A operação Lava Jato, levada a cabo pelo Ministério Público Federal de Curitiba, virou o Brasil de cabeça para baixo. A investigação, que ainda decorre, já condenou 160 pessoas, entre intermediários, grandes empresários, funcionários e políticos, e recuperou cerca de três mil milhões de euros para os cofres do Estado. Desde 2014 que não sai do noticiário diário, tornando quase impossível acompanhar os seus meandros. O repórter Vladimir Netto, que seguiu de perto toda a investigação, conta tudo no livro “Lava Jato”, editado em 2016 no Brasil e agora em Portugal. A investigação que fez foi ficcionada na série “O Mecanismo”, do realizador José Padilha, disponível no Netflix.

Vladimir Netto veio a Lisboa para o lançamento da edição portuguesa (da editora Desassossego) e o SAPO24 teve oportunidade de conversar com ele.

Quanto tempo levou para fazer este livro?

Dezasseis meses.

Acompanhou os acontecimentos como jornalista?

Sim. Ao longo do tempo fui me especializando em casos de corrupção. Eu já cobria esses casos, dando furos, desde 1998, mas quando estourou o “mensalão”, em 2005, acabei mergulhando completamente nessa área, até ao julgamento, que foi em 2012. Foi nesse período que consolidei a minha intenção de trabalhar mais nessa área. Atraía-me mais do que a política ou a economia. Era a coisa mais interessante de se fazer, até do ponto de vista da minha geração.

Então podemos dizer que as especialidades jornalísticas no Brasil são a política, a economia e a corrupção...

Exato! Hoje no Brasil é assim. Há especialistas que se dedicam só aos casos de corrupção. Quando estourou a Lava Jato, eu comecei a perceber que era diferente de outras operações que tinha acompanhado, como por exemplo a Satiagraha (entre 2004 e 2011, a Polícia Federal prendeu 14 pessoas suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro), a Castelo de Areia (entre 2009 e 2011, visando a construtora Camargo Corrêa). Mas todas foram interrompidas. Aquela era diferente. Tanto que, quando estourou a sétima fase da Lava Jato, eu fui para Curitiba até à fase oito, quando foram presos os empreiteiros. Está no Capítulo 3 do livro.

Era uma coisa inédita. Você sabe como é o Brasil. Qual era a possibilidade de encarcerar o dono de uma empreiteira como a Camargo Corrêa, a OAS, o Leo Pinheiro?

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Impossível.

Isso mesmo, impossível. Então, quando chegou a sétima fase, eu tinha uma dica duma fonte, fui para Curitiba porque já sabia que ia ser grande. Foi muito importante para a consolidação da Lava Jato, como se o país começasse a prestar atenção na operação a partir daquele momento. Foi uma surpresa para todo o mundo. Foi a 14 de novembro de 2014, véspera de feriado. Ao longo de todo o 15 de novembro, dia da proclamação da República, só se falou nisso. Podia ver-se nas ruas a surpresa, não só de eles terem sido presos, mas depois, com o passar dos dias, continuarem na cadeia. Primeiro falava-se assim, “Eles não vão ser presos, imagina”... “Ah, foi preso; sai amanhã!”. Mas eles ficaram na cadeia. Isso foi despertando uma curiosidade na população e as pessoas começaram a se interessar mais por essa investigação.

O Marcelo Odebrecht [líder de uma das maiores construtoras brasileiras] ainda está preso, ou está em domiciliária?

Foi transferido recentemente para prisão domiciliária, onde vai ficar mais dois anos e meio. Ele recebeu uma pena de dez anos — combinou, no acordo de delação premiada — dois anos e meio já cumpriu em regime fechado, agora está em casa. Na masmorra da mansão dele. Alguém usou essa expressão.

"(...) no caso do combate à corrupção, [a delação] tem que ser vista como um instrumento útil, e na Lava Jato foi extremamente importante."

A delação premiada é relativamente recente no Brasil, apesar de ser uma figura jurídica muito antiga nos Estados Unidos. Além da questão ética, há um grande preconceito, porque no fundo é estar a premiar o bandido por denunciar. Acha que é o único instrumento que permite realmente fazer essas operações?

Gostava de começar por fazer uma observação: eu sou filho de presos políticos. A minha mãe foi presa grávida, torturada grávida. O meu pai ficou preso um ano e meio, nove meses em solitária e foi torturado barbaramente. E eles foram entregues por um delator. Militavam no Partido Comunista do Brasil no começo dos anos setenta. Um líder da célula caiu e denunciou-os. Então, seria natural que eu tivesse preconceito contra a delação premiada. A minha vida foi colocada em risco por isso. Quanto minha mãe saiu da cadeia, com 39 quilos e cinco meses de gravidez, os médicos disseram que se eu nascesse, nasceria com problema. E estou aqui até hoje, não é?

Mas, mesmo assim, acho, apesar de ter vivido essa experiência pessoal, que a delação premiada tem de ser vista com outros olhos. Eu entendo esse preconceito, que eu também tinha. Só que, no caso do combate à corrupção, tem que ser vista como um instrumento útil, e na Lava Jato foi extremamente importante. Se não, não haveria essa investigação tão profunda. Em 2013, houve uma lei que permitiu o uso da delação premiada de forma mais intensa e mais ampla. Até então só usávamos esse instrumento para casos de tráfico de droga, como usam aqui em Portugal. A Lava Jato foi como um teste desse instrumento. Foi a primeira vez que uma grande investigação contra a corrupção usou de maneira tão ampla esse instrumento. E a experiência disso é que foi útil. Se não fosse esse instrumento, com certeza não teríamos conseguido...

Apesar de eticamente ser discutível?

Eu acho que, como é um instrumento novo, é preciso fazer uma avaliação dele. É preciso usá-lo, testá-lo, tirar as impressões do que é que foi bom e o que foi ruim e fazer as correções. Temos casos de delação premiada que estão a ser discutidos, como o da JBS e do empresário Joesley Batista, que são um ótimo exemplo. Mas também tem casos como o da Odebrecht, que foi a maior delação da História. Acho que são elementos muito ricos para podermos ver o que é que funcionou e o que é que não funcionou. Casos como o do ex-senador Sérgio Machado, presidente da Transpetro que foi do PMDB, estão a ser re-discutidos, reavaliados. Eu acho que desse processo vai sair uma coisa positiva. É um amadurecimento.

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Apesar do seu livro ser um trabalho jornalístico e portanto ter um tom imparcial, há pormenores que não soam imparciais. E levanta uma questão, que é uma das críticas principais que se fazem à Lava Jato, ao juiz Moro concretamente, de que há um preconceito político nos alvos dele, na medida que até agora apanhou pessoas do PT, muito poucas do PMDB — e praticamente de mais nenhum partido. Isto no que se refere a políticos — não estamos a falar dos empresários.

Conta-se uma história, o empreiteiro que chega na posse de um Governador e o Governador diz-lhe: “Ó doutor, o senhor por aqui?” E ele responde: “Que é isso Governador? Eu estou sempre por aqui. Quem muda são vocês".

"(...) acho que não há parcialidade de Moro. A Lava Jato procura investigar todos. Hoje temos políticos de 14 partidos sob investigação no STF"

 

Mas a questão é esta: você acha, imparcialmente, como jornalista, que realmente há neutralidade na escolha dos políticos indiciados, apesar da incidência na esquerda? Ou então que se poderia alegar que a maior incidência sobre o PT é porque é o PT que está/esteve no poder?

Tenho uma visão um pouco diferente. É óbvio que a operação começaria com quem estivesse no Governo. Se for ver bem a Lava Jato, o comecinho, como o livro conta, o primeiro partido a ser investigado não foi o PT, foi o PP (Partido Progressista), um partido liberal. Eu acompanhei tudo, com a minha experiência, e a tradição da minha família de fazer um jornalismo correto. (Os pais de Vladimir, Miriam Leitão e Marcelo Netto, são jornalistas.) Achei que que tinha de contar a história pelos factos. Começo com a prisão do Alberto Youssef, do Paulo Roberto Costa, que são ligados ao PP.

Mas respondendo mais especificamente à sua pergunta, acho que não há parcialidade de Moro. A Lava Jato procura investigar todos. Hoje temos políticos de 14 partidos sob investigação no STF (Supremo Tribunal Federal). É quase toda a gama de partidos brasileiros. É como você falou, só não estão os que não estavam no poder, que não tinham cargos – eram pequenos, pouco expressivos. Mas todos estão a ser investigados. É natural que uma investigação como esta começasse pelo partido que está no Governo, mas acho que não se limitou à esquerda, como a esquerda alega. Outros partidos estão a ser atingidos também. Vou colocar alguns casos que são importantes para a nossa discussão. Primeiro, o PMDB perdeu dois importantes líderes na Lava Jato e tem seu presidente acossado por denúncias. O Eduardo Cunha, que era o Presidente da Câmara de Deputados e mandou no Brasil durante muito tempo — e foi ele que iniciou o impeachment da Dilma —, esse está preso, condenado. Até tem uma história curiosa, eu estava escrevendo o livro, saí de licença e soube-se de uma super-notícia, que eram as contas dele na Suíça, e voltei a correr para a redação para fazer a peça.

Prenderam-no a ele e à mulher.

A mulher acabou por ser absolvida pelo Sérgio Moro. Mas outro importante líder do PMDB, que era um pré-candidato à Presidência da República e que, se não fosse a Lava Jato hoje estaria na corrida, é o Sérgio Cabral, vice-Governador do Rio de Janeiro. E o que é engraçado é que a Lava Jato, quando foi desmembrada em 2015— eu conto no capítulo 10 — os investigadores começaram a achar que poderia ser um enfraquecimento da investigação. Mas o fruto que foi arrancado da Lava Jato foi plantado no Rio de Janeiro e frutificou. Tanto que descobriram lá, com uma task force da Polícia Federal, uma estrutura que tinha dominado todo o Governo do Estado. E eles são do PMDB. Fora o Temer, que foi gravado e só não foi acusado porque conseguiu barrar a denúncia.

E o Renan Calheiros (ex-líder do Senado, do PMDB).

O Renan está lá com nove inquéritos em tribunal federal, é apenas réu num deles. Também queria lembrar o caso do PSDB. Se não fosse a Lava Jato, o três que poderiam ser candidatos, e no passado foram candidatos à presidência, foram atingidos por denúncias: o Aécio Neves, que acaba de se tornar réu; o José Serra, foi atingido pela delação do Marcelo Odebrecht; o Pedro Novinsky, que era amigo pessoal dele, delatou contribuições de campanha e e está a responder por isso. O candidato atual do PSDB, o Geraldo Alkmin, também foi acusado de receber dinheiro da Odebrecht e vai ser investigado agora pela Justiça Eleitoral.

Outra critica é que a velocidade das investigações não é a mesma.

Isso, a gente pode discutir. A questão do foro privilegiado (imunidade) está a levar a uma distorção na velocidade. Então, temos os parlamentares com mandato sendo julgados no STF, porque lá, é diferente de Portugal, o foro privilegiado é muito mais alargado. Lá todos os deputados, senadores, ministros de Estado, têm foro privilegiado.

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Onde creio que há uma diferença maior é no modo como se pode perder o foro privilegiado. Em Portugal, é por votação na Assembleia da República. Mas acha que o foro privilegiado no Brasil pode acabar?

Tem julgamento marcado para maio. Isso também é interessante na Lava Jato; acabou levantando questões que são importantes para o aperfeiçoamento da democracia brasileira. A Lava Jato pretende ser para todos. Pode discutir as velocidades das investigações, e essa questão do foro privilegiado tem de ser atacada, mas não vejo um direcionamento político na investigação.

Você diz no livro que o Moro afirma que a justiça não é política; mas há uma altura em que ele reza, e tem uma outra cena em que os procuradores em Brasília se juntam para rezar. Isso coloca-os à direita?

Mas a religião tem a ver com a direita?

Você acha que não?

Acho que a religião é apartidária. A fé não tem partido.

A fé é apartidária; mas na prática, considera-se que as pessoas religiosas estão no espetro conservador.

E a teologia da libertação?

Isso é uma coisa que só há no Brasil... Mas, então, acha que não podemos considerar o Moro de direita, que ele realmente é imparcial.

Eu acho que o jornalista — imagina uma situação dessas — tem de seguir uma operação em andamento. A única coisa que me pautou foi o facto, foi a técnica jornalística. A única maneira de escrever este livro neste momento foi olhando simplesmente aos factos. Entender porque é que a operação deu certo e outras fracassaram. Porque é que foi mais longe. Porque é que atingiu o centro do sistema político brasileiro. Nunca me preocupei com partidos. Nunca vi essa preocupação. Afastei-me um pouco da política para me especializar nessa área.

Mas concorda que quando a Justiça começa a julgar políticos, é inevitável que tenha uma conotação política?

Acho que não. É possível fazer um trabalho técnico. Veja o caso do Lula. Quatro tribunais se pronunciaram. Não acredito que todos os tribunais tenham um viés político. O caso foi analisado por toda a estrutura de tribunais brasileiros.

Inclusive o habeas corpus, que foi ao Supremo.

O caso dele foi analisado na primeira instância, na segunda instância, o Tribunal Federal, onde foi uma decisão unânime, na terceira instancia, que é o Supremo Tribunal de Justiça, e no Supremo Tribunal Federal.

"É lamentável que todo o sistema político brasileiro tenha sido atingido por uma investigação de corrupção"

Os ministros do Supremo foram quase todos nomeados pelo PT, não foram?

Uma parte foi nomeada pelo próprio PT, sim. Por isso não vejo como seria possível todo o sistema judicial brasileiro estar politizado. É uma questão técnica. Olha só: é lamentável que todo o sistema político brasileiro tenha sido atingido por uma investigação de corrupção. É lamentável que a estrutura política brasileira esteja contaminada a esse nível. Ninguém fica feliz com o que está a acontecer no Brasil. Mas é uma oportunidade. Todo o suspeito tem de ser investigado. E todo o culpado, se a Justiça decidir, tem de ser punido. Em todos os países civilizados, sob o império da Lei, é assim que funciona. Então, essa é a oportunidade que a Lava Jato traz. Uma discussão e um amadurecimento da sociedade brasileira. Acho que é preciso amadurecer esse povo.

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Portanto a Lava Jato está longe de terminada?

Está muito longe. No melhor cenário, continuará por tempo indefinido. Eu costumo dizer que a Lava Jato mudou o Brasil. Isso é inegável. Agora, se mudou para melhor ou para pior, ainda está a ser discutido. As forças de resistência são muito grandes. A luta é diária. Diária. Veja bem: a questão da condenação após a segunda instância. Muito discutida no Brasil. Milhões de resistências, discussões no Supremo Tribunal Federal. Essa decisão foi tomada em 2016, há advogados que querem que o STF volte a discutir. A decisão foi tomada por uma margem mínima, um voto de seis a cinco. Estamos num momento chave de transformação.

Há uma eleição à vista. A pergunta mais óbvia é: você acha que o Lula vai poder concorrer ou não?

Não. É muito difícil ele concorrer. Claro que vai recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral, vai usar todos os instrumentos da defesa.

Neste momento a lei diz que quem é condenado não pode concorrer, certo?

Exato. É a lei. No momento em que há uma condenação em segunda instância, não pode concorrer. Então, independentemente de ficar preso ou não, acho muito difícil que ele concorra.

Vamos considerar o cenário em que Lula não concorre. O que vai acontecer? Porque não se vislumbra nenhum político que tenha o mínimo de credibilidade que os eleitores exigem para ser Presidente da República. Como vê isso?

Não dá para saber ainda. Vai ser a eleição mais complexa e inesperada que eu já vi. Nem os candidatos estão definidos. A pesquisa da DataFolha aponta nomes que nem estavam na corrida, como o Joaquim Barbosa (ex-ministro do STF, reformado, famoso pelo seu papel no “mensalão”.) Acho que é preciso esperar um pouco mais, ter mais elementos.

"Depois da Campeonato Mundial de Futebol (em junho) o brasileiro vai começar a refletir mais profundamente sobre os candidatos."

 

Segundo a pesquisa da DataFolha, precisamente, o cenário é que a segunda volta será entre o Bolsonaro e a Marina Dias. Se no segundo turno for Bolsonaro e quem quer que seja, vão todos votar contra o Bolsonaro, vão juntar-se todas as forças que não são da extrema direita. Concorda?

Não sei, é muito confuso ainda. Não dá para saber quais serão as alianças. Num primeiro tempo as pessoas vão tentar viabilizar as suas candidaturas, à esquerda e à direita. A partir daí, acho que esta eleição vai ser decidida no último momento. Depois da Campeonato Mundial de Futebol (em junho) o brasileiro vai começar a refletir mais profundamente sobre os candidatos.

créditos: Pedro Marques | MadreMedia

Está a escrever outro livro?

Sim, sobre a Lava Jato. Este livro vai até março/maio de 2016. Os últimos factos que estão registados são a divulgação das escutas entre o Lula e a Dilma e a gravação do Sérgio Machado, quer dizer, a hora em que a Lava Jato começa a atingir mais o PMDB. Aquele episódio em que o Sérgio Machado gravou o Romero Jucá, em que o Romero Jucá fala em estancar a sangria, que virou polémica n’ “O Mecanismo” depois, porque foi colocado na boca do Lula. Agora estou a escrever os últimos dois anos: a delação da JBS, a delação da Odebrecht, a delação do Sérgio Cabral, que vão até agora, até à prisão do Lula.

Vai ser uma série longa: Lava Jato III, IV...

Eu vou continuar a acompanhar a história. Este livro tem a vantagem de registar o começo. São tantas coisas, tantas informações, que é difícil acompanhar. É um guia para você entender o que aconteceu e formar a sua própria opinião. Porque esse é o ofício de jornalista: levamos as informações ao público e o público que as use para formar a sua opinião.

Vou seguir a mesma coisa, que é a trilha do romance policial, construir o enredo. Porque o objetivo é prender o leitor. Eu tinha uma história muito complexa, cheia de detalhes e de personagens, o que dificulta a construção do texto. Resolvi então responder a uma pergunta simples: como é que aconteceu? Fui puxando, puxando o fio da meada. Tem histórias maravilhosas, como a da prisão do Youssef. Ele descobriu que ia ser preso na madrugada anterior, estava com uma mala com um milhão e trezentos mil reais dentro do quarto... “O Mecanismo” retratou isso.

"[O Mecanismo] Sempre foi para ser uma obra de ficção. Nunca se propuseram a fazer um documentário."

Você gosta de ”O Mecanismo”?

Eu gostei. Claro que é muita ficção. Como autor, você escreve um livro com todas as informações certinhas. Então, quando vê o guião e pensa, puxa, mudaram muito.

Ele optou por ficção por quê? Por questões legais?

Acho que isso pode ter ajudado, mas foi por uma questão estética, também. Porque eles queriam entretenimento. Sempre foi para ser uma obra de ficção. Nunca se propuseram a fazer um documentário. A ideia era permitir aos guionistas ter a liberdade de mover a história de maneira que ficasse mais interessante. Afinal de contas, é uma história que ia ser apresentada para o mundo inteiro. Tinha de ser compreensível para todo o planeta.

Tiveram que simplificar.

Isso mesmo. Tem personagens que absorveram as características de várias pessoas. Por exemplo, o Ruffo. Ele existe, mas não tem esse tamanho na Lava Jato.

É assim perturbado?

É. Ele realmente saiu da Polícia Federal por problemas de saúde... Ele conhecia o Alberto Youssef antes... É um delegado (inspetor) que estava lá na origem da Lava Jato. Um dos primeiros. Ele conhecia o Youssef desde antes disso. Os filhos andaram juntos no colégio. Acho que o Padilha se interessou por ele porque tinha essa carga dramática. A partir daí construiu um personagem principal que absorveu as características de vários outros. Tanto que ele vai fazendo coisas que o verdadeiro não fez.

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E a Verena é a Érica?

É. Mas a Verena, por exemplo, absorveu características do Márcio Anselmo, que é um delegado também original e importante na Lava Jato. A Verena faz coisas que no livro foram descobertas por outros delegados. Por exemplo, o negócio da nota fiscal (recibo) do carro. É uma cena linda, amo aquela cena. Não foi a Érica que descobriu, foi o Márcio Anselmo. Mas na série aparece como tendo sido a Verena.

Eles consultaram-no durante as gravações? O seu nome está creditado no final dos episódios.

Consultaram. Eu brinco que sou o cara da verdade na série. “Isso não foi assim, não!”

Eu acho que “O Mecanismo” regista uma coisa também, que é o sentimento dessa busca. Você mostra a angústia do polícia que não consegue chegar ao objetivo. Ou o desespero do preso que fica divido entre fazer a delação premiada e se salvar de toda a pressão da família, ou entregar as pessoas com quem trabalhou e de quem é amigo a vida inteira. Essa angústia é muito presente na Lava Jato. É uma coisa muito rica do ponto de vista dramático e a série retrata isso. Essas coisas são as partes que eu mais gosto.