olhos dos rapazes —, nem com as insinuações da Carlota para o Diogo. A Carlota achava que tudo não passava de ciúmes: do Diogo, dos seus cabelos ruivos em cacho, da extroversão. Eu acreditava apenas que a Berta era, talvez, mais adulta do que nós. Como se já tivesse nascido mulher feita.

Nesse dia, fruto das emoções que ainda aprendíamos a gerir, a simples divergência de opiniões transformou-se numa feia discussão. A Berta chamou a atenção da Carlota pelo excesso de maquilhagem, e esta decidiu dizer-lhe que parecia a sua avó, sempre a praguejar e a impor limites morais que mais ninguém defendia. A Berta tentou argumentar qualquer coisa sobre os nossos pais não aprovarem, mas a Carlota entrou num crescendo de histeria alimentado pela excitação do momento, e não quis ouvir, apenas insultar, com a frieza e a ingenuidade de insultos que se fazem quando ainda se tem borbulhas na cara. A Berta começou a chorar, com os nervos a sufocarem-lhe a garganta e as lágrimas a roubarem-lhe a visão. Virou-se para sair dali, mas tropeçou e caiu de cara no chão. Corri até ela a gritar para a Carlota, vês o que fizeste? vês? obrigadinha por me estragares o dia de anos. E logo me arrependi de o ter dito, porque parecia que estava mais preocupada comigo do que com a Berta.

O susto da queda emudeceu a Carlota, que ficou parada a olhar para nós uns segundos e só depois reagiu. Veio ao nosso encontro de braços estendidos a pedir desculpa, afirmando dizer aquelas coisas por às vezes ser um bocado parva, que nos adorava às duas como irmãs e não queria de maneira nenhuma estragar-me o dia. Com ela, era sempre «tudo ou nada», e não descansou enquanto não lhe assegurámos que a havíamos perdoado, e jurámos amor eterno entre as três.

— Sabes o que é engraçado, Alice? Ainda no outro dia falei de ti ao William, ou melhor, falei dos teus avós. A propósito do que o teu avô dizia sobre os médicos, lembras-te? «Quem se mete com eles nunca mais de lá sai.» — A Carlota deu uma gargalhada e eu sorri ao lembrar-me dos meus avós.

O avô Justino e a avó Clotilde. Os meus avós paternos. Dois seres humanos que mais pareciam personagens imaginadas, de tão deliciosamente nos povoarem a memória de boas recordações sempre que os visitávamos na aldeia. Grande parte dos verões eram passados com os meus avós em Vale da Cascata. Só o nome é delicioso. Um lugar algures perdido no interior do país, mas que na altura era para nós o centro do mundo. Vinte minutos seriam suficientes para percorrer a pé as ruas da aldeia, cujo expoente máximo de atração turística eram a igreja e o coreto, situados na praça. No verão, toda a aldeia se engalanava para as festas, e a música ouvia-se até altas horas da noite. Ou, pelo menos, era essa a nossa perceção, habituadas que estávamos a dormir cedo em tempos de escola. Lembro-me do avô sempre com a sua camisola de manga comprida vestida, que o que tapa o frio, tapa o calor, e a avó com o seu avental decorado com frutas de todas as espécies, a assegurar a hora das refeições e a limpeza da casa, enquanto nos contava histórias de outros tempos.

Acredito que no coração dos meus avós existisse uma predileção especial pela Berta, o que enchia de ciúmes a Carlota. Confesso que, em certos momentos, eu própria sentia que talvez gostassem mais um bocadinho da Berta do que de mim. Ainda nós não tínhamos saído do carro e já ouvíamos a minha avó ao portão, cá estão os meus três girassóis! bem-vindas, minhas flores! venham, fiz aquela compota de maçã especial de que a Berta tanto gosta!

Os avós são pessoas sábias. E acredito hoje que, de alguma maneira, sabiam que a Berta teria contados os dias em que a inocência e a felicidade regiam os minutos da sua existência. Se eu o tivesse sabido também…

O desaparecimento da Berta foi um choque para todos nós, pelas circunstâncias que o envolveram. Mas para o avô Justino e para a avó Clotilde, que a amavam como a uma neta, foi o maior dos sofrimentos que até aí haviam vivido. Na verdade, nunca se recompuseram dessa dor, e desde esse dia a sua saúde mental foi enfraquecendo com uma rapidez vertiginosa que se prolongou demasiado tempo. Quem sabe terão esperado o mais que puderam para encontrar uma resposta que nunca chegou.

— Então não me lembro?! Os meus avós eram pessoas especiais, sem dúvida. Tenho muitas vezes saudades deles. Saudades das férias que passávamos na aldeia, das histórias que o avô nos contava depois do jantar. E saudades da compota de maçã…

— A compota de maçã que a avó Clotilde fazia «porque a Berta tanto gosta!» — Na voz da Carlota podia ainda sentir o ressentimento que aquele episódio provocava.

Entrávamos no ponto crítico da nossa existência. Na razão pela qual nunca mais fomos as mesmas. Nem como pessoas, nem uma com a outra. Há alturas em que precisamos de reviver o passado para podermos seguir em frente. Talvez tivesse chegado esse dia.

— Não sejas assim! Acho que, de alguma maneira, a avó sabia que a vida da Berta nunca seria como a nossa… Carlota… é sobre a Berta que te quero falar.

— Sobre a Berta?! — O espanto e a admiração na voz da Carlota não ficaram nada aquém do que eu imaginara. A minha afirmação apanhara-a de surpresa.

Passaram muitos anos desde a última vez em que falámos da Berta. Não consegui aceitar a forma como a Carlota «resolveu» o caso e encerrou aquele assunto, como quem, pragmaticamente, se desfaz do que já não lhe interessa. Num momento, éramos inseparáveis; no outro, duas pessoas que, apesar de saberem que se iriam amar para sempre, já não têm lugar na vida uma da outra.

A ida da Carlota para a faculdade contribuiu também para esse afastamento. Há muito que ela decidira ir para belas-artes, mas a ideia era frequentar a universidade em Lisboa. Só me disse que iria para o Porto quando saíram as colocações. E percebi, nesse momento, que fora a sua primeira opção e nunca a partilhara comigo. Eu entrei na Faculdade de Direito de Lisboa e assim ganhámos trezentos quilómetros de distância física e muitos mais de distância emocional. Nos primeiros tempos, a Carlota vinha a Lisboa com regularidade e procurava-me, qual herói que parte em busca de aventuras e regressa na demanda do que lhe é devido. Era isso que eu sentia. O trauma, a tristeza e o sentimento de abandono tomaram conta de mim e entreguei-me ao erro. Não havia espaço para a Carlota na minha vida. Nunca há espaço para quem nos quer bem quando escolhemos o caminho que nos leva ao abismo. Longe de mim, ela não podia ver o espectro em que me tornava, evitando que interferisse na minha vida. Imagino que tenha atribuído o meu distanciamento à forma como lidou com os acontecimentos. Como poderia saber que fora eu o meu principal inimigo?

— Sim, a Berta. Costumas pensar na Berta?

— Mas de onde veio isso agora, Alice?! Passaram vinte anos desde que assistimos ao que ninguém devia ter de assistir e desde que ela desapareceu sem deixar rasto! Eu de uma maneira e tu de outra, conseguimos seguir em frente, não sem que isso nos tivesse custado a relação que tínhamos desde que nascemos. Essa ruiu mais depressa do que aquela casa dos horrores… porquê isso agora, Alice?… Espera lá, tu sabes alguma coisa?

A Carlota conhecia-me demasiado bem e sabia que eu não abordaria o tema «Berta» sem uma boa razão.

Queria falar, queria explicar-me, queria dizer-lhe que a encontrei, apesar de desconhecer o que terá sido feito dela ao longo destes anos que nos separam, mas não consegui. As lágrimas escorriam-me pela cara. Tentei controlar-me, mas não fui capaz. Comecei a soluçar como uma criança, descontrolada, a exteriorizar duas décadas de frustração e tormento.

A Carlota não sabia o que me dizer.

— Então… Alice? Então? Calma. Respira. Respira fundo. Controla-te… ou não, olha, chora, chora tudo o que tiveres para chorar e depois falamos… que merda! Ainda ninguém inventou o teletransporte, ou eu já estaria aí para te dar um dos meus abraços…

O abraço da Carlota, esse lugar seguro quando o chão parecia fugir-me dos pés. Como no dia em que o meu primeiro namorado me trocou pela miúda mais popular da escola e eu pensei que o mundo ia acabar. Chorei como só se chora no primeiro desgosto, com a Carlota a abraçar-me com toda a sua força e a dizer-me, chora, chora tudo, que depois arranjamos um plano para te vingares! Olhando para trás, tenho a sensação de que ela nunca percebeu muito bem o quão convicta eu estava de que mais nenhum rapaz gostaria de mim. O meu choro não advinha da humilhação, era puro desalento.