Olho para trás e encontro três exemplares de mim. Fitam sorrisos, acenam afeto e orgulho da construção de um passado em comum. Filhos que carregam entre si a ilusão do amparo da estrutura invisível que deveria nos sustentar. Volto à frente, tentando desvencilhar-me dos estranhos em busca de uma melhor visão do altar. Flores de plástico. Paraliso. Os ornamentos em torno da santa provocam náuseas. Desbotam odores dos ritos de passagem que marcaram inícios, renovações. Trinta e cinco anos depois, naquele mesmo lugar, deparo-me nos adornos de decoração, com o espelho de quem trocou adubos, fertilizantes de afeto pelo látex das desilusões. A data representava um marco. Havíamos chegado ali vivos, com saúde. Afinal, não é isso o que nos importa?

Sobre os degraus do morro que subimos antes de chegarmos àquele altar, avistei a origem. Meu lugar. Mentalmente construí um mapa com os nomes das ruas do entorno, o comércio, a escola, o campo de futebol de terra batida. Sabia que ali, em meio àquelas reentrâncias, havia um telhado acobreado, protegido por folhas de uma mangueira, que cobria paredes desbotadas de tinta rosa. Sempre estive mais ali do que em qualquer lugar. Trinta e cinco anos depois, no mesmo treze de maio, meu presente ainda era um constante retorno, as lembranças como refúgio, o abraço entre as pernas que se dá quando estamos em um quarto sem luz. A comida escassa, presentes uma vez por ano no Natal.

Sou chamada. Os gêmeos carregam-me pelas mãos enquanto Joana segue à frente com o pai. A cada degrau vencido havia a estranheza do confronto com o fundo sonoro daquela felicidade. O melhor de mim concentrava-se naquele passado. Vitrola e visita aos domingos, café da tarde, as roupas em molho nos baldes de alumínio, o cheiro de terra regada dos canteiros do quintal. Inventava a vida que queria, o limite era o portão enferrujado e quase tombado por buganvílias.

Os quatro apostam quem chegará primeiro na escadaria rumo à igreja. Quando eu a transpus pela primeira, e última vez até aquele dia, arrastando as barras de minha calda branca senti, em passos firmes e consistentes, que o futuro havia abraçado o presente. Os jarros rececionaram-me na travessia à Nossa Senhora. Apostaram quem chegaria primeiro no desafio de levá-lo ao altar. Ao meu lado, trinta e cinco anos antes, estava ele.

Todos com saúde, é o que importa. Os quatro correm divertidos e ofegantes sobre a inclinação dos degraus em pedra. Reclamam a distância que se formava entre mim e eles. O ponto geográfico do passado seduzia-me a retornar a antes de todos eles. A excitação alegre do porvir aos 18 anos. Suplico uma máquina do tempo à imagem no alto da igreja.

Não quero retomar a lembrança do dia que nos levou até ali. Os instantes daquela subida de mãos dadas com meu pai. Eu o quero de volta para, juntos, irmos ao altar do Santíssimo agradecer por nossa comida e família e, na volta, ganhar um abraço com maçã do amor. Eles gritam minha demora, sentados nos bancos em torno do santuário. O que Augusto me aconselharia naquele momento? Cada degrau vencido confirmava a necessidade de uma despedida daquela que gostaria de tornar a ser. Realizo uma lista mental de prós e contras em uma balança da corrida contra o tempo que hoje mesmo pode acabar.

Ele acena. As crianças e seus namorados também. Quem eram aquelas pessoas? Por que estou aqui? Qual é meu nome? Pertenço à suspensão do tempo, à catalogação de cada um daqueles anos que foram perdidos e ganhos. As várias que sou, fui e deixei. Mantenho as calças de gangas e a camiseta. Você ainda tem a vida pela frente. Subo em um fôlego só para que aquilo logo terminasse. Todos reclamam de fome. O dia especial seria fechado com espetos de sangues pingados, corações em brasa. Batatas fritas para arrematar.

Algo rompeu-se, deslocou-se de mim onde o noivo pode beijar a noiva. As flores jamais poderiam ser de plástico, eu me recusava a acreditar no que via. As pétalas lançadas sobre os noivos deveriam ornar álbuns de casamento e manchar páginas de néctar da vida. Os filhos cresceriam orgulhosos pelo registo arqueológico do rito; poderiam, quem sabe, apresentá-lo a seus filhos frutos, o ponto zero de existências consequentes àquele dia.

Plastificada, tornei a olhar para trás e os três ainda sorriam. Olhos incrédulos das visões frontal e posterior àquele instante. Dois partos, três filhos, todo o tempo da vida dedicado a cada um, para que eles estivessem plenos da estrutura invisível que um dia saberiam que nunca os sustentariam. Seriam pai e mães, atravessariam o rito e entenderiam as flores plásticas. Amariam a mim e a ele, que deram-lhes tudo, menos o sentido da vida. Meu repertório de lembranças se esvaziou. Precisava recompor-me, reinventar significações, ele ainda aguardava-me. Quem era ele? Os miúdos levariam o tempo nas partidas. A sobra do amor no coração emborrachado moldaria meu novo nascimento. Ainda bombeava e pulsava formas a comandos, enfeitava meu interior quando a alegria lampejava em frestas das veias e artérias. Rodopiaria a saia curta com trança do cabelo sem corte até o meio da costa. Rodopiaria a saia curta com corte desconstruído na pista de dança com ele, ou quem a aplicação buscasse como prescrição e tratamento.

Abraço todos nos pés da santa e parabenizo Fausto. Estamos ali, com saúde, todos sorriem. É o que importa.


Texto por Renata FradeHoje, Dia dos Namorados, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítuloassinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão. 

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