As imagens têm sido partilhadas e repartilhadas nas redes sociais, alimentando a sensação de choque. Vídeos que mostram dezenas de jovens a derrubarem barreiras de segurança, na entrada de portas, empurrando-se e atropelando-se no processo. Carros de paramédicos a tentar passar pela multidão e a serem impedidos de socorrer quem precisava, porque alguém achou boa ideia dançar em cima do seu tejadilho. Pessoas estendidas no chão, a receber massagens cardíacas. Operadores de câmara que ignoram gritos de socorro. E, ao longe, a música vai tocando.
Poderíamos voltar a replicar todas essas imagens, mostrar uma vez mais aquilo que se passou na edição deste ano do festival Astroworld, mas os números falam – ou deveriam falar – mais que qualquer botão de play: oito mortos, entre eles um jovem de apenas 14 anos, e centenas de feridos. Tudo por culpa de um concerto, essa coisa que tanto nos faltou, a nós que amamos música, ao longo de ano, ano e meio de pandemia. Depois de tantas lágrimas, tantos cancelamentos e tantas perdas financeiras, a indústria da música ao vivo e os fãs de música ao vivo não mereciam acordar, ainda mal refeitos do nada que experienciaram por culpa de um maldito vírus, ao som de uma tragédia como esta.
Na história dos concertos ao vivo, esta não é a única tragédia, e provavelmente – lamentavelmente – não será a última. Ignorando fatores externos à organização de um evento desta escala, como atentados terroristas (os do Bataclan e de Manchester à cabeça, por serem dos mais recentes), lembramo-nos imediatamente daquilo que ocorreu em Roskilde, na Dinamarca, no ano 2000: nove mortos e vinte e seis feridos, também eles esmagados pela multidão, durante um espetáculo dos Pearl Jam. Uma investigação posterior determinou não ter existido negligência, e o festival de Roskilde, um dos maiores da Europa, ainda junta todos os anos milhares de fãs – tendo adotado novas e maiores medidas de segurança após o sucedido (já os Pearl Jam imortalizaram os «nove amigos que perderam» em 'Love Boat Captain'). Em 1991, três pessoas morreram durante um concerto dos AC/DC em Salt Lake City, quando o público acorreu para junto do palco assim que se escutaram os acordes de 'Thunderstruck'; os AC/DC chegaram a acordo com as famílias das vítimas. Em 1979, 11 fãs dos The Who morreram à porta de um concerto destes, em Cincinnati, quando cerca de sete mil pessoas tentaram entrar ao mesmo tempo dentro da sala de espetáculos. O concerto prosseguiu sem que a banda tivesse tomado conhecimento do que se passou, antes de entrar em palco.
O Astroworld é agora apenas mais um nome nesta lista de eventos onde alegadas falhas de segurança levaram à morte de inocentes, cujo único objetivo era o de estarem próximos dos seus ídolos. As imagens dão azo às perguntas. Como? Porquê? Teria sido evitável? Bem, evitável é-o sempre – resta saber se tudo foi feito nesse sentido. As investigações começaram logo na passada sexta-feira, noite do caos, e irão certamente continuar nas próximas semanas, à medida que as autoridades vão recolhendo novas informações. Sendo que, no final, talvez até nem seja possível descobrir culpados. Ou um culpado que seja.
Um caso entre muitos
Depois dos Pearl Jam, dos AC/DC e dos The Who, quem está agora no epicentro de uma tragédia num concerto ao vivo é o rapper Travis Scott, uma das estrelas maiores da cena hip-hop atual: mais de 45 milhões de discos vendidos, oito nomeações para um Grammy, e o primeiro artista da história da Billboard a alcançar a primeira posição das tabelas por três vezes, em menos de um ano. Em 2020, mais de 27 milhões de pessoas assistiram ao concerto virtual que deu dentro do mundo de “Fortnite”. Três anos antes viu o seu nome fazer parte das manchetes de dúzias de revistas cor-de-rosa, por via da sua relação com Kylie Jenner, de quem já tem um filho e um outro a caminho. Portugal também já teve o prazer de o ver de perto, com um concerto na edição de 2018 do Super Bock Super Rock, e preparava-se – não fosse a pandemia – para o rever no Rolling Loud. E tem obrigatoriamente de ser ele o epicentro, não só porque a tragédia ocorreu durante um espetáculo seu, mas também porque o próprio Astroworld era organizado por si.
Numa cultura pop onde fãs extremosos (os chamados stans, numa referência à canção com o mesmo nome de Eminem) defendem até à morte os seus ídolos, independentemente de tudo aquilo que possam fazer de grave, não falta quem o venha defendendo desde a passada sexta. Mas também há quem não consiga ficar calado, quem aponte o seu dedo acusatório na direcção de Scott. Há vídeos que alegam que o rapper, contrariamente ao que veio afirmar mais tarde, entendeu que algo de muito errado se estava a passar durante o concerto – e decidiu continuar mesmo assim. Outros referem que, como organizador do festival, Scott tem que ser o responsável máximo por toda a tragédia. E, claro, quem diga que é a própria música de Scott que incita à violência, esquecendo-se dos milhares de concertos punk, rock e metal onde a ideia de “diversão” é empurrar e pontapear quem quer que esteja à frente.
Porém, o rapper não terá vida fácil no que toca à presunção de inocência, já que há vários pontos legítimos contra si. Em julho de 2015, durante um concerto na Suíça, encorajou membros do público a espancar uma das pessoas presentes, alegando que esta lhe teria tentado roubar uma das sapatilhas que trazia calçada; a pessoa em questão foi retirada da sala, e Scott ter-lhe-á mesmo cuspido em cima. Um mês depois, no festival Lollapalooza, encorajou os fãs a saltar barreiras de segurança, gritando «queremos fúria!» a plenos pulmões. A polícia tentou detê-lo durante o espetáculo, e mais tarde, em tribunal, deu-se como culpado do crime de conduta desordeira.
Faria o mesmo dois anos depois, após encorajar os fãs a subir ao palco durante um concerto no Arkansas, tendo várias pessoas, entre elas um polícia e um segurança, ficado feridas. Há ainda outro nome a reter, o de Kyle Green, que aos 23 anos ficou parcialmente paralisado ao cair de um balcão do Terminal 5, em Nova Iorque, momentos após Scott ter pedido aos presentes para que saltassem. Para não falar de um vídeo publicado na sua própria conta de Instagram, que mostra jovens a saltar barreiras de segurança, em que a legenda são várias frases de encorajamento. No Astroworld, foi captado um vídeo no qual Scott parece notar a presença de uma ambulância por entre a multidão mas, mais que parar o concerto para tentar perceber aquilo que se estava a passar, o rapper decidiu, de acordo com o site “Consequence of Sound”, sair-se com estas palavras: «quero ver gente furiosa».
Nem a LiveNation, gigante do mundo da música ao vivo, tem escapado às acusações, já que ajudou Scott a montar o seu Astroworld. E a história que a promotora conta não é, da mesma forma, um mar de rosas. O “Houston Chronicle” escreve que a LiveNation está ligada, direta ou indiretamente, a 200 mortes e 750 ferimentos desde 2006, tendo sido investigada pelo governo federal norte-americano por violações das regras de segurança no trabalho. Descontando, uma vez mais, atentados terroristas, nota-se a tragédia ocorrida na Indiana State Fair, em 2011, quando um palco colapsou e matou sete pessoas, ferindo outras 61.
Sucessão de processos
No dia seguinte à tragédia, Scott abordou por fim o sucedido com uma mensagem publicada, em formato vídeo, no Instagram. Disse-se «arrasado» pelo que aconteceu, e ofereceu «orações» às vítimas e às famílias destas, ao mesmo tempo que prometia apoiar e colaborar com as autoridades que estão neste momento a investigar o caso. Kylie Jenner também deixou uma mensagem de pesar, não se esquecendo do seu mais-que-tudo, «porque sei que ele se preocupa muito com os fãs e com a comunidade de Houston». O festival, que já vai na sua terceira edição, foi imediatamente cancelado. Para além de Travis Scott, faziam parte do cartaz nomes como Yves Tumor, Toro Y Moi, Lil Baby, Chief Keef, 21 Savage, Tame Impala e Bad Bunny.
Já esta semana, o rapper decidiu cancelar a sua presença no festival Day N Vegas, em Las Vegas, no dia 12 de novembro, e garantiu que irá reembolsar o valor dos bilhetes para quem esteve no Astroworld, assumir todos os custos com os funerais das vítimas, e oferecer um mês de terapia grátis para quem quer que necessite de um psicólogo para tratar dos traumas provocados pelo incidente. Não são más notícias. Talvez seja, no entanto, uma forma encontrada por Scott para que a sua imagem não saia tão beliscada destes incidentes. O que existe contra ele, neste momento, é muito maior do que aquilo que existe para o defender. Ele sabe-o. E também o sabem as pessoas que, nestes últimos dias, avançaram imediatamente com processos judiciais contra o rapper.
A primeira foi um homem de seu nome Manuel Souza, que no sábado deu entrada em tribunal com um processo contra Scott, a promotora ScoreMore e a gigante dos concertos ao vivo, a LiveNation. Para Souza, aquilo que aconteceu no festival Astroworld foi resultado direto de «uma motivação para o lucro, à custa da saúde e da segurança dos festivaleiros» e do «incitamento à violência». O seu advogado alega que «os réus não planearam e conduziram o concerto de uma forma segura», ignorando «os riscos extremos para os membros do público, e encorajando e alimentando comportamentos danosos». Souza exige, agora, o pagamento de uma indemnização no valor de um milhão de dólares, e uma ordem de restrição contra as partes envolvidas, para que estas não tenham qualquer oportunidade de destruir provas no local do evento.
Seguiu-se-lhe Thomas J. Henry, advogado texano, que incluiu o também rapper Drake – que apareceu ao lado de Travis Scott durante o concerto – no seu próprio processo. Henry alega que a debandada do público se iniciou assim que Drake entrou em palco, culpando da mesma forma o canadiano. Agindo em nome de uma das pessoas presentes no festival, o advogado afirmou em comunicado que «não há desculpa possível para o que aconteceu no estádio NRG, na noite de sexta». «Tudo indica que os artistas, a organização e os responsáveis pelo espaço se tenham apercebido não só do frenesi entre a multidão, mas também de que isso poderia levar a ferimentos e mortes», disse.
Ben Crump, também advogado, representante de uma das pessoas presentes no Astroworld, identificada como Noah Gutierrez, garante que irá procurar obter «justiça para todos os nossos clientes, que foram prejudicados por este trágico e evitável incidente». Tal como Souza, Cristian Guzman quer que a LiveNation seja impedida de retirar quaisquer provas que a possam condenar, e a Travis Scott, do recinto do festival. Tal como Souza, Kristian Paredes quer 1 milhão de dólares de indemnização. À hora a que este artigo é escrito, são já 19 as pessoas que querem ver Travis Scott sentado no banco dos réus – e certamente que mais se lhes seguirão. À “Rolling Stone”, um grupo de advogados admitiu que o número de processos judiciais interpostos contra o rapper poderão chegar «às centenas», ao passo que as indemnizações a pagar poderão chegar «a centenas de milhões de dólares».
E agora, Travis Scott?
Teria sido evitável? Voltemos a repetir esta pergunta. Um artigo do jornal “The New York Times” parece indicar que o Astroworld estava na mira das autoridades locais; temiam a existência de uma espécie de rastilho para um problema que, mesmo não identificado, poderia explodir. Em dois planos de segurança para o Astroworld, publicados pelo jornal, detetam-se dúvidas em relação à capacidade do festival para responder a tragédias diversas: tempo extremo, um atirador solitário, motins. Em causa estaria o próprio formato do recinto: «o potencial para vários incidentes relacionados com álcool e drogas, a necessidade de uma evacuação de emergência ou a ameaça de uma situação com múltiplas vítimas são fontes fundamentais de preocupação», pode ler-se.
As dúvidas, segundo o “The New York Times”, eram tantas que o chefe da polícia de Houston, Troy Finner, chegou mesmo a visitar Travis Scott, mostrando-se preocupado com o facto de o Astroworld vir a acolher mais de 50 mil pessoas. Junte-se a isso o facto de serem maioritariamente jovens sedentos de ação, libertos no mundo após meses e meses de confinamento caseiro, e de facto o potencial trágico era imenso. O “Wall Street Journal” vai mais longe: a equipa de segurança, alegam alguns peritos, não estaria suficientemente treinada para lidar com a multidão.
Samuel Peña, chefe do corpo de bombeiros de Houston, afirma que estava nas mãos do rapper e da organização do Astroworld terminar com o concerto caso as coisas dessem para o torto – o que veio a acontecer, mas tardiamente: o espetáculo de Travis Scott acabou meia hora antes do fim previsto, mas 40 minutos após as autoridades o terem declarado um «incidente com múltiplas vítimas». «A única pessoa que pode de facto pedir por e obter uma pausa tática, quando algo corre mal, é o artista», explicou Peña. «Têm um púlpito e uma responsabilidade. Se a pessoa com o microfone tivesse pedido para se ligarem as luzes e se parar com tudo, teria ajudado imenso». Será essa a génese do problema: Scott seguiu a velha máxima, a de que o espetáculo deve continuar, em vez de colocar um travão naquela que já era uma situação caótica.
O futuro próximo não será fácil para Travis Scott. Falar num hipotético fim de carreira será, talvez, exagerado; Scott já deixou de ser um artista para passar a ser uma marca, um produto, um símbolo cultural ao qual as grandes marcas – como o fez a McDonald's – podem recorrer para vender os seus próprios produtos. A máquina publicitária tem de se mover de alguma forma e um rosto como o do rapper, que goza de uma legião de fãs sobretudo sub-18, ajuda bastante. A Dior, cuja próxima campanha era toda ela baseada em torno da figura do rapper, mostrou-se «preocupada» com toda esta situação; contactados pela “Rolling Stone”, alguns peritos em marketing admitem mesmo que a marca termine a campanha mesmo antes de esta começar.
Ignorando rumores (como relatos de pessoas injetadas com droga no concerto) e teorias da conspiração que não passam disso (como a de que as mortes se devem a um ritual satânico encetado pelo rapper), o que importará saber é de que forma se chegou àquele grau de caos. Os vários processos judiciais já iniciados colocam Travis Scott e a organização do festival no centro de todas as responsabilidades, e uma eventual culpa, ou inocência, está agora nas mãos dos tribunais e não das redes sociais. Independentemente disso, fica a ideia de que as promotoras de todo o mundo terão, pelo menos, o cuidado de rever os seus próprios planos de segurança, não vá uma tragédia semelhante repetir-se. É que não passámos, fãs de música ao vivo, por uma travessia no deserto para agora entrarmos em concertos com medo.
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