A sequência de eventos é de deixar qualquer um estupefacto. David Cameron, afirmando que foi derrotado no referendo que ele próprio convocou, demite-se da direcção do Partido Conservador e de primeiro-ministro. O que ele não quer é tomar conta dum processo inédito e certamente penoso e complicado. Pela lei inglesa, os conservadores continuam a governar até às próximas eleições, em 2020. Portanto terão de escolher outro. Boris Johnson, pois claro, e que até é a favor do Brexit. Mas Johnson vem logo dizer que não concorre, porque também não quer ser o responsável por aquilo que defendeu.
Um pensamento que vem logo à cabeça é que o Monty Pyton fez escola. Ou que previram o futuro. Há uma cena num filme deles – "A vida de Brian" ?, "O cálice sagrado" ?– que poderia muito naturalmente ser invertida para a realidade britânica actual. Uma praça cheia de populares esfarrapados. Os líderes revolucionários, em cima dum palanque improvisado, gritam: "Vamos atacar o castelo!". A multidão em uníssono responde: "Vamos, vamos! Todos ao castelo!" Desata tudo numa correria em direcção ao castelo, a brandir foices e enxadas, enquanto os organizadores do motim se abraçam, dão palmadas nas costas, e depois seguem para o pub para beber uma merecida cerveja. O trabalho deles está feito, a turba que se desenrasque.
E entre os líderes que incitaram a populaça a atacar o castelo, temos o mais truculento e reaccionário, Nigel Farage. Eleito para o Parlamento Europeu, notabilizou-se por insultar os colegas regularmente e acusar a União Europeia de ser uma espécie de entidade nazista. Uma vez disse na cara de van Rampuy, então presidente do Conselho Europeu, que ele tinha o carisma de um esfregão de cozinha. Doutra, afirmou peremptoriamente que a União foi criada para impedir os impulsos imperialistas dos alemães e que afinal falhou redondamente. Agora, já depois do Brexit, voltou ao hemiciclo de Bruxelas para dizer que os parlamentares à sua volta nunca tinham trabalhado um dia na vida.
Pois bem, Farage, o campeão do Brexit, acaba de afirmar que, cumprido o seu objectivo de vida, se retira da política. No Reino Unido não tem qualquer cargo público – perdeu a eleição para deputado, em 2015 - portanto sair ou ficar não faz diferença. Mas acrescentou que continuará a ir regularmente ao Parlamento Europeu achincalhar os colegas e "vigiar com olhos de águia" o cumprimento da separação.
O Partido Conservador terá de fazer eleições internas. Os seus 150 mil filiados escolherão dois entre cinco candidatos e depois os deputados do partido optarão por um deles. Espera-se que o processo esteja concluído até 9 de Setembro. Então quem são essas cinco vítimas da dislexia nacional, numa altura em que o pedido de novo referendo tem cinco milhões de assinaturas?
Theresa May, a Ministra da Administração Interna (Home Secretary) era contra o Brexit, mas já disse que aceita o resultado. Muito conservadora, tem uma linha dura quanto a imigração, segurança social e segurança. Seria a hipótese mais drástica em termos de forçar as ideias relacionadas com o Brexit. Disse que não aceitará contribuir para o orçamento da UE, o que torna a sua posição negocial insustentável à partida.
Michal Gove, o Ministro da Justiça. Como ele próprio declarou, com humor britânico, não tem carisma nenhum. Não acrescentou, mas poderia tê-lo feito, que é uma combinação da simpatia de Shaüble com o bom humor de Jeroen Dijsselbloem. O Partido só o escolherá se estiver mesmo decidido a desaparecer do mapa politico.
Os outros três são praticamente desconhecidos do eleitorado: Andrea Leadsom, actual Ministra da Energia e Mudanças Climáticas, Stephen Crabb, Ministro do Trabalho e Pensões, e Liam Fox, Ministro da Defesa. Ou seja, cinco desconhecidos – por ora, uma vez que um deles será o próximo primeiro ministro. Têm em comum uma linha dura quanto a imigração, o que poderá dificultar muito as negociações com a UE; a livre circulação de pessoas será certamente um exigência básica para qualquer acordo.
Depois há o Partido Trabalhista, dirigido pelo homem invisível,Jeremy Corbyn. Sabia-se que era favorável ao Brexit, num partido que é contra, e talvez por isso mal se viu durante a campanha. No Governo-sombra trabalhista as demissões são ao molhe.
Para a Europa que fica na União, e que sofreu um abalo telúrico com consequências inimagináveis, quanto mais cedo o Reino Unido sair, melhor. Mas quem tem de tomar a decisão são os ingleses, e só eles, invocando o famigerado artigo 50° do Tratado de Lisboa. Um líder que ainda ninguém sabe quem é, decidirá quando fazê-lo, e isso deixa os europeístas furiosos. O menino que já não quer brincar é que decide quando a brincadeira acaba, onde já se viu?
Entretanto há outros acontecimentos europeus que podem influenciar a decisão britânica e que serão influenciados por ela, numa interdependência diabólica. Por exemplo, como lembra Wolfgang Münchau, editor do "Financial Times", as eleições francesas são em 2017 e Marine le Pen é a favor do Frexit – saída da União Europeia e do euro. François Hollande, caso concorra, quer que o Reino Unido pague as despesas do Brexit. Em 2017, os ingleses podem não ter ainda activado o artigo 50º e terão toda a vantagem em esperar pelos resultados franceses antes de o fazer.
(Por falar nele, Münchau é alemão. Arranjará visto para continuar a dirigir o FT?)
Enquanto isto, e mesmo sem artigo 50º, os ingleses já estão a pagar a sua decisão: muitos pedidos de cidadania (dos imigrantes que o podem fazer), muitas saídas das ilhas (dos britânicos que querem e podem), desvalorização da libra, deslocalização de bancos e serviços financeiros (entre 50 a 70 mil postos de trabalho), baixa do rating, clivagens territoriais e geracionais, racismo sem precedentes.
Toda a gente prevê o fim da Europa, mas ninguém consegue prever como será. No Continente, a questão são os maus líderes: Merkel, Juncker, Draghi, Schulz, Schäuble, Hollande, Renzi, Groysman, Orbán, e tantos, tantos, que seria tedioso enumerar.
Na ilha, o problema é a falta deles.
Comentários