Na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, Vasyl Melnychuk, na altura com 71 anos, acorda em sobressalto. A mulher acorda pouco depois e os dois são surpreendidos com a notícia: a Federação Russa está a invadir a Ucrânia. 2014 foi um ensaio, agora Moscovo queria chegar a Kiev.

Três dias depois, os militares russos entraram em Bucha, uma pequena cidade nos arredores da capital ucraniana. “Quando chegaram, um soldado, um miúdo, que não foi agressivo, disse-me: ‘Não estamos aqui porque queremos, estamos a cumprir uma ordem'”, explica Vasyl à Lusa em Bucha.

Vasyl Melnychuk está a falar do outro lado de uma vedação que delimita o que resta da sua casa daquela que foi outrora a de um vizinho. É um homem bem-disposto e sorri muito enquanto conversa. Tem três dentes de ouro, visíveis quando esboça um sorriso, agasalhado com um gorro preto, uma camisola de gola alta e um casaco. Estão -2 ºC nesta tarde de quinta-feira.

À Lusa contou que foi pelo buraco da vedação que viu chegar a primeira coluna de tanques russos e foi pelo mesmo buraco que a viu “quando foi destruída”.

A mulher, a filha, o genro, os netos, os bisnetos e também Bim, o cão da família, estavam lá quando ouviram o som das lagartas ao longe: “Disseram-nos que se tivéssemos alguma coisa branca, um pedaço de tecido, uma bandeira, para colocarmos na casa e na vedação, para ficarmos em segurança.”

Naquele dia Vasyl, tinha ido comprar “muita carne” para uma festa, pelo que havia comida em casa, mas rapidamente percebeu que não tinha como a cozinhar. A eletricidade e o gás rapidamente desapareceram: “Só conseguimos comer porque tínhamos um grelhador.”

Uns dias mais tarde, já decorriam os combates na linha da frente entre as forças russas, que tentavam cercar Kiev, e as ucranianas, que tentavam reconquistar Bucha.

Vasyl e o genro saíram “para comprar pão”. O genro, está sentado num banco atrás de Vasyl Melnychuk a ouvir, curvado, a fumar. Levanta a cabeça e volta a baixá-la quando o sogro descreve o que aconteceu.

“Tínhamos saído e encontrámos os soldados russos, mostrámos a nossa bandeira branca, mas gozaram connosco e ameaçaram-nos. Pensei: ‘Estes não são como aquele miúdo do primeiro dia’. Lá nos deixaram passar, mas umas horas depois, um deles, pegou na arma e matou a Anna e a família dela, que estavam só a passar por ali”, conta. Vasyl demonstra dificuldade em relatar o que viu ser feito aos seus conterrâneos, mas quer fazê-lo para deixar o testemunho.

As atrocidades repetiram-se. Um vizinho, Nikolai, foi morto “porque tinha um antigo uniforme ucraniano, não era de agora, era antigo” e uma vizinha foi baleada e acabou por morrer depois de pedir a um grupo de militares “para saírem da sua propriedade”.

Vasyl faz sinal com a mão para que Bim pare de ladrar e aponta para um prédio, parcialmente destruído: “Estavam a utilizar aquele prédio como escritório e para guardar munições. Quando perceberam que iam perder, vi um soldado a empurrar pessoas para a rua. Pegou na arma e matou-as. Deviam ser umas 50.”

Vasyl é russófono e diz que quando os militares russos entraram em Bucha “não estava chateado”, já estava habituado porque “em miúdo foi militar da União Soviética”. Mas durante a ocupação percebeu que “aqui era diferente”. Havia “soldados verdadeiros”, que apenas estavam a combater, e havia “os outros, que pareciam criminosos, roubavam e matavam”.

Vasyl pensou que a sua casa teria sido poupada, mas quando a coluna de tanques russos foi destruída, as explosões rebentaram-lhe com as paredes. Um ano depois, ainda encontra estilhaços e partes de tanques, como um pedaço de metal e cinzento, que mostra à Lusa: “Encontrei este há umas semanas e guardei-o.”

“O telhado de um vizinho meu ruiu porque o canhão do tanque caiu-lhe em cima”, descreve.

Desde então, a família está toda a viver na garagem, para onde arrastaram o sofá, alguns colchões, e muitas mantas, para sobreviverem ao inverno. Só Bim tem direito a uma divisão própria, a casota no quintal.

Em toda a rua ecoam sons de martelos, serras elétricas, o ar transporta o cheiro a madeira. Com a ajuda de militares, o quarteirão é reconstruído e a vizinhança cicatriza conversando, ocupando-se. A reconstrução está a avançar a passos largos. Os buracos provocados pelos estilhaços estão a ser preenchidos, já há um telhado novo e Vasyl espera que a casa fique exatamente como era “antes da invasão”.

“Isto foi possível por causa de Portugal”, revela: “Quando fui à administração da cidade, porque aprovaram a reconstrução da minha casa, perguntei de onde vinha o dinheiro para isto e responderam: ‘Da Suíça e de Portugal’.”

A mulher de Vasyl Melnychuk chega do supermercado, dá-lhe um beijo na bochecha direita e agarra-lhe o braço. Cumprimenta os jornalistas da Lusa, mas não se demora, nem tem interesse em conversas. Vasyl brinca e diz que pode reconstruir a casa, “mas nunca vai estar acabada”, a mulher “quer sempre alterar mais alguma coisa”.

Há um ano considerava provável uma invasão, mas nunca achou “que chegasse aqui perto”.

Volvidos 365 dias, acredita que a Rússia voltará a tentar, “mas desta vez não vai conseguir, os militares [ucranianos] estão preparados, não voltam a entrar” na cidade.

Mas como certezas totais ninguém as tem, este reformado quis ajudar e alistou-se para trabalhar na produção de munições, ainda que poucas, ali perto. A localização, “não pode ser revelada”, sob pena de passar a ser um alvo russo, mas “é algures por aí”.

Depois da conversa com a Lusa, Vasyl Melnychuk voltou a pegar nos arames que estava a arrancar da casa, guardou-os e foi sentar-se um pouco. Mantém o sorriso, mas pausa por um instante para um desabafo: “Não é fácil ver o que vi”.

Bucha e Irpin estiveram sob ocupação das tropas russas durante um mês. Só quando as Forças Armadas ucranianas repeliram os militares russos é que se pôde começar a levantar o véu às atrocidades cometidas.

A morte tingiu as ruas e Vasyl presenciou-a numa linha da frente, que muda consoante a evolução do conflito, mas que deixa sempre o mesmo rasto de destruição. Bucha e Irpin estão a cicatrizar a um ritmo muito maior do que a maioria das cidades ucranianas e gozam hoje de paz. A guerra entra, mas agora pela televisão.

A neve cobre o chão e as casas, mas não esconde as memórias do que naquela estrada se passou, dos vizinhos que nunca mais verá, dos “crimes” que presenciou.

“Ainda tenho cabelo, apesar de ser uma família grande”, diz Vasyl, entre risos, enquanto levanta o gorro para comprovar que, de facto, ainda tem cabelo. E com o gesto de algum modo alivia as penosas memórias de um ano de guerra.