António Costa assumiu no debate parlamentar desta terça-feira que, se soubesse o que sabe hoje, não teria aliviado as restrições no período do Natal. "Nas circunstâncias em que estamos hoje, nunca nenhum de nós teria defendido aquelas medidas", disse.
Parece a história de uma desgraça anunciada:
I. O alívio do Natal alimentado pela esperança da vacina;
II. O aumento exponencial de casos e com ele um Serviço Nacional de Saúde levado até ao limite;
III. Um confinamento light que não foi levado a sério;
IV. Novas restrições que ao que tudo indica não serão as últimas e que poderão culminar no "inevitável" encerramento das escolas, apesar do "enorme custo social" da medida.
O capítulo IV é um que ainda está por escrever, mas sobre o qual se esperam notícias muito em breve. Afinal, arrancam amanhã os testes rápidos nas escolas secundárias nos concelhos com maior risco de transmissão e Marcelo quer voltar a ouvir especialistas e partidos para repensar o quadro geral de medidas de combate à covid-19, onde se inclui o encerramento dos estabelecimento de ensino, ou pelo menos parte deles — já que "há pontos de vista diferentes quanto aos vários graus de ensino".
Entretanto, a Federação Nacional de Professores (Fenprof) já defendeu o encerramento das escolas durante o confinamento e Ana Gomes, candidata a Belém, disse que este se pode revelar "inevitável".
É como se aos poucos se fosse preparando a opinião pública para uma decisão — difícil, é certo — mas que se quer urgente.
E a urgência prende-se com os números da pandemia e os relatos nos hospitais, sendo que ambos não deixam margem para dúvidas sobre a necessidade de "achatar" a curva das novas infeções não hoje ou amanhã, mas ontem.
Vale a pena recordar que no fatídico verão de 2017 o país comoveu-se com a morte de 115 pessoas nos incêndios de junho e outubro. De ontem para hoje, em apenas 24 horas, 218 pessoas perderam a vida, vítimas de covid-19.
Não há vidas mais importantes que outras, mas depois de 10 meses de pandemia corremos o risco de ficar insensíveis aos números de mortes, internamentos e de infetados que todos os dias reportamos. É preciso lembrar que por trás desses números há uma realidade trágica a ser vivida por milhares de famílias. Afinal, quem morre é pai, mãe, irmão, avô, tio, filho, neto. Quem cuida e sente que está no limite das suas forças é pai, mãe, irmão, avô, tio, filho, neto.
A par dos números, sucedem-se os avisos de que estamos perto do limite:
- A pressão dos ‘doentes covid’ no Hospital de Vila Franca de Xira tem sido “avassaladora”, existindo uma ocupação máxima das camas na Unidade de Cuidados Intensivos;
- As unidades de Cuidados Intensivos dos hospitais José Joaquim Fernandes, de Beja, e do Espírito Santo de Évora encontram-se com ocupação plena dos cuidados intensivos;
- As taxas de ocupação em enfermaria e unidade de cuidados intensivos para doentes covid-19 na região Centro estão acima dos 90%;
- O Hospital Distrital da Figueira da Foz (HDFF), no distrito de Coimbra, está na última fase do seu Plano de Contingência e caminha para o limite de resposta;
- O presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos (SRCOM) disse que é "impossível" respeitar qualquer tempo de espera no atendimento nos hospitais da região face à "enormidade" da afluência de doentes. "Os hospitais e serviços de urgência da região estão todos em rutura. Além do número de doentes que entram, junta-se o problema dos que não conseguem sair por falta de vaga no internamento", retratou Carlos Cortes.
- O recorde semanal de chamadas atendidas no SNS24 foi ultrapassado na última semana, num aumento da procura para mais do dobro, de 126.860 para 279.279, em relação à última semana de 2020.
Estas notícias são todas de hoje, às quais se junta a da morte de um octogenário, na noite de segunda-feira, na área dedicada aos doentes respiratórios no hospital de Portalegre, depois de estar quase três horas numa ambulância.
A Ordem dos Enfermeiros fala em "hospitais em situação de catástrofe" e, nesse sentido, disponibilizou hoje uma “declaração de exclusão de responsabilidade” a todos os enfermeiros, com o objetivo de acautelar eventuais ações disciplinares, civis ou mesmo criminais dos doentes a seu cargo. “Não obstante estarem a desenvolver todos os esforços, os profissionais não conseguem chegar a todos”, diz a Ordem.
A pressão aumenta, e com ela os apelos para que seja requisitada toda a capacidade hospitalar instalada no país, ou seja, obrigar os privados a colocar ao serviço os seus recursos. O Governo, porém, tem privilegiado soluções de acordo.
“Nós temos procurado as soluções de acordo às soluções de imposição. Até agora temos tido sucesso nesta nossa estratégia e todos os dias tem-se vindo a alargar o número de entidades, quer do setor social, quer do setor privado, que têm vindo a colaborar nesta campanha contra a covid e no apoio ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Até agora não tivemos nenhuma situação em que não houvesse uma alternativa à requisição”, disse ontem o primeiro-ministro.
“Todas as soluções de requisição não devem ser nem bandeiras políticas nem instrumento de combate ideológico, são instrumentos jurídicos que têm que ser utilizados na estrita medida da sua necessidade. Sempre que for necessário utilizaremos, sempre que for possível um acordo, melhor, não iremos utilizar o regime da requisição”, acrescentou António Costa.
Depois do "confinamento light" anunciado na semana passada, à meia noite desta quarta-feira entram em vigor as novas restrições anunciadas ontem pelo Governo, mas não se descarta um aperto ainda maior que, tal qual máquina do tempo, nos levará de volta para o confinamento de março de 2020.
Um, dois, três passos atrás. Costa disse no verão passado que daria quantos fossem necessários. A questão é: quantos recuos temos pela frente?
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