I

Chegou o homem, viu um pequeno e magríssimo cão junto à entrada, agachado e a tremer, com ar suplicante.

Entrou e fechou o portão.

Por sentir pena, foi a casa buscar um caixote, e restos de comida do dia anterior.

Chegou a mulher e viu o pequeno animal, só pele e osso, a tremer, olhando para ela fixamente, de cabeça baixa. Sentiu ainda mais pena.

Entrou e fechou o portão.

O animal não lhe saia do pensamento. Era noite escura, o frio fazia tremer a casa, a chuva batia nas janelas e a imagem do bicho, abandonado ao portão, inquietava-a. Sentia como se fosse ela que lá estava, desprotegida, à mercê da violência que a natureza sempre traz consigo, da chuva, do vento, do frio e da fome. Sentia-se mal e triste. Sentia-se culpada por não o proteger.

No dia seguinte, o homem e a mulher falaram muito. Eram pobres, já tinham trabalho suficiente para encurtar os dias. O homem disse:

- Este animal vai ser um empe-cilho.

Não sabendo como agir, consultaram a grande família. Todos afirmaram ter imensa pena do bicho, mas ninguém quis ficar com ele.

Assim se passaram três dias de trabalho e três noites de insónia para a mulher, que à terceira noite se levantou, foi à caixa na qual guardava as moedas para as emergências e as contou.

II

Vivia num pequeno cercado com muitos outros animais da sua raça e só saía ao domingo, quando o dono ia caçar. Lá, a vida não era fácil. O espaço era pequeno e a luta entre os seus companheiros era constante. Com ela, poucos guerreavam, embora não a deixassem sossegada. A comida era pouca ou nenhuma na maior parte dos dias.

O dono gostava deles famintos, para poderem caçar com mais afinco. Numa manhã cinzenta e fria, lá foi com a matilha dentro do atrelado, uns em cima dos outros, para algures distante de casa. Muito se esforçou por encontrar qualquer coisa que se mexesse e o dono gostasse de levar. Nem coelhos, nem raposas, nada havia ali para caçar.

De volta a casa e com toda a má disposição que lhe era habitual, o caçador meteu os animais no atrelado um pouco aos berros, um pouco aos pontapés. Quando chegou a sua vez, não a deixou entrar. Além de não servir para caçar era uma cadela que só lhe iria trazer problemas, abandonando-a ali mesmo no meio da mata.

Sozinha, com fome, medo e muito frio, a pequena cadela farejou e caminhou, farejou e correu quando viu um animal ao longe, farejou, farejou, mas o ar, tal como ela, estava tão frio e húmido que já não conseguia sentir nada. Caiu exausta no único portão de casa sem cão a ladrar furiosamente...

Ali ficou, molhada, esfomeada, a tremer de medo e frio.

A pequena cadela sempre vigilante não podia dormir nunca porque a segurança era nenhuma. A fome voltou e a água da chuva arrefecia-a até aos ossos. Pensou no cercado onde havia vivido que lhe parecia agora, muito acolhedor. Já desejava ouvir de novo os berros do caçador. Estava totalmente perdida. …

III

Ao terceiro dia a mulher decidiu. A cadela vai chamar-se impe-cilha.

Hoje vive dentro do portão, num quintal com casota e tudo, come todos os dias, dá belos passeios com a dona que ri alto e lhe faz festas no pelo.


Texto por M. Isabel M. FigueiraHoje, Dia dos Namorados, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítuloassinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão. 

Leia também: 

Três vezes antes do cantar do galo

Vamos falar de Amor

Há sítios

Estou em casa

A luz ao fundo do túnel

Amor — Fragmento de uma memória

Falar de Amor

Treze de maio

O prédio na esquina tramada