Introdução

O artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa é claro: «Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar». No entanto, alguém que receba um salário médio numa grande cidade tem razões para sentir que esse direito não está a ser garantido no seu caso. Muitos jovens não conseguem sair de casa dos pais, mesmo depois de obterem um emprego qualificado. Muitos casais optam por não fazer crescer a sua família por não conseguirem adquirir ou arrendar uma casa maior. Estudantes e profissionais deslocados têm ainda maior dificuldade em manter duas casas.

A verdade é que não basta escrever um direito no papel para que ele seja cumprido. É preciso que sejam criadas condições para que ele possa ser garantido. A boa vontade não chega: são necessárias políticas que garantam as condições para que esse direito possa estar mais acessível. Nas primeiras décadas de democracia deram-se grandes passos na concretização desse direito. Desde a aprovação da Constituição da Desfazendo mitos sobre a crise da habitação República Portuguesa até aos Censos de 2011, construíram-se em média cerca de 80 mil casas por ano. Milhões de pessoas tornaram-se proprietárias das casas onde viviam. Milhares deixaram de viver nas barracas onde cresceram, tiveram filhos e passaram a ter uma vida digna. Surgiram zonas residenciais por todo o país, as cidades cresceram e floresceram subúrbios à volta desses centros urbanos. O parque habitacional do país modernizou-se ao longo dos anos, com casas cada vez mais casas novas e confortáveis, através da reabilitação de habitações antigas e construção de novas.

A realidade alterou-se bastante nos últimos 10 anos. O parque habitacional envelheceu, existem mais casas a precisar de reparações e há agora muito menos construção de habitação. Mais importante do que isso, adquirir ou arrendar casa tornou-se muito mais caro em relação ao salário médio dos portugueses. Ou seja, a taxa de esforço disparou e, sem surpresas, este problema está hoje no centro da discussão política. Sem surpresas também, o debate tem sido instrumentalizado para justificar agendas políticas que se mantêm constantes, independentemente do tema: quem não gosta da propriedade privada, instrumentaliza o problema para atacar os proprietários; quem não gosta imigrantes culpa os estrangeiros, quem não gosta de empresários ou investidores responsabiliza-os a eles. No meio desta discussão marcada por velhas agendas, perde-se a perspetiva sistemática, rigorosa e racional que este tema, ou qualquer outro, exigiria. É esse o propósito deste livro, recorrendo a estatísticas, factos e casos para entendermos melhor as origens da situação atual e dando algumas pistas daquilo que pode ser feito no futuro. Fica aqui aberta a discussão, sem mitos – apenas com factos.

CAPÍTULO 12

Custos de construção

O processo de construção de um prédio de habitação tem vários passos. Primeiro, o promotor tem de encontrar financiamento para o projeto, ou seja, pessoas ou instituições disponíveis para investir num projeto imobiliário em Portugal. Tal como qualquer pessoa, o investidor quer garantir não irá perder dinheiro ao realizar o seu investimento, pelo que faz por antecipar todos os riscos. Quando as taxas de juro estão baixas, é de esperar que haja mais investidores interessados em construir, porque as formas de aplicação alternativa de dinheiro são menos rentáveis. Com taxas de juro mais altas, alguém que tenha poupanças para investir tem alternativas mais seguras de investimento e, por isso, só investirá nos projetos mais rentáveis. Em alguns casos, preferirá não investir na construção de imobiliário e aproveitar as taxas de juro altas para colocar as poupanças em investimentos mais seguros e de retorno imediato (como contas a prazo ou obrigações).

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Quanto mais arriscado é um investimento, maior o retorno que o investidor exigirá de modo a aplicar o seu dinheiro. Nomeadamente, quanto mais imprevisível for o processo de Desfazendo mitos sobre a crise da habitação licenciamento e construção de um edifício, maior o risco e, por isso, maior será o retorno exigido pelos investidores. Imagine o leitor que estava a decidir entre investir na construção de habitação em dois países e que em ambos o retorno esperado desse investimento seria 10%. Preferiria investir num país onde tivesse a certeza que o licenciamento ficaria pronto em 3 meses ou num país onde não soubesse se iria demorar três meses ou dois anos? Mesmo que o retorno esperado do investimento no segundo país fosse 11%, a maioria dos investidores continuaria a preferir investir no país em que sabia com o que contar. O retorno, ou seja, o preço final das casas teria que ser muito superior para um investidor aceitar investir no país onde os prazos de licenciamento são incertos. Num país em que o investidor não saiba quanto tempo irá demorar o licenciamento e em que não confie na justiça caso tenha problemas com empreiteiros ou autoridades locais, o investidor só colocará o seu dinheiro se o retorno for bastante acima do retorno de um depósito a prazo ou de emprestar dinheiro ao Estado. Em Portugal, onde os processos de licenciamento são longos e imprevisíveis e a justiça lenta, o retorno exigido é maior. Isso explica em parte o facto de haver um enviesamento no sentido de se construir habitação de luxo, com margens maiores na venda.

Muitos investidores não arriscam construir casas com margens mais baixas porque o risco de o fazer em Portugal é demasiado grande. Em investimentos com margens médias ou baixas, qualquer atraso com licenciamento ou casos com a justiça pode facilmente fazer com que o investimento passe de lucro a prejuízo.

A forma como o Estado trata quem investe em imobiliário também pesa nesse enviesamento. Poucos arriscarão investir na construção para arrendamento em Portugal, apesar de ser Trancas à Porta um negócio comum noutras partes da Europa, incluindo na vizinha Espanha. Vários governos no passado, incluindo em 2023, impuseram restrições inesperadas no mercado de arrendamento (limitaram rendas, impediram despejos, etc.) Perante esta instabilidade jurídica, poucos serão os investidores disponíveis para construir para arrendar à classe média, arriscando-se a que mudanças legislativas no futuro arruínem um investimento que se quer de longo prazo. Esta preocupação com a estabilidade legislativa de longo prazo é particularmente importante para fundos de pensões, que constituem uma categoria importante de investidores no mercado imobiliário.

No caso do investimento premium, as margens são maiores e o risco político menor (dificilmente um governo irá interferir no mercado para ajudar pessoas ricas a comprar/arrendar casas de luxo). Em Portugal, há ainda um problema adicional: a falta de poupança interna para fazer este tipo de investimentos. Uma das grandes fontes de poupança interna que depois se reflete em investimentos de longo prazo noutros países são os fundos de pensões. Em Portugal, os fundos de pensões são quase inexistentes devido à forma como a nossa Segurança Social está estruturada. Portugal poderia, claro, atrair fundos de pensões estrangeiros, mas isso exigiria ter um mercado imobiliário muito atrativo e hoje isso quase só acontece para o segmento de luxo.

O segundo passo é encontrar um terreno para construir. Na realidade, este segundo passo ocorre quase sempre em simultâneo com o primeiro, ou mesmo antes. É natural que, com o tempo, os terrenos de construção se tornem mais escassos, especialmente nas zonas urbanas mais concorridas. Este tem sido um dos obstáculos à construção nos últimos anos. No entanto, a construção não baixou só nas zonas urbanas mais concorridas. Foi algo transversal. A área de terreno onde se pode construir depende do Plano Diretor Municipal (PDM) de cada concelho. Esses planos, em muitos casos, demoram anos, até décadas, a serem revistos. É muito difícil para um terreno que não é considerado urbanizável passar a sê-lo. A falta de terrenos urbanizáveis não só impede a construção como torna os terrenos urbanos existentes mais caros, aumentando o custo final da habitação.

Para além disso, a própria densidade de construção num terreno pode variar. Em alguns terrenos pode ser permitido construir prédios de 10 andares e noutros apenas moradias térreas. A construção em altura é uma forma de ultrapassar os limites naturais da escassez de terrenos. Em Portugal, existe uma certa aversão à construção em altura, mesmo nas grandes áreas metropolitanas, ao contrário do que acontece noutros países (pensemos em Londres, Nova Iorque ou mesmo Milão). A construção em altura tem o benefício de concentrar mais população numa determinada área, o que torna mais rentável a instalação de serviços essenciais à volta dessas zonas residenciais, permitindo aos seus habitantes um acesso mais rápido a esses serviços. Também permite poupar área à superfície para outros usos como jardins e parques. Termos zonas altamente procuradas com pouca construção em altura significa que teremos menos pessoas com possibilidade de viver nessa zona ou menos espaço à superfície para parques e jardins. Por cada pedaço de terreno numa cidade reservado a uma moradia térrea, são algumas dezenas de famílias que deixam de poder morar na cidade por não estar ali um edifício. Também significa que um promotor não pode dividir o custo do terreno por mais alojamentos, aumentando também o custo por alojamento construído. Esse aumento de custo faz aumentar o preço de venda do alojamento novo, o que também faz aumentar o preço dos imóveis usados.

Outro problema que limita o número de terrenos disponíveis e casas disponíveis para reabilitação é a morosidade da justiça em questões de heranças. Muitas casas e terrenos ficam abandonados anos a fio por falta de acordo entre herdeiros, desperdiçando espaço essencial para crescimento do parque habitacional.

Outros terrenos ficam parados à espera que o seu valor suba. A forma como se taxa a propriedade em Portugal também não incentiva o bom uso do solo, especialmente o solo urbano. O IMI recai sobre o valor da propriedade, ou seja, se não houver nada construído ou apenas ruínas, o IMI pago pelo mesmo espaço é muito mais baixo do que se houver uma construção nova. Uma alternativa a esta forma de taxação é conhecida como Land Value Tax que é uma forma de taxação, que recai sobre o valor potencial do terreno e não sobre o que lá está implantado. Por exemplo, numa cidade, o Land Value Tax seria o mesmo para um terreno com um prédio novo ou com uma moradia em ruínas. Isto incentivaria o bom uso do solo por parte dos proprietários, reduzindo o desperdício (por exemplo, o desperdício com zonas de estacionamento à superfície em áreas da cidade com défice de habitação). Esta forma de taxação, que ficou associada ao economista americano Henry George foi também defendida por vários economistas, de Adam Smith a Paul Krugman, passando por Milton Friedman. Substituir o IMI por uma forma de Land Value Tax não é uma solução mágica e teria ainda a desvantagem de retirar um incentivo às câmaras municipais para licenciar novos projetos – atualmente um novo projeto representa receitas adicionais de IMI, o que deixaria de ser o caso. No entanto, é uma ideia que tem uma lógica clara de eficiência económica e que é aplicada em vários países desenvolvidos.

Livro: "Trancas à porta"

Autores: Carlos Guimarães Pinto, Juliano Ventura, André Pinção Lucas e Filipa Osório

Editora: Alêtheia Editores, +Liberdade

Data de Lançamento: 26 de outubro de 2023

Preço: € 18,00

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Para perceber o que pode ou não ser construído num determinado terreno, o promotor tem de pedir um PIP (Pedido de Informação Prévia) e esperar que a Câmara Municipal responda com a viabilidade de construção no terreno, assim como as limitações. O próximo passo após obter o PIP é fazer um projeto de licenciamento. O promotor submete o projeto de arquitetura e aguarda pela decisão sobre o licenciamento. Esse processo de licenciamento pode levar meses ou até anos, dependendo das câmaras municipais em causa. Para além do projeto de arquitetura, são necessários projetos de especialidade, como água, gás, esgotos, eletricidade ou comunicações. Em média, um promotor espera que o processo de licenciamento para um edifício de habitação com alguma dimensão demore cerca de dois anos. Durante este período, parte do dinheiro que foi captado para esta construção está parado (incluindo o que foi gasto para a compra do terreno). Quanto mais tempo o licenciamento durar, maior o custo do capital investido e, por isso, maior o custo final com a habitação.

Após o licenciamento, chegamos à fase da construção. Aqui, o promotor tem de encontrar um empreiteiro com capacidade para construir a habitação. Isto pode ser um desafio importante. Após a crise financeira de 2009 e a crise da dívida pública de 2011, o setor da construção colapsou, deixando muitos trabalhadores qualificados sem emprego. Alguns negócios de construção, especialmente pequenos e médios, fecharam. Muitas pessoas qualificadas emigraram ou mudaram de setor. Hoje existem menos 22% de pessoas a trabalhar no setor da construção do que em 2009 e menos 38% do que em 2001. Isto constitui, obviamente, um enorme desafio para retomar o ritmo de construção de outros tempos. Se somarmos a isto o facto de outros países europeus estarem a passar pelo mesmo tipo de escassez de recursos humanos qualificados para construção, o desafio duplica, porque esses países conseguem facilmente convencer os recursos humanos portugueses a emigrarem por terem mais capacidade para pagar bons salários.

Quando o empreiteiro termina a obra e fatura o promotor, recai IVA sobre o custo total da obra (incluindo materiais, mão de obra, etc.) Neste momento, o IVA da construção está na taxa máxima, com algumas exceções que variam de ano para ano, pelo que não podem ser assumidas em nenhum plano de investimento. Enquanto outros bens básicos, como a alimentação ou produtos de higiene, têm taxas de IVA reduzidas ou até IVA zero, a habitação (outro bem básico e essencial) tem a taxa máxima. Se ao IVA de 23% somarmos outros impostos como IMT no terreno, IMI, AIMI, taxas de licenciamento, taxas urbanísticas e o próprio IRC pago pelo promotor, podemos concluir que o estado absorve cerca de um terço do custo de construir uma casa (o valor depende do tipo de casa e diferença entre preço de venda e custo). Depois, na venda, o estado volta a cobrar IMT, desta vez ao comprador. Esta carga fiscal diminui as margens de lucro dos promotores, inclinando novamente o campo no sentido da construção de habitações onde as margens brutas são maiores. Como noutros casos, também na habitação a carga fiscal tem o efeito de subir os preços finais.

O leitor mais crítico dirá que os promotores quereriam sempre investir nos negócios com margem de lucro maior, mesmo que todos estes fatores não contribuíssem para isso. Mas isso não é necessariamente verdade. Em todos os setores, há oferta de produtos com margens maiores e mais pequenas. No setor automóvel, por exemplo, há automóveis de gama alta com margens maiores e gamas baixas com margens mais pequenas. Isto acontece porque os fabricantes tanto podem obter lucros tendo margens elevadas como tendo margens baixas, mas vendendo mais. Vender mil carros com margem de mil euros é melhor do que vender 10 carros com margem de dez mil euros. O mesmo poderia acontecer na habitação: poderíamos ter promotores que investissem em habitação mais barata na expectativa de poder vender em maior quantidade. É o que se verifica em boa parte dos países europeus e acontecia em Portugal há 20 anos. Isso é menos frequente hoje porque devido ao efeito que a incerteza no setor tem nas margens. Com margens mais baixas, o risco de qualquer fator inesperado atirá-las para valores negativos é maior. Com justiça lenta e licenciamentos demorados, no setor da construção o risco da margem ser mais baixa do que o esperado é alto, pelo que muitos promotores preferem não arriscar e investir apenas em negócios de margem mais alta capaz de suportar qualquer imprevisto.

Para percebermos isto, voltemos ao exemplo da indústria automóvel. Imaginemos que um fabricante automóvel tem a possibilidade de fabricar automóveis baratos com uma margem de mil euros por automóvel ou automóveis caros com uma margem de 10 mil euros por automóvel. Imaginemos também que se produzir automóveis baratos irá vender 100 mil e se produzir os mais caros irá vender apenas 5 mil. A escolha aqui é clara: produzindo os mais baratos, irá ganhar 100 milhões de euros, enquanto se produzir os mais caros, irá ganhar 50 milhões de euros. Mas agora imaginemos que os custos são incertos. Imaginemos que antes de começar a produzir o fabricante não tem a certeza se o deixarão mesmo produzir, se terá licença para produzir imediatamente ou só após 3 anos, e também não sabe se aparecerá um imposto ou se terá de fazer alterações na linha de produção que tornem a produção mais cara. Imaginemos que, se as coisas correrem mal, cada carro pode acabar por custar mais 2 mil euros do que o previsto. Neste caso, no pior cenário, o fabricante irá ganhar 8 mil euros por carro caro e poderá perder mil euros por cada carro barato. O fabricante não sabe se estes problemas irão ocorrer ou não, mas, ainda assim, prefere não arriscar num negócio que pode ter uma margem negativa se as coisas correrem mal. Neste caso, mesmo tendo a expectativa de ganhar menos dinheiro, prefere fabricar os carros mais caros porque são os únicos com margem suficientemente alta para dar segurança de que a produção dará lucro.

Algo semelhante acontece no caso da habitação. As incertezas na fase de planeamento são tantas que, para assegurar que a construção é rentável, muitos investidores preferem apostar num segmento de casas mais caras e, por isso, com margem superior, protegendo-os de qualquer imprevisto que faça diminuir as margens. A ausência de terrenos para construção cria um incentivo adicional para produzir casas mais caras. A rentabilização da construção de casas mais baratas implica que se possa construir e vender mais. Se houver restrição no número de casas que se podem construir devido à escassez de terrenos ou impedimento de construção em altura, a vantagem de construir casas mais baratas (abdicar da margem para vender mais) diminui bastante. Ou seja, sem disponibilização de terrenos e possibilidade de construir em altura, reduzem-se os incentivos a construir habitação a custos acessíveis. Terrenos de valor elevado consomem margem na venda, o que pode fazer com que construções para a classe média deixem de ser rentáveis. Neste caso, a solução é precisamente garantir que existem mais terrenos urbanos ou urbanizáveis, assim como permitir maior volumetria de construção nesses terrenos, o que reduziria o preço dos terrenos urbanos existentes e fomentaria construção com preços mais apropriados à carteira dos portugueses.

Concluída a construção, o promotor ainda tem de obter a licença de habitabilidade, que só é conseguida após uma inspeção por parte de um fiscal da câmara municipal. O fiscal irá garantir que a casa cumpre todas as regras exigidas, regras essas que estão espalhadas por vários regulamentos, incluindo o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU). Estas regras não estão relacionadas apenas com a estrutura do edifício, mas também com o interior da habitação. Existem regras para dimensão das divisões, largura de corredores e, até 2023, exigência de loiças sanitárias como bidé (sim, é mesmo verdade) e banheira (tem de ser mesmo banheiro e não base de duche). Enquanto algumas destas regras podem fazer sentido para que se garanta uma comodidade mínima nas casas novas, noutros casos são absurdas e anacrónicas, apenas acrescentando custos desnecessários à construção de habitações. Até 2023, era muito comum instalarem-se bidés e banheiras para garantir que a casa obtinha licença de habitação e retirá-los logo de seguida, substituindo-os por uma base de duche porque o proprietário assim o desejava. A instalação e desinstalação, assim como a loiça sanitária adquirida e desperdiçada, tudo soma ao custo de construção.

Estando a casa pronta para habitar, tem ainda de ser comprada. No preço de venda estarão refletidos todos os custos de construção e respetivos impostos, adicionados da margem do promotor. Sobre este valor irão recair mais dois impostos: IMT e Imposto de Selo.

Desde o planeamento à venda, o processo de ter uma casa nova é complexo, carregado de burocracias, taxas, impostos e imprevisibilidade. Cada um destes elementos acrescenta ao preço final de venda. Cada um deles retira margem ao promotor (diminuindo os incentivos à construção) e acresce ao preço para o comprador (tornando a casa menos acessível para quem menos tem). Qualquer política de habitação que ambicione verdadeiramente resolver o problema da falta de habitação tem de olhar para este processo do princípio ao fim e perceber como o pode agilizar e aliviar em todas as fases. Só assim conseguiremos garantir mais habitação e mais acessível.

Como Londres se transformou numa cidade mais densa e transformou a destruição numa oportunidade de desenvolvimento

A forma como a construção em altura permitiu a Londres desenvolver-se, resumido num caso que começa com uma tragédia:

Não é difícil perceber por que os bombardeamentos são prejudiciais para os negócios: além de infligirem um custo humano trágico, os ataques aéreos prolongados tendem a deslocar trabalhadores e destruir infraestruturas, levando até mesmo uma economia vibrante ao colapso. No entanto, de acordo com dois economistas, o que acontece nas décadas seguintes merece uma análise mais detalhada.

Quando Gerard Dericks da Universidade de Oxford Brookes e Hans Koster da Vrije Universiteit Amsterdam estudaram o efeito económico da prolongada campanha de bombardeamentos da Alemanha Nazi em Londres durante a Segunda Guerra Mundial, descobriram algo contraintuitivo. Após grande parte da cidade ter sido arrasada, Londres reconstruiu-se maior. Isso impulsionou a economia da cidade a longo prazo.

Antes da guerra, obter permissão para construir era dispendioso e demorado. Mas a reconstrução após o Blitz muitas vezes estava sujeita a regras menos rigorosas. Com muitos locais históricos destruídos, havia menos a preservar. Os edifícios construídos nos locais dos bombardeamentos eram mais altos do que os seus antecessores.

Londres nunca foi construída segundo um plano ordenado, como Paris de Haussmann ou Chandigarh de Le Corbusier. Após o grande incêndio de 1666, Christopher Wren propôs um novo layout ao estilo europeu construído em torno de grandes avenidas cruzadas. Os londrinos ignoraram a sua visão continental: reconstruíram praticamente como as coisas eram antes. Da mesma forma, o Blitz não transformou o mapa da cidade. Mas ajudou a remover restrições de planeamento que de outra forma teriam sufocado o crescimento dos centros comerciais de Londres. Edifícios maiores juntaram os trabalhadores e estimularam a atividade económica, um fenómeno conhecido como aglomeração. Estar em proximidade aumentou a produtividade dos trabalhadores, e os concorrentes mudaram-se para locais próximos uns dos outros para poupar recursos e partilhar conhecimento.

Os clusters energizados por isso — finanças na City, direito em Holborn e Clerkenwell e private equity no West End, entre outros — viram retornos financeiros enormes. As rendas elevadas de escritórios refletem a vontade das empresas de estar num centro de atividade. (E apesar das previsões de uma realocação para o trabalho remoto pós-pandemia, o espaço comercial continua caro hoje em dia.) Esses benefícios estão tão concentrados que os economistas estimam que, a apenas três minutos a pé para fora de um cluster, o efeito de aglomeração praticamente desaparece.

Se não fossem os edifícios e negócios que surgiram nas décadas após os bombardeamentos, o produto interno bruto (PIB) de Londres seria 10% menor, o que equivale a uma perda de £64 mil milhões (81 mil milhões de dólares) por ano em dinheiro de hoje.

Este efeito de aglomeração é até dez vezes superior ao que estudos anteriores encontraram noutras cidades. Um estudo semelhante mostra que o colapso do Muro de Berlim em 1989, um choque que permitiu às empresas concentrarem-se novamente, teve apenas um terço do impacto que o Blitz teve na economia de Londres. Dericks e Koster afirmam que Londres tinha regras de construção excecionalmente rigorosas, e aliviá-las teve grandes benefícios. Eles também apontam para investigações que mostram que cidades globais de grande dimensão com forças de trabalho altamente qualificadas e PIB per capita elevado têm maiores benefícios de aglomeração do que cidades mais pequenas. Um estudo sobre o surgimento de novas agências de publicidade em Manhattan mostra um benefício semelhante para o aluguer de espaço de escritório perto de empresas afins.

A campanha de bombardeamentos em Londres foi uma tremenda tragédia — quase 20.000 londrinos foram mortos em apenas nove meses. No entanto, ao reconstruir-se de forma mais densa e permitir que as empresas prosperassem, a cidade transformou uma tentativa de destruição num catalisador de crescimento.

Artigo da revista The Economist, 24 de agosto de 2023

Em resumo...

1. O processo de construção de uma casa é longo e burocrático.

2. A falta de terrenos urbanos ou urbanizáveis limita e encarece a construção de novas habitações.

3. A incerteza no processo de licenciamento também encarece o preço final das novas habitações.

4. A falta de pessoal qualificado é um dos principais obstáculos ao investimento na construção de novas habitações. Muito pessoal qualificado mudou de país ou setor no final da primeira década deste século, deixando o país sem estes recursos de forma permanente.

5. Dado que este é um problema generalizado na Europa, e sendo os salários em Portugal mais baixos, será muito difícil para as empresas portuguesas conseguirem recrutar pessoal qualificado lá fora ou mesmo reter o seu pessoal qualificado.

6. A incerteza e os custos elevados de construção criam um enviesamento no sentido de se construir mais para os segmentos mais caros.

7. Sem uma agilização dos processos de licenciamento, não conseguiremos voltar a ter um nível de construção que responda às crescentes necessidades.