Não haverá, por estes dias, qualquer celebração natalícia religiosa nas prisões portuguesas. Além da suspensão de visitas de familiares, e mesmo que houvesse detidos interessados em assinalar o Natal, uma directiva da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) suspendeu, com o estado de emergência em vigor desde Novembro, a possibilidade de assistência religiosa nas prisões. E se há, entre responsáveis católicos, quem esteja de acordo ou compreenda as razões, também há, no entanto, quem conteste a oportunidade, legalidade e eficácia da medida.
No nome da direcção-geral, a reinserção “precede” o resto, lembrava, num dos seus artigos semanais no JN, o padre Fernando Calado Rodrigues, capelão do Estabelecimento Prisional de Bragança (EPB). “O sistema prisional deveria promover a regeneração do indivíduo e ter como objetivo último a sua reintegração na sociedade”; e o tempo de reclusão deveria ser “um tempo de regeneração”, acrescenta.
Nesse processo, a “assistência espiritual e religiosa, como tantas vezes testemunham os libertos, é fundamental para a sua regeneração e facilita a sua reintegração na sociedade”, escrevia o capelão do EPB. “Por isso, para bem dos reclusos e em ordem a uma sociedade mais saudável, ela não deveria ser negligenciada, nem suspensa, ainda que para a manter se reforçassem as medidas de segurança sanitária.”
Ao 7MARGENS, Fernando Calado justifica a sua posição: “Aquilo que me preocupa, em relação ao sistema prisional que temos, é que se faz um grande investimento no encarceramento e segurança dos presos, que não é acompanhado pela devida atenção à regeneração e reintegração.”
“O acompanhamento espiritual e religioso é um dos aspectos mais importantes para conseguir esse objectivo. Como assistente religioso, a minha presença é valorizada pelos reclusos e até pelos responsáveis do estabelecimento prisional que visito”, acrescenta o capelão do EPB, que por vezes sente que a assistência religiosa “não é devidamente valorizada pela Igreja e pelo Estado”. E explica: da parte de responsáveis católicos, sente “pouco empenhamento em defender os direitos, até constitucionais, dos reclusos”, enquanto do lado estatal sente que a presença dos assistentes espirituais “parece ser suportada mas não estimulada.”
Suspensão é ilegal, acusa capelão
Um bom exemplo disto mesmo, considera, “é a resignação com que se aceita o fechamento das cadeias à assistência religiosa”. Mesmo admitindo, como a DGRSP fez, que os detidos possam acrescentar o número de telefone do capelão à lista dos contactos a quem podem ligar, para poderem falar, se assim o desejarem.
A própria legalidade é posta em causa por Fernando Calado Rodrigues: na crónica anterior no mesmo jornal, recordava que quer a lei que regula o estado de emergência (Lei 44/86), quer a Lei de Liberdade Religiosa, de 2001, protegem a liberdade religiosa da mesma forma que a liberdade política.
Tendo em conta argumentos como estes, o 7MARGENS dirigiu à direcção-geral cinco perguntas, questionando sobre a legalidade e constitucionalidade da medida; a possibilidade ou não da celebração religiosa do Natal; sobre a importância da assistência espiritual para a estabilidade emocional para os próprios reclusos; os efeitos colaterais da suspensão de visitas em termos de solidão e saúde mental, tendo em conta que se podem tomar medidas de distanciamento físico; e sobre eventuais receios de insegurança e revolta nas cadeias.
Na sua resposta, a direcção-geral limitou-se a resumir o teor da directiva, assinada pelo seu responsável máximo, Rómulo Mateus, a 24 de Novembro – que entraria em vigor três dias depois –, alegando sempre as razões de segurança de combate à pandemia:
“A directiva 17 impõe diversas medidas restritivas no sentido de reforçar a protecção da comunidade reclusa e dos trabalhadores face ao aumento dos casos de covid-19 registados na sociedade portuguesa”, começa por responder fonte autorizada da DGRSP através do gabinete de imprensa do Ministério da Justiça.
“Entre as várias restrições está a suspensão, provisória, da entrada de professores, de formadores, de visitadores e de assistentes espirituais e religiosos nos estabelecimentos prisionais”, diz a direcção-geral ao 7MARGENS. “Na tentativa de atenuar esta limitação, a DGRSP, em articulação com a Pastoral Penitenciária, vai incluir o número de telefone dos assistentes espirituais no conjunto dos números de telefone a que os reclusos podem ligar, como forma de se poder manter os laços espirituais tão caros aos reclusos e que esta direcção-geral, mau grado a pandemia em curso, também quer preservar.”
“Louvar o comportamento pacífico dos reclusos”
No conjunto das pessoas que todos os dias saem e entram das prisões, o assistente espiritual é um risco menor”, considera, em declarações ao 7MARGENS, Manuel de Almeida Santos, da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (OVAR), do Porto. Guardas e técnicos entram diariamente e estão muito mais tempo e mais próximo dos detidos, recorda. Com a decisão, “estamos a prejudicar a reinserção”, afirma.
Almeida Santos é muito “crítico” do actual regime de penas e prisão, bem como das limitações de visitas e assistência que têm vigorado nestes meses: “Se calhar, estamos a tomar medidas para prevenir males, causando males ainda piores. A ponderação das consequências não está a ser bem feita para evitar outros males.”
O presidente da OVAR diz que “foi excessiva a suspensão da assistência religiosa e das visitas, que são uma percentagem muito pequena” das pessoas que vão às prisões e ficam sempre longe dos detidos. “Esta é uma situação específica de restrição da liberdade e não uma situação geral de vida”, recorda.
Almeida Santos atesta que “vários capelães têm disponibilidade para continuar” a prestar assistência espiritual, “mesmo correndo riscos”. Qualquer missão tem riscos, acrescenta: “Cristo nunca se afastou dos leprosos e isso é uma grande lição evangélica.”
O responsável da OVAR diz que, nos contactos que tem tido, os reclusos se queixam das restrições de visitas e da falta de acesso a determinado tipo de bens, sobretudo alimentos. “Não estão contentes”, resume, “têm mais dificuldade em contactar formadores, médicos, as pessoas mais próximas e o ambiente mais fechado deixa-os num estado depressivo”.
Esta situação leva-o a “louvar o comportamento pacífico dos reclusos e o modo como têm suportado as restrições, sem grandes manifestações, ao contrário do que se tem passado noutros países”.
“Porque não podemos aplicar regras de segurança nas prisões?”
O padre Davide Matamá, 45 anos, capelão nos estabelecimentos prisionais do Porto (Custóias), Feminino de Santa Cruz, e da PJ-Porto, também ficou desagradado com a decisão de suspensão: “A sociedade civil já se organizou com regras para respeitar a segurança. Porque não podemos aplicar também essas regras, nesses ambientes, mesmo fechados? Fica no ar a arbitrariedade de quem manda…”
Há mais de 1300 detidos nas três prisões (1000 em Custóias, 300 em Santa Cruz e 40 na PJ). O padre Davide pergunta, de forma retórica: “Há focos de contágio nas prisões? As pessoas devem resguardar-se. Mas onde não há, porque razão há proibições, sem mais? Isto tem a ver com sensibilidade e respeito pela pessoa. Estamos a pôr em causa a assistência religiosa e a ficar de mãos e pés atados para reivindicar a presença junto dos reclusos.”
Ressalvando que fala a partir da minoria com quem contacta – no caso do EPP/Custóias, cerca de 50 detidos costumam aparecer nas celebrações das eucaristias – Davide Matamá diz que a experiência da pandemia “é difícil para todos e também para os reclusos”, para os quais a “assistência espiritual é um bálsamo” de “humanização e espiritualidade”.
“Alguns guardas dizem que os detidos começam a ter uma atitude diferente” quando aparecem na missa. “Tenho essa sensação também”, afirma. A situação que vigorou desde Julho, quando se retomou a possibilidade de assistência, “estava bem”, defende. “Desde que não houvesse surtos, deveria continuar igual”, assegurando as cautelas necessárias – máscaras, distância física, limpeza…
Com cerca de 70 voluntários a colaborar na assistência espiritual das três prisões, o padre Davide também faz autocrítica do papel das capelanias católicas: “Por vezes, falta uma visão profética da nossa parte, para não nos limitarmos a ser funcionários do sistema.” E acrescenta: “A presença da Igreja tende a ser incómoda, porque fazemos a ponte entre a sociedade e a prisão e, quando há violações de direitos humanos, damos voz a essas queixas e chamamos a atenção.”
“Grau de agressividade tem aumentado”
José Alberto Lopes Costa, diácono e membro da equipa de assistentes espirituais da capelania católica do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL) e da prisão de alta segurança de Monsanto, entende as dificuldades em concretizar agora a assistência religiosa: “Se há um surto num lar de idosos, as pessoas vão para outro sítio; numa cadeia não há um sítio para fugir. Vir mais gente de fora cria mais hipóteses de contágio”.
Por outro lado, o “grau de agressividade” dos detidos tem aumentado. “Havia uma relação entre a nossa presença e um acalmar de tensões”, de acordo com o que os técnicos diziam. Isso agora já não pode acontecer.
Para tentar remediar um pouco a situação, a direcção do EPL aceitou que, a partir de Janeiro, haja um dia por semana para que os detidos que o desejem possam inscrever-se para conversar com os assistentes espirituais na sala dos advogados. Quanto às celebrações das missas (eram duas por semana, o que significava que cada uma das nove alas de presos tinha missa uma vez por mês, praticamente), estão mesmo suspensas. Tal como as aulas e outras actividades. Nas missas, havia, em média, 20 a 25 detidos por cada ala.
Já em Monsanto, a assistência espiritual, mesmo sem pandemia, é reduzida à conversa pessoal, a pedido, e não há celebrações.
“Não noto bloqueio”, diz bispo
O bispo auxiliar de Lisboa, Joaquim Mendes, que no âmbito da Comissão Episcopal de Pastoral Social tutela a Coordenação Nacional da Pastoral Penitenciária, da Igreja Católica, considera este processo “muito delicado: lamentamos estas medidas, tal como lamentámos as restrições da Páscoa ou em Fátima, mas compreende-se a situação para a própria defesa dos reclusos”.
Argumentando com o facto de os contágios terem chegado por pessoas que vão de fora, D. Joaquim diz que o director-geral “tem sido muito compreensivo”. Na directiva 6/GDG/2020, de Julho, Rómulo Mateus autorizava o reinício da assistência espiritual, começando por reconhecer a “importância que tem para muitos reclusos a assistência espiritual e religiosa, e os efeitos que o termo desta e doutras atividades teve na população reclusa”, recorda o bispo.
“Há um reconhecimento da importância da assistência espiritual e religiosa; o director-geral acha importante e valoriza esta presença nas cadeias e o contributo que este serviço dá, não noto que haja bloqueio”, diz o bispo, defendendo que as normas vão sendo estabelecidas à medida do avanço ou recuo da doença. E argumenta que a situação das prisões é diferente da dos hospitais, onde a assistência religiosa não tem deixado de funcionar, sempre com as regras de segurança previstas pelas administrações hospitalares.
Joaquim Mendes nota que, com a pandemia, muitos dos detidos se aproximaram da dimensão espiritual. Com a chegada do Natal, 1500 exemplares dos Quatro Evangelhos e Salmos, na nova edição da Conferência Episcopal Portuguesa, estão a ser distribuídos pelas prisões. Além de outras lembranças: peúgas, calçado, artigos de higiene, lembranças que os reclusos possam enviar aos filhos. E há ainda um “acompanhamento de forma indirecta: tenho escrito imensas cartas”, diz. E em Bragança, a Cáritas diocesana recolhe, até ao início de Janeiro, ofertas de meias ou sabão em barra para serem entregues aos detidos das cadeias de Bragança e Izeda.
Igreja Universal: “Não questionamos, mas lamentamos”
Já não estamos na situação de Março, acrescenta o bispo, quando o objectivo foi aliviar as cadeias da pressão: um total de 1928 reclusos foram libertados com perdão parcial de penas (1222), indulto (14) ou regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados (692).
Nem só de padres e de Igreja Católica se faz a assistência espiritual nas prisões em Portugal. Evangélicos, muçulmanos, protestantes e outros grupos religiosos também têm esse serviço. Quer o padre Davide Matamá quer José Alberto Lopes Costa dizem que, neste momento, a instituição com presença mais forte nas prisões em que trabalham, além da Igreja Católica, é a Igreja Universal do Reino de Deus.
O 7MARGENS quis saber como encara a IURD a suspensão da assistência religiosa, bem como quantos voluntários da Universal estão envolvidos neste serviço. Fonte oficial da instituição limitou-se a responder que a “Igreja não questiona a decisão” da direcção-geral. “Respeitamos todas as decisões dos nossos governantes, que levam sobre si a grande responsabilidade de dar respostas à população, quanto ao aumento de casos de pessoas infectadas. Mas lamentamos por não podermos dar assistência espiritual aos detentos, mesmo obedecendo a todas as medidas de segurança repassadas pela DGS.”
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