Num promontório da localidade de Al-Harrah, com vista para os Montes Golã ocupados por Israel, Abu Hamza, 27 anos, descreve intensas explosões desde que as forças rebeldes de oposição derrubaram o tirano sírio, no passado 08 de dezembro, e que “assustam as crianças e toda a gente”, apontando dois locais onde as forças israelitas violaram desde então a zona desmilitarizada.

A zona tampão, criada ao longo da fronteira israelo-síria em 1974, está a apenas cerca de dez quilómetros de distância e visível a olho nu, mas, segundo as Nações Unidas, tem sido sucessivamente cruzada nos últimos dias por unidades das Forças de Defesa de Israel, que, nos primeiros dias pós Assad, atingiram centenas de alvos em todo o território da Síria, dizimando os restos do arsenal do Exército do regime deposto.

Passaram-se apenas quatro dias desde que a aviação israelita bombardeou uma instalação das antigas forças sírias, mesmo em frente daquele promontório, algures numa colina fronteira que se ergue a partir de um grande cemitério, reforçando o receio que já estava instalado na pequena localidade.

Nesta fase, vastas regiões do distrito rural de Daraa, no sul do país, encontram-se sem presença do novo poder de Damasco e as suas localidades, ao longo da linha desmilitarizada, e são controladas por milícias armadas, como em Al-Harrah: “Temos umas dez armas pessoais, que tencionamos entregar quando chegar alguém designado pelo Governo. E depois começamos uma nova vida”, assinala Abu Hamza, vestido com trajes militares improvisados sob um frio gélido.

O fim da dinastia Assad foi celebrado com aquelas armas nas ruas pobres de Al-Harrah e pela sua população maioritariamente sunita, ao ponto de o miliciano juntar o dia 08 dezembro a todas as datas sagradas do Islão, mas alerta que o novo Governo precisa de consolidar depressa a sua presença e a paz no país, que neste momento diz estar ameaçada por Israel.

Quando Bashar al-Assad estava no poder, argumenta, os seus aliados iraniano e do grupo armado libanês Hezbollah, moviam-se à vontade naquela região e “Israel não fazia nada”, mas, agora que se foram embora, “o que faz Israel aqui”?

“Também temos vítimas civis. Esta semana foram sete no distrito de Daraa, segundo outro habitante de Al-Harrah, que prefere ser identificado pelo pseudónimo de Abu Ammar, 60 anos, manifestando igualmente receio da precária situação na região, que leva a maioria das pessoas a recolher-se ao silêncio: “Não queremos enfrentar Israel, queremos paz, ou 13 anos [de guerra] não chegam? Israel que trate do Irão e de Israel e depois tem de parar isto”.

Habitualmente, todos os dias são sentidas cinco ou seis fortes explosões, que “estremecem as janelas e deixam as crianças a chorar”, mas não hoje, quando se soube que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, dirigiu uma reunião com os seus altos dirigentes de segurança sobre a Síria, no Monte Hermon, nas proximidades dos Montes Golã e que abrange também o Líbano.

Na ocasião, o chefe do Governo israelita declarou que pretende manter vigilância e dissuasão em relação ao Hezbollah, com o qual está em guerra há mais de um ano, e às novas autoridades sírias, “que afirmam apresentar uma face moderada, mas são na realidade membros das correntes islâmicas mais extremistas”, depois de as suas forças terem justificado os ataques ao país vizinho com uma estratégia defensiva preventiva de destruir armas que poderiam ser utilizadas no futuro contra o seu território.

O general Bader Abed al-Hamid, 58 anos, comandante da polícia na cidade de Daraa das novas autoridades sírias, está, no entanto, pronto para rebater esse argumento: “Como o alto comandando da revolução diz, não temos objetivos regionais para além da ideia de derrubar o regime. O nosso foco é erguer um estado de direito, com segurança e tranquilidade, e reconstruir este país, que sofreu a repressão de um regime ladrão”.

Falando em Daraa, onde as novas autoridades começam lentamente a instalar a sua presença, embora ainda confinada à cidade-sede do distrito regional homónimo, o general al-Hamid ressalva que, como oficial da polícia, “talvez não tenha a capacidade politica para saber como responder ao outro lado”, numa referência a Israel.

“Mas como toda a gente sabe, Israel tem políticas expansionistas em todo o mundo árabe. E agora abusa e beneficia de toda a situação de revolução da síria, da queda de regime e um período de fraqueza e caos para roubar terras”, acusa o alto oficial, chegado a Daraa há dois de Alepo, no norte do país, durante a pausa de uma reunião com representantes da sociedade civil no seu gabinete instalado no antigo edifício do governo, agora dominado por uma enorme bandeira com as novas cores nacionais.

De um lado da sala do gabinete de Bader Abed al- Hamid, a televisão está sintonizada na cadeia televisiva Al-Arabiya e na atualidade síria, do outro, sobre a sua secretária, encontra-se pendurada uma moldura vazia, onde há pouco mais de uma semana se retratava o ditador sírio. Quem irá figurar no seu lugar é uma questão ainda em aberto, “desde que não seja Assad, porque não há mais espaço para ele em lado nenhum, nem nas paredes bem nos corações”.

Também na vila vizinha de Jasim, as incursões israelitas são tema de conversa de um grupo de homens reunidos no principal cruzamento da localidade, a curta distância da zona desmilitarizada de 234 quilómetros quadrados, criada em 1974, no seguimento de um acordo entre Israel e a Síria após a guerra do Yom Kipur.

“Graças a Deus, Bashar [al-Assad] foi-se embora e com ele as noites sem sono e cheias de medo. Não há uma única família em Jasim sem uma pessoa que ele matou, uma única família sem um preso [nas prisões políticas] de Sednaya e Palestina”, destaca Abu Omar, um taxista de 50 anos com nove filhos, naquele cruzamento caótico e que é ele próprio uma metáfora da situação em que aquela população de sete mil habitantes se encontra.

De um lado, uma estrada segue para a cidade de Daraa, a capital de distrito, num percurso marcado pela destruição durante a repressão do regime ao levantamento popular de 2011 que no inicio da guerra civil de 13 anos, sinalizando um passado bem recente, outra vai para Damasco, conquistada pelas autoridades rebeldes que agora governa a Síria, e outra ainda dirige-se para a zona tampão, que é agora fonte de todos os receios desde que Israel aproveitou o vácuo de poder e se dirigiu para região.

”Nem Israel, nem Irão, nem Hezbollah!”, grita um homem debaixo do zumbido ensurdecedor da correria das motorizadas, adicionado ainda um quarto protagonista ao grupo dos “indesejáveis” em Jasim: “Nem a Rússia”, em alusão a outro aliado do antigo Presidente sírio e que lhe deu asilo na sua fuga apressada de Damasco, no passado dia 08.

À semelhança de Al-Harrah, nesta vila de sete mil habitantes, que se desenvolve em casas pobres de tijolo cru e artérias cheias de lixo, as autoridades afetas ao regime desapareceram e nenhumas outras ocuparam o seu lugar, ficando às mãos de civis armados, que se declaram “revolucionários de Daraa”.

Estes homens declaram-se  prontos para apoiar o novo poder do líder rebelde da Organização para a Libertação do Levante (Tahrir al-Sham, HTS), mas não incondicionalmente: “Vamos dar-lhe uns dois meses e, se quiser mesmo uma nova Síria com os verdadeiros sírios, pode contar connosco”, declara Abu Omar.

Entretanto, os “revolucionários de Daraa” reclamam melhores condições de vida, dando conta de grandes dificuldades que o clã Assad lançou para a miséria e reconstruir a decrépita unidade de saúde e ainda forçar Israel “a viajar no tempo e devolver os Montes Golã à ‘free Syria'”, nas palavras proferidas em inglês de Iyad Abu Mohamad, pedreiro de 39 anos, e sair depressa da zona tampão, “porque toda a gente sabe que onde eles entram já não saem”.

Esta inquietação contrasta com o clima festivo vivido no posto de controlo militar instalado em Makant al-Hattab, entre Damasco e Daraa, confirmando as palavras de Abu Steif Fateri, 22, oficial das HTS, que se refere a “uma situação sob controlo e que é mesmo excelente, de pessoas felizes” com a presença dos rebeldes.

Entre uma dúzia de blindados do antigo Exército sírio abandonados no local, várias crianças brincam nas viaturas de combate transformado no seu parque infantil, indiferentes às numerosas munições que ainda se encontram no seu interior. “Que Deus nos abençoe a todos!”, exclama um soldado ao receber um café de uma automobilista, “o café da liberdade”.

Henrique Botequilha, enviado da agência Lusa.