Stella Ghervas trabalhou dez anos para escrever “À conquista da paz” (Ed. Dasassossego, 2022), um livro que cobre três séculos da História da Europa baseado em cinco acordos de paz que se seguiram a conflitos à escala continental. A Doutora Ghervas sabe do que escreve: nasceu na Moldova, cresceu na Suíça, passou os verões da juventude em Odessa e hoje é professora de História da Rússia na Universidade de Newcastle. Ninguém melhor habilitado a falar da Europa, e ela fá-lo sempre com uma postura optimista.

A nossa conversa decorreu como se falássemos de futilidades, embora o caso seja sério. E o caso é perspectivar o futuro do continente a partir do seu passado.

Hoje temos tanta informação que só pensamos no presente e talvez um pouco no futuro. Nunca pensamos no passado. E, quanto ao passado, lembramo-nos das guerras e dos conflitos. É interessante analisar o passado sob o ponto de vista da paz.

Acha que há alguma hipótese de a paz se tornar uma situação constante, “normal”? Porque, se considerarmos o mundo inteiro, nunca houve um único dia em que não houvesse guerra algures.

É uma pergunta interessante; o que quer dizer “paz”? A palavra tem vários sentidos e as pessoas diriam que paz é a ausência de guerra. Ou seja, a paz é definida em comparação com a guerra. O livro mostra que, de facto, a paz é um processo muito mais complexo que nunca está garantido. Devíamos manter uma paz permanente, e não apenas a paz que se segue a uma guerra, para depois voltar à guerra. Devíamos conseguir uma paz duradoura.

Começaria por dizer que a paz, na definição dos filósofos do Iluminismo, no século XVIII, era comparada com um estado saudável do corpo humano. A guerra era uma doença – em termos contemporâneos, uma doença da comunidade internacional. A paz não é apenas a assinatura de um tratado depois de uma guerra, para poucos anos depois voltar a guerrear. Não basta um acordo, é também preciso uma reconciliação entre os antigos inimigos, uma solidariedade entre eles. Por exemplo, depois da II Guerra Mundial, a fundação das comunidades europeias poderia ser feita com base na reconciliação franco-alemã.

Seria preciso uma cooperação pelo bem comum de todos os países europeus, como se fôssemos, nos termos de Jean-Jacques Rousseau, uma República de Estados.

créditos: DIOGO GOMES / MADREMEDIA

Considerando o que está no seu livro, parece que até um certo ponto da História a guerra e a paz eram decididas pelos reis e pelos poderosos, e as pessoas comuns não tinham nenhum poder de decisão. Iam para a guerra quando os mandavam. Depois, a partir do século XVIII – da Revolução Francesa, basicamente – as pessoas comuns começaram a fazer-se ouvir. Mas a Paz da Vestfália, que pôs fim às Guerras da Sucessão de Espanha, em 1648, e o Tratado de Paz de Viena, depois da derrota de Napoleão, foram decididos por um grupo fechado de líderes.

Os Grandes Poderes. A Europa dos reis.

Então acha que hoje as pessoas comuns participam mais nas decisões de fazer guerra ou paz?

Quando pensei em escrever um livro sobre a paz, um dos maiores desafios foi convencer a editora. Um livro sobre paz? Isso é desinteressante. Quem o compraria? Pense em escrever sobre Napoleão, ou o czar Alexandre I. As pessoas precisam de heróis, e os heróis são sempre bélicos. Quando se vê os livros que foram escritos sobre a História da Europa, são sempre sobre guerras e revoluções, grandes acontecimentos de glória militar.

Eu queria desafiar essa abordagem e considerar a História da Europa sob o ponto de vista das pazes, das construções da paz. O que é uma Arte. Uma nova perspetiva, sob o ponto de vista de como se conseguiu estabelecer uma nova ordem entre as nações após uma guerra. E, o mais importante, como manter relações pacíficas no espaço europeu.

A paz nunca está garantida. É um facto da vida.

Pois, como disse, as pessoas precisam de heróis. Habitualmente um herói é um grande cientista ou um grande general. Talvez seja errado pensar assim, mas é um facto. Napoleão é um bom exemplo, o génio da guerra. Ninguém fala nos heróis da paz. Talvez se lembram vagamente de Robert Schuman ou Jean Monnet (os proponentes da ideia da União Europeia), mas mais ninguém.

O que vemos é que as propostas de paz que nasceram depois de grandes conflitos nunca duraram muito. Olhe o que aconteceu agora com a invasão da Crimeia, mais uma vez a paz que todos julgavam permanente foi quebrada.

Para entender a Europa do presente, precisamos de alargar a nossa visão do continente. O que é a Europa?

Este último período de paz na Europa durou de 1945 até 2022. Quase oitenta anos. Não é nada mau, mas o facto é que não foi uma paz duradoura. E nem estamos a pensar na guerra na antiga Jugoslávia, porque foram bastante localizadas.

Estamos hoje num estado de guerra, definitivamente. Aquela ideia de 1945, de que “nunca mais”, não se realizou. A paz nunca está garantida, nunca. É um facto da vida.

Pré-publicação de "À Conquista da Paz". Como a Europa tentou esquecer a guerra
Pré-publicação de "À Conquista da Paz". Como a Europa tentou esquecer a guerra
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Como é que será a nova paz?

Para responder a isso, volto à estrutura principal do livro. Escolhi cinco momentos-chave que correspondem ao fim de grandes guerras – não entre dois poderes, mas que envolveram todo o continente. Havia a ameaça de um império pan-continental demasiadamente forte em que todos os estados estavam em risco de perder a independência.

Então, como você escreve, consideram-se dois conceitos: a paz imperial com uma nação a dominar as outras, e a paz como um equilíbrio entre todas as nações. Exemplos de impérios pan-europeus são Habsburgos, Napoleão e Hitler.

Hoje, com a sua política de conquista de estados vizinhos, a Rússia aparece cada vez mais como o último Império na Europa. O que eu pretendia mostrar no livro é que o passado não só ajuda a compreender o presente, mas pode ser um guia para o futuro.

O que está a acontecer agora, com esta escalada, faz-nos lembrar os períodos antes da primeira e da segunda guerras mundiais.

Não nos podemos esquecer do passado e voltar a dizer “nunca mais”. A guerra pode sempre acontecer, e irá acontecer sempre.

No caso do Putin, ele acredita naquela ideia do Império Euroasiático, disse-o expressamente, “De Lisboa a Vladivostok”. É evidente que não vai conseguir.

Não sabemos! Só podemos ter esperança...

Não é possível. Ele nem sequer consegue conquistar a Ucrânia. A Moldávia seria a seguir. Mas, sabemos agora, com grande surpresa, que as forças armadas russas não são assim tão boas.

Bem, as últimas palavras do meu livro são: “A paz é para os fortes, a guerra para os fracos”. Só os que se sentem fracos é que atacam. Eu sei que isto vai contra a nossa ideia tradicional de “hard power”. A União Europeia, por exemplo, está a agir como um ator “soft power”, e não pela força das armas. E isso também é diferente do “hard power” americano.

Não estamos a pensar nos resultados futuros desta corrida ao armamento, e esse é o maior problema.

Esses foram os grandes erros estratégicos da UE: não tem como se defender e depende dos outros em termos de energia.

A ideia de um exército europeu não é recente, vem do século XVIII. O autor e diplomata Abade de Saint-Pierre (1658-1743) escreveu um dos primeiros livros sobre a “paz perpétua”, em que fazia uma proposta sobre a forma de manter a paz entre os estados europeus. E todos os filósofos do Iluminismo, como Jean-Jaques Rousseau e Emmanuel Kant, disseram que para manter a paz, precisamos de legislação, instituições e diplomacia.

Saint-Pierre foi um dos primeiros. Depois da Guerra da Sucessão de Espanha afirmou que se os estados europeus tivessem um exército comum não lutariam entre eles. Na época foi uma ideia inovadora, porque a História do continente até ao século XVIII é uma sucessão de lutas. A guerra era considerada um instrumento para resolver os conflitos. Só a partir dessa altura é que se começou a pensar na guerra como uma solução bárbara e em como usar meios diplomáticos para a evitar.

Em 1952 houve uma proposta para criar uma Comunidade Europeia de Defesa, que não foi adiante. Era um projeto francês, com a ideia de a Europa se emancipar da tutela do “big brother”, os Estados Unidos.

E agora, depois da invasão da Ucrânia, voltou a surgir a ideia de que os europeus têm de tomar conta da sua defesa.

A NATO estava em coma, depois Putin que a reavivou-a. Foi o seu inimigo que lhe deu nova vida.

Os europeus deviam, talvez, criar a sua própria comunidade de Defesa, sem a tutela do “big brother” e garantirem o seu futuro com as suas próprias mãos. De facto, há muitos russos, não só o Putin, que vêem com desconfiança a expansão da NATO, porque consideram que a NATO é um instrumento norte-americano. Por isso é que seria conveniente reconsiderar a proposta de 1952.

É preciso entender que a guerra na Ucrânia não é apenas uma guerra no campo de batalha; também é uma guerra de propaganda, informação e contra-informação.

Em termos de propaganda, os ucranianos são muito melhores.

Neste momento só pensamos a curto prazo porque os ucranianos precisam de sobreviver. Não é a altura de fazer planos a longo prazo, mas esta corrida ao armamento, acho-a muito preocupante. Faz-me lembrar os anos antes das duas guerras mundiais. Há muitos países a mandar armamento para a Ucrânia e os russos usam a “operação especial” para justificar um grande investimento em novas armas. Não estamos a pensar nos resultados futuros desta corrida, e esse é o maior problema.

Stella Ghervas
créditos: DIOGO GOMES / MADREMEDIA

Outro ângulo interessante no seu livro é que a Stella diz que a política inglesa tem sido sempre procurar um equilíbrio entre os poderes europeus, apoiando uns contra os outros para que não haja nenhum preponderante. Não concordo que a lógica deles seja essa. A única coisa que os move são os seus negócios.

O que eles procuram é ser o decisor quanto ao equilíbrio de poderes na Europa. Isso foi definido pelo economista Charles Davenant (1656-1714), ao afirmar que eles deviam manter o equilíbrio de poder na Europa.

O Brexit faz muito pior aos ingleses do que à Europa.

Napoleão disse que eles eram uma “nação de comerciantes”. Pejorativamente, é claro. E no seu livro se comprova que quem ganhou mais com a Paz da Vestefália foram eles. Assim começou o Império Britânico. Embora não estivessem envolvidos diretamente na Guerra da Sucessão de Espanha, que foi uma disputa entre os Habsburgo e os Bourbon, obtiveram concessões que projetaram o seu poder fora da Europa.

Com Portugal houve um acontecimento comparável; levaram D. João VI para o Brasil para o salvar dos franceses, mas em troca o rei abriu o Atlântico ao comércio inglês.

Sim, os ingleses souberam muito bem usar a seu favor o papel de reguladores do equilíbrio de poderes na Europa.

Conhece aquela série “Sim, senhor ministro”? O secretário diz que os ingleses estão dentro da UE (nessa altura ainda estavam) precisamente porque são contra ela e só estando dentro a podem baralhar.

Conheço e gosto muito! “Comer os europeus ao pequeno-almoço”!

Nessa lógica o Brexit não faz sentido.

Há quem diga que o Brexit significaria o fim do projeto europeu, mas eu, como historiadora da Europa a longo prazo, vejo que a Europa tem passado por muitas crises. O Brexit é mais uma crise doméstica, faz muito pior aos ingleses do que à Europa. E eles agora lamentam, tenho a impressão. Foi um erro de avaliação.

No primeiro capítulo do livro conto aquela expressão francesa que diz que a Inglaterra é a “pérfida Albion”.

Nós também dizemos isso aqui. Porque temos a mais antiga aliança da História, e sempre que a Grã-Bretanha precisa de nos tramar, não hesitam. A aliança só funciona quando é no interesse deles.

Parafraseando Lord Palmerston, o primeiro-ministro britânico da segunda metade do século XIX,: "não temos aliados eternos e não temos inimigos perpétuos; apenas os nossos interesses são eternos e perpétuos".

Quando abri o seu livro fiquei muito impressionado com a sua comparação de dois quadros que representam a Europa em épocas diferentes; o triunfalismo simbólico de Tiepolo no século XVIII e o desânimo pungente de Max Ernst em 1940. Como mudou a visão da Europa!

O Tiepolo pintou a “Alegoria dos Planetas e Continentes” em 1752, numa época triunfal, e Ernst produziu “A Europa depois da chuva”, no ponto zero do continente, devastado pela guerra.
Gosto de usar fontes diferentes, como pintura ou música.

Sente-se pessimista ou otimista, quanto ao futuro?

Não gosto dessa pergunta, porque me lembra de quando fui pela primeira vez aos Estados Unidos, as pessoas perguntavam-me sempre se gostava de gatos ou de cães (“are you a cat person or a dog person?”). Não sou nem pessimista nem optimista, considero-me uma realista. Sobretudo, tenho esperança. Acho que ter esperança sobre o nosso futuro é um dever moral. E a esperança é essencial em tempos de crise e de guerra.

Esta terrível guerra deve terminar. Tal como disse a Angela Davis (ativista americana): sem esperança nada se pode fazer.