“Estive dez anos da minha vida, há muito tempo, a organizar os Jogos Olímpicos de Inverno [de 1992] em Albertville, na minha região de Sabóia, nos Alpes. Dez anos de trabalho para 16 dias. É um bom treino para o Brexit”. Foi com estas palavras que Michel Barnier sacou alguns risos no Palco Central da Web Summit, esta terça-feira, e não é difícil perceber porquê.
Nos grandes tomos da história humana, três anos e meio são uma insignificância, mas têm parecido uma eternidade desde que em junho de 2016 o Reino Unido foi a votos para decidir se saía da União Europeia ou não. Ganharam os proponentes de uma saída que tarda em efetivar-se e Barnier sabe-o melhor do que ninguém, já que foi ele o escolhido pela Comissão Europeia para chefiar as negociações com os britânicos.
Eleições, demissões, acordos chumbados, datas renegociadas: o Brexit tem sido uma trama ardilosa e francamente cansativa de acompanhar. Foi por isso que na sua exposição “EU after Brexit” (“UE depois do Brexit”), Michel Barnier preferiu focar-se nas potencialidades da relação entre as duas partes depois do divórcio em vez de nas quezílias que nem a mais apurada das terapias matrimoniais seria capaz de resolver, chamando ao processo “uma escola de paciência e de tenacidade”.
Não é que Barnier não demonstre abertamente ser contra a saída do Reino Unido — “até agora, nunca ninguém me conseguiu explicar as vantagens do Brexit, nem sequer o Nigel Farage”, soltou, recebendo um coro de palmas —, mas o negociador procurou desdramatizar essa passagem de 28 a 27 estados-membros. Considerando que a "saída ordenada” do Reino Unido da UE não é “o fim", mas antes “um passo necessário", Barnier lembrou que se segue a tarefa de "criar uma nova parceria com o Reino Unido, que se vai manter nosso amigo, aliado e parceiro".
"Já concordámos quanto à estrutura desta nova parceria e queremos que seja ambiciosa para as trocas comerciais, para serviços e investimento, para a proteção de dados, para os transportes e a energia, para as pescas, para a colaboração policial e judicial em matérias criminais, para a política externa, para a segurança e defesa e para muitas outras áreas", enumerou Barnier.
O ponto de partida para esta relação é, naturalmente, a ratificação do acordo de saída negociado a 17 de outubro com o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, cujo prazo foi alargado até 31 de janeiro de 2020 e que contempla um período de transição até ao fim desse ano. Apesar das "negociações difíceis", em que se passaram "cinco dias e cinco noites na mesma sala”, Barnier diz que juntos encontraram uma solução que “vai trazer certeza para toda a incerteza criada pelo Brexit” e que defende, ao mesmo tempo, “os negócios e consumidores do mercado único da UE e a integridade constitucional do RU".
Contudo, o francês não deixou de frisar que esta parceria não poderia ocorrer sem que se garantisse a estabilidade da Irlanda primeiro, já que os maiores problemas e riscos do Brexit concernem a ilha. “Aqui não se fala só de economia e trocas, fala-se de pessoas. O que está em causa é paz e estabilidade e a paz ainda é recente nesta região", recordou Barnier, salientando que o Acordo da Sexta-feira Santa, firmado entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, apenas foi conseguido em 1998 na base da "ausência de uma fronteira física na Irlanda", algo que foi contemplado no novo acordo.
Mas olhando de novo para o futuro, Barnier sublinhou como, esteja dentro ou fora da União Europeia, o Reino Unido vai mesmo ter de manter-se próximo dos outros estados membros, quer economicamente, quer quanto “à nossa segurança interna e externa”. O risco é de ficar para trás perante os avanços de países como os EUA ou a China e Barnier serviu-se de um exemplo histórico para o comprovar, falando na criação do motor a vapor por parte de James Watt na Inglaterra do século XVIII.
"A dinâmica que criou rapidamente se espalhou para a Bélgica, França, Alemanha e a Europa tornou-se no berço da primeira Revolução Industrial. Hoje, no século XXI, os EUA e a China estão à frente. Se nós na Europa não agirmos agora, o futuro da nossa indústria, dos nossos empregos, dos nossos dados pessoais e dos nossos padrões éticos será criado em Washington e em Pequim", avisou. É por isso que, para si, a lição a tirar do Brexit é a de "construir uma Europa mais forte, fomentando crescimento e inovação para o benefício dos cidadãos e das empresas europeias".
As imagens do 2º dia da Web Summit
Apesar de falar com um certo otimismo, Barnier não deixou de temperar o discurso com prudência, alertando que “enquanto não tivermos completado as duas negociações com o Reino Unido — a do acordo de saída e a futura relação - o risco do precipício [do não acordo] mantém-se e devemos manter-nos vigilantes e preparar-nos para esse possível desenlace".
Apesar desta ser uma situação de "lose-lose" [perda] para as duas partes, se tudo correr bem no processo de saída as futuras gerações "poderão olhar para esta negociação de forma mais positiva" e compreender que, "neste difícil contexto, conseguimos preservar a amizade essencial com o Reino Unido".
Pró ou anti-Brexit? O que interessa é seguir em frente
A prudente bonomia demonstrada por Barnier no Palco Central contrastou com o esgrimir de argumentos que teve lugar, minutos antes, no palco Future Societies, na conferência “Is Britain is better out of Europe?” (“Estará a Grã-Bretanha melhor fora da Europa?”). De um lado, no canto anti-Brexit, James Ball, jornalista da organização The Bureau of Investigative Journalism; do outro, sendo pró-Brexit, Alex Deane, diretor na consultora FTI Consulting e antigo funcionário e advogado do Partido Conservador.
O debate civilizado entre os dois contrastou com o tipo retórica incendiária que se tornou comum quando duas pessoas nos campos opostos deste tema se digladiam — algo que, aliás, foi sinalizado por ambos —, mas nem por isso a conversa deixou de ser uma amostra do quão profundamente divididos estão os britânicos quanto ao Brexit, algo particularmente premente quando o país se prepara para disputar eleições gerais a 12 de dezembro.
Para James, o grande problema do Brexit é que este ganhou “e ainda não soubemos lidar com isso", referindo-se em específico à natureza dos partidários da saída, já que as suas motivações são diferentes. “O problema complicado é que o Brexit pode significar de tudo. Por um lado, pode ser apenas sair da UE e ficar no mercado único, na união aduaneira, manter a liberdade de circulação e simplesmente sair do projeto político, e isso já seria uma mudança substancial. Mas também pode ser tornar-nos na nova Coreia do Norte e fingir que não vivemos num mundo de conexões internacionais”, explicou o jornalista, indicando que “há muitos ‘Brexits’ incompatíveis entre si e, dada a forma como a matemática funciona, cada um desses vai ser apoiado por menos que 52% dos votantes da saída" [valor que o movimento Leave obteve no referendo].
Sendo incapazes de formar uma coligação sólida e em concordância para “cumprir a saída”, os “brexiteers”, segundo James, começaram então “a ficar cada vez mais zangados a gritar com pessoas que nunca quiseram [o Brexit] e isso essencialmente radicalizou-os, criando uma luta violenta entre os brexiteers de 2016 e os de 2019". "Foi uma coligação criada à volta de um único Brexit que não podia existir. Não é assim que se faz um referendo", sentenciou.
Para além disso, o jornalista defendeu que ficou por responder a pergunta "para que serve o Brexit?", afirmando que "não há um principio, não se pensa, é só uma questão de 'eu quero isto porque preciso disto'". Neste aspeto, disse também sentir falta das "diferentes posições intelectuais que havia" quanto ao Brexit, agora reduzidas a "sair porque temos de sair, não interessando se isso é bom ou não, desde que saiamos".
No entanto, para Alex o problema foi outro, e prende-se com os “remainers” [partidários da permanência na UE), que querem ignorar o resultado do referendo de 2016 porque “não gostaram e querem voltar atrás", salientando que "não é assim que a democracia funciona". A obstinação dos votantes pela saída, defendeu, ocorre porque "quando se toma uma decisão, segue-se com ela e não se fica a ver um grupo de pessoas a dizer que sabem mais do que nós e que, como votámos de maneira diferente, vão arranjar formas diferentes de nos dizer que estamos errados". Seja quais forem as posições das pessoas quanto ao Brexit, o consultor reiterou ser necessário compreender "o dano democrático profundo que será causado no país se falharmos em cumprir a maior votação que já tivemos", assim como a subsequente “falta de confiança no sistema".
No que toca à divisão de posições no movimento Leave, Alex admitiu a existência de várias correntes intelectuais no Brexit. Afirma-se como "um libertário que quer mais trocas de livre comércio" — acusa a UE de "nunca ter finalizado o mercado único nem o ter priorizado" — e destaca que a sua posição é diferente da adoptada por quem votou pela saída "para controlar a imigração".
Porém, o consultor retorquiu que também houve divisões do lado do Remain, havendo quem achasse que a "UE é fantástica" e fosse favorável a "mais integração e menos atividade individual dos estados membros"; e quem, por outro lado, seguisse a posição oficial da campanha, a de que a UE é má mas "é preferível continuar nela e tentar influenciá-la". Dada essa falta de convicção, Alex comentou que não foi “o Leave que ganhou o referendo, foi o Remain que o perdeu”.
Apesar das divergências, houve pontos de contacto entre os dois participantes, o principal dos quais foi a admissão conjunta de que é necessário deixar de olhar para o passado e começar a procurar soluções de futuro. "Não podemos continuar a lutar pelo referendo de 2016, é corrosivo e inútil, não nos leva a lado nenhum", disse Alex.
Outro ponto em que concordaram é na falta de estratégia dos defensores da permanência do Reino Unido na União Europeia, com James a recordar já ter declarado publicamente que a campanha do Remain foi "a pior campanha jamais feita", apenas ultrapassada pelo movimento People's Vote que agora existe. Em causa está a condescendência destinada a quem votou pela saída, dizendo James que queria ver as pessoas do Remain a convencer os outros votantes em vez lhes dizer que se enganaram.
No entanto, o que foi mais surpreendente na conversa foi como ambos convergiram na possibilidade de realizar um segundo referendo para reavaliar a saída da UE. James defendeu esta proposta, principalmente "se um grande número dos votantes das eleições gerais escolherem partidos que abertamente defendem que devia ser organizado". Mediante essas condições, Alex disse aceitar um referendo, mas não sem antes recordar que este enfrenta desafios junto dos três principais partidos no Reino Unido. Se os Conservadores dificilmente quererão fazer um acordo e os Liberais Democratas já deixaram claro que o referendo apenas terá validade se ganhar a opção Remain, o consultor lembrou que a posição dos Trabalhistas é insustentável: "depois finalmente termos um acordo com a UE, querem querem descartá-lo, negociar o seu próprio acordo num prazo de seis a nove meses, organizar um referendo para saber se devia ser implementado e fazer campanha contra o próprio acordo que negociaram...".
É por isso que, perante o mar revolto de incógnitas, nenhum dos dois se arriscou a fazer previsões de maior para o próximo ano. Alex confessa-se otimista já que, contra as suas expectativas, Boris Johnson conseguiu um acordo com a UE. "A minha preferência é de que tenhamos saído suavemente da UE na próxima Web Summit e que já estejamos a negociar acordos comerciais com outros países." No entanto, mostrou-se "confortável" com a ideia de "um período de transição para assegurar que a saída é suave em vez de criar dificuldades".
Contudo, para James, o futuro é bem mais cinzento pois "ainda estamos a viver num país muito fraturado". "Viver no Reino Unido nos últimos três ano e meio, quer se seja a favor da permanência ou da saída, tem sido um remake sombrio do Groundhog Day [filme de 1993 e que o protagonista revive o mesmo dia consecutivamente]", disse.
Por outro lado, havendo "todas as probabilidades" das eleições gerais resultarem "noutro parlamento incapaz de tomar decisões", e sendo também possível que "pela primeira vez em quatro décadas e meia, se tenha umas eleições em que ninguém consiga formar governo", o jornalista concedeu que é provável que as discussões quanto a este processo continuem. "Vamos estar a falar do Brexit até eu ter mais cabelos brancos dos que tenho agora”, desabafou.
Uma “história sem fim” que ofusca os verdadeiros desafios do nosso tempo
Para o fim do dia ficou reservado um regresso à Web Summit. No palco “Future Society”, Tony Blair foi acompanhado pelo jornalista Phil Collins numa conversa de título premonitório: “Brexit: the never ending story (“Brexit, a história sem fim”). Tendo passado 10 anos no n.º 4 de Downing Street, à frente do partido Trabalhista e chefiando um thinktank homónimo que se dedica a projetos de centro esquerda, não é de estranhar que Tony Blair se tenha afirmado um partidário do Remain desde o início. O ex-primeiro-ministro britânico apresentou-se logo ao público ao dizer-se "completamente oposto ao Brexit", que é "uma ideia terrível" e que espera que "não aconteça“.
Para isso, Blair diz ser necessária a organização de um “novo referendo", acreditando que as pessoas estarão "muito melhor informadas do que estavam em junho de 2016" e que, tendo a oportunidade, vão "repensar a escolha". "Porque é que têm medo de voltar a colocar a questão para que as pessoas decidam se querem repensar? Porque é que isto é antidemocrático? É na verdade completamente democrático dadas as circunstâncias em que vivemos nestes três anos e meio de miséria, confusão e caos”, defendeu o antigo político. No entanto, deixou uma certeza: se no segundo referendo voltar a ganhar o movimento Leave, terá então de ser respeitado.
Todavia, Blair considera que não só esse referendo deve ser demarcado das eleições gerais de dezembro, “pois não são uma boa forma de referendar o Brexit", como estas podem nem resolver nada. “Da última vez que tentámos fazer isto, acabámos com um parlamento minoritário e foi por isso que tivemos dois anos de impasses”, recordou, apontando para as eleições marcadas por Theresa May em 2017 que terminaram com os Conservadores a serem obrigados a fazer um acordo com os unionistas da Irlanda do Norte.
Centrando-se nas problemáticas deste processo, o ex-primeiro-ministro disse que o Brexit "não é uma resposta para nada" e que não só vai ter um "impacto destrutivo" a nível económico como já está a ter um "impacto distrativo", pois está a ofuscar todos os assuntos vitais da atualidade inglesa, como o seu sistema de saúde, a educação ou a revolução tecnológica. "Nenhum destes assuntos vai ser resolvido pelo Brexit, que o que faz é retirar a energia política do sistema. Em vez de termos os nossos líderes políticos a pensar como é que a Inteligência Artificial vai afetar os empregos no futuro ou como podemos lidar com as alterações climáticas e qual é o papel da tecnologia nisso, estamos a discutir o Brexit e nada mais!", criticou.
Por outro lado, dando seguimento às palavras que Barnier tinha proferido durante a manhã, Blair referiu a necessidade da Europa se unir perante a possibilidade de um domínio mundial tecnológico por parte “dos EUA, da China e talvez da Índia”. Lembrando-se que nos seus tempos de primeiro-ministro aprendeu que "o poder é o poder", Blair avisou que “nessas circunstâncias, não nos poderemos sentar à mesa a não ser que fiquemos juntos", pelo que nessa fase "o Brexit será uma total irrelevância".
Considerando-o um "grito de raiva direcionado ao sistema político", Blair diz ser necessário ver o Brexit "no contexto do desenvolvimento dos populismos no mundo ocidental", onde se criou uma “linha divisória que é em parte económica, mas em parte cultural” e que se alimenta de questões fraturantes como a imigração e a globalização.
A resposta ao populismo, diz, não passa pelo que alguma da esquerda tem feito, de tentar emular o populismo de direita com a sua própria versão. “O populismo não são políticas populares, todos os políticos querem ser populares. Populismo é quando se explora um problema em vez de resolvê-lo, é quando se navega na raiva em vez de lhe dar resposta. É quando a esquerda diz que o problema é todo das empresas e a direita diz que é dos imigrantes", sublinhou. Para si, a solução tem de partir do centro, pois é preciso estar preparado para construir pontes com quem vota nos populistas de direita. "Isso não significa que se deva replicar essas políticas, mas sim compreender quais são os problemas dessas pessoas, pois, se não o fizer, será difícil criar uma ligação emocional e persuadir as pessoas", garante.
O papel da esquerda, indicou Blair, tem de ser o de mostrar outros caminhos. O "populismo é essencialmente guiado por pessimismo — se as pessoas forem pessimistas, encontram alguém para culpar. Se forem otimistas, vão explorar as oportunidades”. É por isso que o desafio para os movimentos progressivos que se construam a partir do centro é o de ter a certeza de que se abordam os problemas genuínos das pessoas e de que se cria "uma narrativa de otimismo para mostrar que as próximas gerações podem dar-se melhor".
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